Agora sim, está virtualmente decidido, a 5 de novembro haverá uma desforra de 2020 entre Joe Biden e Donald Trump. Os democratas e os republicanos votaram nas primárias para que assim fosse.  Assim podemos concentrarmo-nos nas dinâmicas do eleitorado que serão decisivas para decidir se Biden é reeleito, ou se Trump regressa à Casa Branca. Uma delas é o extraordinário, e mal compreendido, realinhamento racial, ou étnico se preferirmos, em curso no eleitorado americano.

A evidência mais recente deste realinhamento é a sondagem da Siena College para o The New York Times de março, em que Biden tem menos de 10 pontos de vantagem sobre Trump entre os americanos nãobrancos. Ao mesmo tempo, o atual presidente tem aproximadamente o mesmo apoio entre os brancos que teve nas eleições dequatro anos, e as suas grandes perdas são entre os hispânicos (que podem ser de qualquer raça) e os negros. Cada uma destas comunidades vale cerca de 13% do eleitorado. Nesta média feita pelo analista Adam Carlson, das sondagens mais recentes, também se pode reparar em perdas de apoio tanto maiores quanto mais jovem o eleitorado, pequenas perdas entre os asiáticos e os brancos sem formação superior, apenas os brancos com formação superior e os idosos parecem apoiar um pouco mais os democratas agora do que em 2020. Na América não há tabus com dados estatísticos, nem sequer os referentes a raças e etnias, e é tudo estudado ao pormenor.

Esta tendência de perda de apoio entre os não-brancos não é algo recente, embora pareça ter acelerado com o atual presidente. Em 1964, pouco depois da aprovação do Lei dos Direitos Civis que acabou com a segregação no Sul profundo, quase todos os nãobrancos começaram a votar e a apoiar os democratas em eleições presidenciais, com os afro-americanos a transferirem o seu voto do partido que acabou com a escravatura para o que acabou com a discriminação legal (por sua vez no Sul muitos brancos passaram a votar nos republicanos). Porém à medida que muitos imigrantes nãobrancos entraram nos Estados Unidos nas décadas seguintes e a memória do movimento dos direitos civis foi enfraquecendo, os republicanos foram-se tornando gradualmente mais populares entre as minorias, mas com muitas dificuldades a passar dos 25%.

Desde o início dos anos 1960 que a percentagem de nãobrancos que se identifica como democrata não era tão baixa, com descidas particularmente fortes a partir dos anos 2010, e sobretudo entre os jovens, que já não têm grande ligação ao movimento dos direitos civis. Este é o caso particularmente entre os jovens negros. Entre os negros mais velhos, o apoio aos, e identificação como, democratas continua fortíssima.

Outro fator por vezes esquecido é que muitos americanos não-brancos têm ideais conservadores, para além do que tendem a ganhar menos e a ser menos instruídos do que os americanos brancos. Mas até recentemente a lealdade aos democratas com base na identidade racial versus o Partido Republicano, percecionado como menos pró-minorias, faziam-nos votar maioritariamente nos democratas. Em 2012, por exemplo, o ano da reeleição de Barack Obama,75% dos negros que se dizem conservadores identificavam-se como democratas (sendo que 93% dos negros votaram Obama). Quase metade dos hispânicos conservadores também se identificava como democrata.

Segundo os estudos e análise de analistas de dados como John Burn-Murdoch, Ismail White e Chryl Laird, a pressão social sobre os negros e hispânicos conservadores está a esmorecer rapidamente, num efeito cascata à medida que estes têm grupos sociais cada vez mais diversos e vão menos à Igreja, perdendo-se assim a norma de votar no “partido das minorias”, o democrata.

E como é que Trump entra nesta tendência? Um homem conhecido pelas suas posições nativistas e declarações (e políticas) frequentemente vistas como racistas e xenófobas, como é que ele está a fazer para acelerar esta tendência e com ajuda de mais americanos nãobrancos do que nunca, voltar à Casa Branca?

Primeiro, sendo ele mesmo, e apostando no seu carisma natural, que com algum sentido de humor é a melhor forma de sugerir que os negros se identificam com a sua “mug shot”, e com a sua “perseguição” pelo sistema judicial. Depois, relembrando os negros e outras minorias de como as coisas, sobretudo os preços, estavam melhor durante o seu mandato, e de como passou reformas no sistema prisional, reduzindo as sentenças a muitas pessoas presas por tráfico de drogas, maioritariamente de minorias étnicas. A insatisfação entre os nãobrancos com as políticas e economia de Biden é notória e assim muitos deles, podem nas presidenciais de 5 de novembro pela primeira vez votar num homem tantas vezes acusado de racismo e xenofobia.

Daniel Reis Ferreira, licenciado em História pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e finalista no Mestrado em Estudos Internacionais do ISCTE