Há poeira no ar (e não é a do Saara). Há agora um sentimento partilhado por todos aqueles que, por militância política ou por apoio informal a grupos de participação cívica, fazem parte da cultura democrática do nosso país: o espaço de luta ideológica é agora um espaço turvo e sujo. E a última semana foi repleta de sinais de alarme.

Em retrospetiva, gera alguma incredulidade o rol de acontecimentos. A 6 de abril senti a gravidade no ar à medida que se aproximavam a manifestação ultranacionalista e contramanifestação antifascista nas ruas do Porto. A 350 metros uma da outra, sentia-se a inquietude na rua, um nervoso de sentir (de ambos os lados) que o inimigo é mais real do que nunca.  Mal sabia eu que, qual efeito spillover, durante toda a semana estariam a ser levantadas questões sobre direitos da mulher que outrora se consideravam incontestados e incontestáveis.

Por muito que a reação pública a movimentos minoritários – o Grupo 1143, da manifestação ultra-nacionalista, o Movimento Acção Ética, da polémica apresentação do livro Identidade e Família – seja manifestamente negativa, o alarme advém agora de haver uma descontração em questionar direitos idiossincráticos de uma democracia contemporânea. Tomando como exemplo, para além de ser ultrajante, enquanto mulher, o levantamento da enterrada questão de ser “dona de casa”, é, na prática, uma impossibilidade. Não há possibilidades de ter uma casa da qual se ser dona e já nem dois salários, quanto mais um, sustentam uma vida em comum.

A pergunta que impera depois disto é: o que mudou? Porque há agora um consenso generalizado – na comunicação social, nas ruas, nas conversas de café – de que se faz agora luta ideológica de forma diferente? Não é como se não tivesse já havido períodos políticos profundamente conturbados no Portugal democrático, mas a luta já não é a mesma.

Poeira assentou na atmosfera política portuguesa, vinda do grande polo exportador de influências culturais, os Estados Unidos, e tornou agora a luta ideológica numa luta existencial. Nós contra eles e é uma questão de existência. No espaço político, se não exterminarmos somos exterminados. Há uma grande urgência nas ruas de travar a luta cultural a todos os instantes: nos nossos microespaços de trabalho ou de faculdade, passando por manifestações e instantâneas contramanifestações, até ao macro exemplo da revogação do logótipo da Administração Pública implementado pelo anterior Governo.

A luta agora é turva, mas mais urgente. A luta é mais polarizada, o que torna o inimigo mais fácil de identificar, mas dificílimo de atribuir-lhe contornos. Não sabemos bem a etimologia das coisas que discorremos de boca para fora. O que significa woke? O que significa fascista?

Sabemos, sentimos, que estamos perante uma curva na História tipicamente linear da Humanidade e, por isso, lutamos de ambos os lados. Mas não está a resultar. O inimigo é agora uma massa amorfa: lutamos às cegas. A consequência é uma incompreensão óbvia: todos somos donos da verdade, mas nenhuma é convincente.

Um último sinal de alarme: a luta ideológica é agora uma luta contida. Os governantes pedem maneiras aos que protestam, reprovamo-nos uns aos outros quanto à ideia de violência. Mas é uma contenção falsa: é mais uma panela de pressão à espera de rebentar. Engane-se aquele que acredita que ainda vamos lá pelo “debate” ou pela “empatia” pelo outro lado. Já passámos, há muito, esse ponto. Atrever-me-ia a dizer que passou quando entrou um particular partido na Assembleia da República.

Não tenho respostas às questões que coloco ou seria profeta. Coloco-as porque é urgente pensarmos, em coletivo, a sociedade que estamos a plantar, com as sementes da violência e da discórdia. Estamos a viver momentos cruciais da História. E as ruas sentem-no.

Estudante de Direito na Faculdade de Direito da Universidade do Porto