Na primeira entrevista que deu em seis anos, Lucília Gago esclareceu que o último parágrafo sobre a Operação Influencer, no qual se fazia alusão à investigação ao então primeiro-ministro António Costa, foi concebido conjuntamente entre si e o gabinete de imprensa da Procuradoria-Geral da República: “É da minha inteira responsabilidade a sua inclusão.” Questionada sobre por que razão o fez, Lucília Gago respondeu: “Aquilo que considerei e considero é que não era compreensível a omissão. Numa ocasião que envolveu buscas, detenções, na residência oficial do primeiro-ministro, não dizer que além daquelas pessoas ali referenciadas também existia um processo a envolver o primeiro-ministro… – por referências no processo que apontavam ao primeiro-ministro… Ao contrário, parecia que ia haver uma tentativa de branquear e proteger.”

Na entrevista dada à RTP, quando foi questionada sobre se não tinha noção das possíveis consequências daquele parágrafo, a Procuradora-Geral da República admitiu: “Quando o parágrafo foi construído é evidente que se antevê que pode haver uma reação forte.” Porém, não se responsabiliza pela demissão do ex-primeiro-ministro: “A avaliação feita pelo primeiro-ministro é pessoal e política, não cabe ao Ministério Público fazê-lo. Vários exemplos mostram que não é automático. Vários políticos por esta Europa fora são alvo de investigações e não se demitem.” Mais à frente, a PGR deu mesmo os exemplos de Ursula von der Leyen e de Pedro Sanchéz (a investigação, neste caso, recai sobre a mulher). E voltou a frisar: “Obviamente que não me sinto responsável pela demissão do primeiro-ministro. O primeiro-ministro fez uma avaliação pessoal sobre se podia continuar a exercer as suas funções (…). Uma investigação não tem como consequência automática uma demissão.”

Interrogada sobre se existiam factos contra António Costa que justificassem a abertura de um inquérito, Lucília Gago frisou que o comunicado nunca referiu que “o primeiro-ministro à data estivesse indiciado ou fosse suspeito da prática de um crime”, mas sim que suspeitos desse processo “aludiram ao seu nome e à sua influência” e, como tal, o Ministério Público tinha obrigação de investigar: “O expediente que chegou à PGR foi encaminhado para o Supremo Tribunal de Justiça, a opção foi tomada, tem a minha chancela. A instauração do inquérito decorre da singela circunstância de o Ministério Público estar obrigado por razões de legalidade a dar essa sequência, mas dessa instauração não decorre automaticamente a existência de indícios, indícios fortes, que conduzam a uma acusação.” E mais, acrescentou: “A ser verdade o que essas afirmações continham podia haver a prática de um crime. o sr primeiro-ministro à data foi ouvido, foi ouvido a pedido do próprio, e na altura o magistrado que procedeu à audição entendeu que não existiam indícios fortes da prática de um crime, como tal não o constituiu arguido, mas o inquérito ainda decorre.”

Lucília Gago deixou explícito que o inquérito contra António Costa ainda decorre porque há matéria de facto dentro do processo que a isso obriga. E por várias vezes quis vincar que o ex-primeiro-ministro não pode ter um tratamento diferenciado: “Não há nenhum cuidado acrescido que deva ser tido neste caso em particular. Nós não temos a figura do pré-inquérito. Não se pode querer que todos os cidadãos sejam iguais perante a lei e depois atribuir um carácter especial à figura de um primeiro-ministro. Têm de ter um tratamento igual.”

Questionada sobre se aquela investigação e aquele comunicado não configuravam um Golpe de Estado, a Procuradora-Geral da República foi taxativa: “De modo algum. As consequências que qualquer figura retira de uma operação ou de um comunicado só a si compete. Acho completamente descontextualizada a referência ao golpe de Estado.”

Não tendo António Costa sido constituído arguido, o Ministério Público deve-lhe algum pedido de desculpas? “De modo algum. O MP não deve qualquer pedido de desculpas… Não há ninguém acima da lei, há apenas pela parte do MP o dever de investigar o que se passou, mesmo que a denúncia seja anónima.” Mesmo que o processo venha a ser arquivado? “Não há um erro. Há uma investigação que conduziu a um arquivamento, se for esse o caso.”

O encontro em Belém

Uma das circunstâncias que alimentou muitas polémicas decorreu de um encontro que Lucília Gago teve em Belém, com o Presidente da República, naquele dia 7 de novembro, quando ainda estavam a decorrer diligências no terreno no âmbito da Operação Influencer. Lucília Gago confessou que o encontro em Belém foi pedido pelo Presidente da República e que nessa reunião informou Marcelo Rebelo de Sousa de que iria fazer um comunicado com aquelas referências ao primeiro-ministro António Costa. “Sem dúvida”, disse de forma assertiva. E foi Marcelo quem pediu para incluir aquele parágrafo. “Quando eu fui estava já absolutamente preparado o comunicado, com aquele parágrafo. Muito se disse sobre esse tema. [O Presidente] não teve influência nem em uma vírgula. O comunicado não pôde ser divulgado antes desse encontro porque havia ainda uma detenção por consumar.”

Na entrevista à RTP, Lucília Gago disse não compreender “o nível de alarido que se instalou” por causa daquele parágrafo e considerou que as imputações que têm sido feitas ao Ministério Público desde então “são graves” porque “se está a dar entender que há uma qualquer vontade do Ministério Público de perseguir políticos. Isso é um absurdo”.

Sobre a coincidência de o processo sobre o Caso das Gémeas ter sido aberto nesse mesmo dia, e sobre o facto de Marcelo Rebelo de Sousa ter falado num encontro com jornalistas estrangeiros que essa coincidência era “maquiavélica”, Lucília Gago referiu que essas declarações lhe causaram perplexidade e surpresa: “Quero aqui esclarecer que não há quaisquer critérios deste tipo no Ministério Público [de concertação de datas]. Nem sou eu que instauro os inquéritos. Quando fui à Presidência da República desconhecia por completo, descobri depois. Como se imagina, não sou eu que registo inquéritos.” E acrescentou: “Não acredito de todo que no terreno os colegas do MP que têm a seu cargo os inquéritos escolham datas.”

Quando o jornalista a confrontou com o facto de o juiz de instrução criminal e de juízes da Relação terem desvalorizado as provas da Operação Influencer, considerando as suspeitas “vagas”, Lucília Gago lembrou que divergências do género acontecem frequentemente em matéria de criminalidade económico-financeira de elevada complexidade e muitas vezes por os magistrados judiciais não terem aquele nível de especialização. “O MP faz uma leitura. Na perspectiva do MP havia prova. esse entendimento não foi subscrito pelo juiz.” Porém, recordou, o processo não está fechado: “A investigação prossegue.”; “O que quero sublinhar é que as investigações prosseguem.”

Sobre se os magistrados do MP não poderão ter cometido um erro grosseiro, a magistrada que lidera a PGR defendeu os procuradores: “É muito difícil admitir um erro grosseiro porque os magistrados que têm a cargo estas investigações têm um elevado nível técnico e cuja competência nunca foi posta em causa.”

O silêncio de seis anos

Logo no início da entrevista, a PGR que termina o mandato no próximo outono disse: “Sempre considerei e considero que a descrição é bem melhor que o espalhafato. Não cultivo a popularidade, não preciso de estrelato. Sempre quis dar um contributo sério e honesto, numa lógica de absoluta isenção e retidão.” Admitiu que esse silêncio pode ter sido confundido com arrogância mas disse também nunca imaginar “que a crítica fosse tão forte e violenta nesse campo”.

Por falar em críticas, as que ficaram explícitas numa entrevista recente da ministra da Justiça ao Observador também não foram esquecidas. Nessa entrevista, Rita Alarcão Júdice disse que o diagnóstico do Ministério Público estava feito e que era preciso alguém com um novo perfil para arrumar a casa.” Ouvi essas declarações e fiquei algo incrédula e complexa”, declarou a PGR. E jogou ao ataque: “A certa altura [a ministra] disse que o diagnóstico estava feito, não disse qual, também não me disse numa audiência que lhe pedi e durou três horas. E essas declarações são graves porque estar a dizer que o MP tem falta de liderança e que tem de arrumar a casa, querendo dizer que nos últimos tempos houve perda de confiança no MP e na liderança.” E acrescentou: “Essas declarações juntam-se a outros que imputam ao MP tudo o que de mal se passa na justiça.” Lucília Gago recusa totalmente essas acusações e vinca que nunca ponderou demitir-se: “Nunca ponderei porque encaro o meu mandato que leva um cunho de rigor, de objetividade e de isenção.”

O que está a acontecer, neste momento, na sua opinião, é uma campanha orquestrada contra o Ministério Público e a sua liderança: “Estou consciente de que há uma campanha orquestrada em que se inscreve um conjunto alargado de pessoas que tiveram responsabilidades na vida da nação. Há muitas formas de exercer essa pressão e isso tem ocorrido.”

Sobre todas as críticas que lhe têm sido feitas, a PGR fez ainda questão de esclarecer que é falso que não se tenha disponibilizado para ser ouvida no Parlamento na data pedida e leu mesmo a resposta que deu à Assembleia da República.

Tema que não faltou foram as escutas, a propósito de João Galamba ter estado sob escuta durante quatro anos. É razoável? “Não é desejável nem é comum que as intercepções telefónicas durem tanto tempo, mas se assim foi é porque no decurso delas se foram descobrindo… no seu decurso se entendeu que era muito relevante a sua continuação.” E a sua continuação, sublinhou, não dependeu apenas do Ministério Público: “Foi autorizada por um magistrado judicial.”