Ao fim de 24 anos envolvida em projetos empresariais e na área da cultura, Ana Pinto Coelho decidiu que chegara o momento de regressar à universidade e de desbravar a área das dependências químicas e comportamentais. Resultado? Acabou por se formar como conselheira dessa mesma área, na Universidade de Oxford, no Reino Unido. E foi neste mesmo ‘reino’, mais concretamente na Escócia, que conheceu o Scottish Mental Health Arts and Film Festival, em Edimburgo, que a inspirou a criar um evento cujo foco fosse a saúde mental.

E assim foi. O Mental – Festival da Saúde Mental nasceu em 2017 para combater a iliteracia sobre a saúde mental, e permitiu a Ana Pinto Coelho pôr ao serviço desta iniciativa não só a sua experiência profissional, como a imensa vontade de desconstruir estigmas. Sem medo(s).

Chegados a 2024 e à 8ª edição, o Festival Mental continua a pôr o dedo nas feridas e a debater curas, caminhos, emoções, dor e luz ao fundo do túnel. Entre 10 e 25 de maio, o Cinema São Jorge e o Lumiar serão palco dos debates, talks e reflexões, desta feita sobre os temas: Dating e Ghosting; Burocracia e saúde mental; Música e saúde mental; ou Comunicação social e saúde mental. É por aqui que começamos.

A comunicação social tem tido um contributo construtivo na área da saúde mental?

A comunicação social de hoje é ambivalente em quase todas as áreas, seja política nacional, internacional, artes e espectáculos. Na área da saúde mental também. Se antes da pandemia o que comunicávamos era sempre no sentido “é preciso falar mais de saúde mental, o parente pobre da saúde em Portugal”, passámos para uma versão “catchy” ou seja, a ser um “tema da moda” nos OCS. A transição não foi por real interesse na matéria – caso contrário já o teriam feito até na colaboração de divulgação do Mental – Festival da Saúde Mental, pioneiro através da cultura, cinema, em suma, programação cultural multidisciplinar, visando o combate ao estigma e iliteracia, com promoção e prevenção em saúde Mental para o grande público e nos mais diversos targets. E, na verdade, já lá vão oito anos.

Claro que não estamos sozinhos nesta grande batalha, pois felizmente convivemos com outros colegas que têm um tipo de abordagem diferente, mas que também dão o seu melhor. Diria, portanto, que não é/foi construtivo. Foi porque tinha que ser, por ser aquela altura, por oportunismo mediático. E convidando ainda assim os mesmos de sempre, chamando a painéis com o que já havia, mostrando na maior parte alguma sobranceria sobre o que se está a fazer bem feito, inovador, há anos. Construtivo pode e deve ser feito. Noutros moldes, mais esclarecidos definitivamente, mais atentos a uma temática séria, cientificamente comprovada, orgulhando Portugal do que os pioneiros da sociedade civil têm feito há anos.

E em termos internacionais, há diferenças?

Internacionalmente, por exemplo e agora concretamente no nosso caso, o Mental – Festival da Saúde Mental, tem sido contactado por jornalistas estrangeiros muito interessados no nosso trabalho e na programação. Anualmente, recebemos centenas de filmes através da plataforma global Filmfreeway (esta edição recebeu curtas de 27 países). Somos contactados para parcerias com Festivais congéneres, e somos exemplo de boas práticas do que em Portugal se faz. Se o contributo, ainda que tardio, fosse construtivo, este cenário estaria totalmente revertido. Não será crítica, antes preocupação. Olhando a imprensa internacional consigo identificar, em relação à saúde mental, panoramas bem distintos. Mas o facto de estarmos aqui e agora a escrever, em altura de mais uma edição do Festival da Saúde Mental, revela que nem tudo está perdido.

Até que ponto os OCS veiculam informação errada, imprecisa?

Essa passou a ser a questão fulcral e tem uma resposta muito simples: infelizmente, é o que acontece. Enquanto curadores e produtores de um Festival da Saúde Mental há oito anos, e seguindo o raciocínio da pergunta anterior, o que temos dito desde o que aconteceu com a pandemia é: “falar mais não é falar melhor”. Pelo contrário, se um assunto desta natureza se torna “trendy” é porque algo está claramente errado. Mas também nos é mais fácil identificar a razão pela qual acontece e que passará seguramente quando o tema for outro. Há que referir também o péssimo papel que têm tido as redes sociais para esta desinformação, à qual os OCS não têm qualquer tipo de responsabilidade, mas que, para o público geral tantas vezes distraído, vale exatamente o mesmo, bastando para ser publicado por uma qualquer “figura pública” no Instagram ou demais redes.

As redes sociais pouco contribuem para uma melhor literacia nesta área…

Atualmente, esta é a nossa maior preocupação. Para além do nosso trabalho, passamos a ter que avisar meio mundo para ter cuidado com as fontes de onde recebe informação. Aconselhamos para que acedam sempre a quem oferece conteúdos científicos, oficiais. Mas claro que as pessoas preferem e acedem muito mais às redes das figuras públicas porque, enfim, é também o mundo em que vivemos. Quando acontece um Festival Mental, por exemplo, a cultura junta-se à saúde mental em modo de plataforma. Nada nem ninguém está ao acaso. O rigor faz parte, é nossa obrigação, escolher os melhores profissionais de todos os sectores para falarem sobre os temas escolhidos. E é claro que todo este imenso esforço esbarra na pouca divulgação nos OCS, mesmo percebendo os motivos acima explicados. Há que mudar de paradigma e isto partirá, em última instância, do próprio público já com literacia, que vai saber exigir e distinguir.

Outro dos temas em debate nesta edição é “burocracia e saúde mental”. Que peso tem nesta área?

A burocracia esmaga a sociedade actual em quase todas as suas vertentes. Esse esmagar é um factor imensamente importante no nosso dia-a-dia e que julgamos já ser um dado adquirido, o status quo, e que raramente é contestado. O acesso à saúde mental está em progresso, mas é ainda do foro do privado. Ao contrário de outras especialidades médicas (muitas com seguros), um problema ou episódio de saúde mental não se resolve numa consulta. Implica um trabalho mais ou menos demorado para o qual o serviço público não tem, ainda, solução.

A contestação geral é exatamente essa. Não há seguimento de acordo com o necessário, e portanto, a população é fragmentada: a que tem capacidade financeira para estar no privado, pagando as suas sessões regulares seja de psicoterapia, psiquiatria ou outra. A que não tem, como faz? Espera meses por uma consulta? E depois dessa consulta, como vai ser acompanhada? Outro exemplo: os nossos mais velhos que necessitam de Psicogeriatria. Mas deparam-se com uma imensidão de papelada e burocracia para conseguir ter acesso comparticipado nas poucas instituições que oferecem este serviço. É um processo interminável, desgastante, inumano. E tão moroso, que muitas famílias desistem. Mas o que iremos discutir é “burocracia e saúde mental” para que se fale a sério sobre o peso que a burocracia tem nas nossas vidas e sobre a qual se desabafa em conversa de café mas nunca se entende como se pode agravar e, tantas vezes, resultar num problema de saúde mental.

O sector da Cultura também sofre nessa matéria.

Sim, podemos inserir aqui a Indústria Cultural e quem ainda tem que passar por concursos públicos e financiamentos. Certamente precisará de um advogado até para ler o caderno de encargos, quanto mais tudo o resto.  É a terminologia, é o “rigor juris”, entre tantos outros. Tudo menos o que diz respeito ao trabalho que realmente todos fazem e para o qual estudaram e estão preparados. Certamente alguns requisitos formais devem ser assegurados, mas nunca na dimensão atual. É pura prepotência jurídica num país de juristas. Quem o não é tem a saúde mental afetada.

Não se entende como num país com as nossas características se continue a atribuir mais e mais emprego a juristas que, pelos vistos, nem fazem o seu trabalho de forma exemplar, pois continuam a obrigar-nos a fazer grande parte desse trabalho sem nada que o justifique. Esta explicação é dada por várias pessoas de vários sectores de atividade com as quais falámos, de Norte a Sul do país. Burocracia na saúde mental é um tema obrigatório no nosso país. Pode e deve existir um esforço bilateral e não unilateral como acontece.

Os debates promovidos pelo Mental têm tido bastante adesão do público?

Claramente a resposta é sim. Para confirmar, basta ir ao canal Youtube do Festival Mental, onde rigorosamente todos os acessos são livres a todas as M-Talks e Debates, e outros conteúdos. Todo o cuidado da seleção das temáticas é fulcral. Estar atentos ao que em cada ano possa ser mais importante, introduzindo sempre temas atuais – por exemplo Ecoansiedade quando ninguém falava, Inteligência Artificial, Ciberdependência na área da Saúde Digital. A repetição de um único tema em diferentes abordagens (Alzheimer e Demência) apenas porque em Portugal este número está em crescendo e porque também nos é pedido por muitos profissionais. A adesão existe quando os OCS ajudam, à parte do trabalho da nossa própria comunicação, em dar o seu melhor. Trabalhamos programação, conteúdos – cinema, literatura, música, teatro, dança, artes plásticas, etc. – com o maior rigor e profissionalismo, sempre com a Cultura como ponte para a promoção, divulgação e combate à iliteracia em saúde mental.

Se as artes plásticas já são usadas para a capacitação e reinserção psicossocial de pessoas com doenças mentais, o que falta para a música ganhar maior relevo neste campo?

As artes são comuns em toda a Europa e temos vindo a assistir “in loco” em vários países. As artes plásticas, sobretudo, são muito importantes. No Festival Mental, a música tem sido mais uma componente além das atrás referidas. Por exemplo, animação de rua, ir ao encontro à sociedade, em todo o lado do país, é a vontade que temos desde o início, mas nunca contamos com investimento realista e suficiente para que possamos levar à prática todas as ideias que vamos acumulando. Tanto para quem é compositor, músico ou quem assiste. A troca de emoções e sentimentos, sejam elas quais forem, são enormes quando se fala de música. Basta assistir a grandes concertos ou a música que se ouve em casa. Mas há ainda mais: como a música pode ajudar, ser terapêutica, tanto para o bem – o prazer, a criatividade – como para o mal – a pletora de músicos que morrem antes dos 30. Importa falar! Música é terapia. Sempre o foi e sempre o será. Venham sponsors para nos ajudar a oferecê-la a quem mais precisa.

À 8ª edição do Mental, que balanço fazem do festival?

Importa antes de mais que se perceba que o investimento em saúde mental – promoção, prevenção e combate à iliteracia, economicamente falando, resolve inúmeros custos de saúde em geral. Saúde Mental não precisa de análises, TAC, Raios X, etc., etc.. Sabemos também que a saúde mental nos ajuda a ter imensas somatizações, como para explicar de forma simples, como afeta os mais variados órgãos. A partir daqui aparecem as “doenças físicas” que podiam facilmente ser evitadas com considerável poupança ao Estado. Porque não acontece? Há respostas não públicas. Com oito anos, o Mental – Festival da Saúde Mental já faz parte do circuito dos festivais temáticos, pelo menos em Lisboa. Com uma equipa pequena, o que é difícil de fazer perceber quando nos apresentamos aos congéneres, vamos conseguindo um crescimento sustentado, esforçado, como os estudos demonstram. A marca é já importante e tem o seu valor, o que também facilita o primeiro contacto com mais entidades. Mas precisamos de mais, muito mais.

Como veem o futuro do festival? Está nos planos fazer itinerância pelo país, para fomentar um debate mais alargado?

Continuamos a bater às portas das cidades e vilas deste país com o Festival Mental Itinerante. Algumas acolheram-nos e perceberam a mais-valia que ofereceram às suas populações. Mas para este projeto ser sustentado de forma eficaz, deveríamos visitar anualmente as mesmas cidades e vilas para deixar de ser estranho e passar a ser normal, o que tem sido difícil porque, demasiadas vezes, são ações políticas cujos responsáveis vão mudando. E lá se recomeça da estaca zero. Demora tempo, sabemos bem. Por dois anos investimos no Porto, mas nunca existiu apoio camarário. Estivemos em Ponta Delgada, Funchal, Castelo de Vide e Vila Pouca de Aguiar, mais no interior, com casa cheia. Sempre com programações específicas atendendo aos locais e às populações. É necessária a repetição até que o público entenda que este é um Festival descontraído, cultural, passado nas salas comuns como teatros, cinemas, auditórios, bibliotecas, sem feudos de qualquer espécie.

O balanço é maior, internacionalmente, como exemplo de excelência do objetivo, mas com preocupações de marketing, imagem, comunicação e diversidade de propostas. Todas acreditadas cientificamente. São oito anos sem intervalos, sempre presencialmente, mesmo durante a pandemia, para levar este projeto que começou com simples uma visita ao festival congénere escocês a toda a população portuguesa. Pelo menos, é esse o nosso fito. Pela nossa própria saúde mental.

Consulte a programação completa em www.mental.pt