Foi advogado de presos, deu negas a Cavaco e Durão. Será PR? “A minha vida política terminou”

Apaixonado pela política, Luís Marques Mendes passou por todos os cargos partidários possíveis e sentou-se em quase todos os lugares políticos. Recorrentemente apontado como candidato presidencial, garante que já fez tudo o que tinha a fazer. Mas também rejeitou por duas vezes os convites, antes de aceitar ser ministro. O também conselheiro de Estado recorda um caminho de mais de duas décadas e diz-se convicto das suas escolhas: saiu sem mágoas e a sua vida agora é para os netos e para as viagens.

É a sua cara que está na televisão à chegada e o programa passa de novo na despedida. O que Marques Mendes diz ao domingo à noite é seguido pelo país e é natural que, num restaurante frequentado pela alta política, destacados empresários e advogados, como é O Madeirense há anos, na televisão se veja o que importa.

Somos recebidos por Manuel Fernandes em doses iguais de simpatia e discrição – anfitrião experimentado, sabe dar atenção aos que o visitam sem os expor. Senta-nos na mezzanine, onde notamos outros, como o companheiro Rui Gomes da Silva, e traz-nos o delicioso bolo do caco com manteiga de alho e salgadinhos que nos entretenham até às espetadas do lombo em pau de louro.

Entre chamuças e pão, Luís leva-me a Guimarães, onde nasceu “fortuitamente”. “Sou de Fafe e foi lá que vivi até aos 28 anos, quando me mudei para Lisboa, mas fiz os dois últimos anos de liceu em Guimarães – ia e vinha de autocarro”, conta, saltando logo para o curso de Direito, feito à distância em Coimbra. “Só ia lá fazer os exames”, explica. E justifica a ausência com os primeiros passos na vida política, que lhe deram o estatuto de estudante-trabalhador. Quando vem o 25 de Abril, o filho do advogado e depois dirigente social-democrata não tinha ainda 17 anos. O que não o impediu de se estrear no PSD/Braga e apelar ao voto dos outros. Estava a bater os 18 quando Eurico de Melo lhe mudou a vida. “Foi em setembro de 1975, ele fora nomeado governador civil de Braga – o primeiro que não era PCP ou PS – e convidou-me para adjunto. Eu era um miúdo, fiquei tão surpreendido como você está”, ri-se. “Conhecia-me dos comícios, da atividade partidária; e eu, que sempre tive esta paixão, aceitei.”

Fê-lo e permaneceu, contra o melhor julgamento do pai, que não via o primogénito de quatro filhos acumular a política e a licenciatura em Direito; e provou-o errado, entre a irreverência que diz ser-lhe intrínseca e o empenho que preveniu qualquer chumbo.

Se a herança genética plantara a semente – o pai, António Marques Mendes, chegou a eurodeputado e vice-presidente da Assembleia –, a experiência proporcionada por Eurico de Melo deu-lhe alimento e, em dezembro de 1976, concorreu às primeiras autárquicas do país, por Fafe. E venceu, tornando-se vice-presidente e vereador a tempo inteiro num concelho que era “sociologicamente à esquerda”. “Tinha a pasta das Infraestruturas, numa altura em que todas as obras eram necessárias. Foi uma experiência fantástica”, recorda, explicando que ainda teve uma incursão como presidente da concelhia antes de acabar o curso, convencido de que a carreira política ficara por ali.

Tendo estagiado em Fafe, no escritório do pai, que tinha apenas mais um sócio, e casado com a namorada de liceu, Rosa, professora de Germânicas em Guimarães, com quem se juntou dias depois da revolução, acreditava que o seu tempo seria agora da advocacia. “De barra, que eu era um bom advogado de penal. Costumava dizer que metade dos presos da cadeia de Guimarães eram meus clientes”, volta a rir-se.

Recusa o milho frito que vem com as espetadas, trocado com força de vontade por saudáveis legumes. E não o convenço a tentar-se, ao contrário do que sucedeu quando foi convidado para o governo. “Isso teve muita graça… foi uma surpresa total”, diz-me, contando como recusou Cavaco por duas vezes. “Eu era vice da distrital de Braga e apoiei-o no congresso da Figueira da Foz, que o elegeu, em maio de 1985, mas não tínhamos intimidade nenhuma.” Eurico de Melo tinha, tal como a distrital de Braga e o seu presidente (“um dos meus maiores amigos”), Fernando Alberto da Silva – e isso resultou num convite para Luís Marques Mendes integrar a comissão política. Logo depois, caía o bloco central e nas eleições de setembro ele seria o único nome ausente da lista a deputado, porque não queria abandonar a advocacia e esvaziar o escritório.

Vontade e convicção seriam dobradas. Com a vitória do PSD, veio o telefonema de Dias Loureiro, secretário-geral do partido: pensou umas horas e disse não. Seguiu-se uma chamada a Lisboa, convocado a sentar-se com Cavaco Silva na Buenos Aires. “Ele forçou muito, mas de tarde voltei a dizer que não. E então surpreendeu-me com uma capacidade de persuasão notável e uma insistência fortíssima.” Deu-lhe dois dias para pensar e aceitar. E dias depois Marques Mendes estava de malas feitas para a nova vida em Lisboa, de onde não tornou a sair. A história repetir-se-ia em 2002, com o convite de Durão Barroso: recusou a Saúde, rejeitou o Ensino Superior; e quando julgava que o caso estava arrumado cedeu à insistência e assumiu a pasta dos Assuntos Parlamentares.

No cavaquismo, Marques Mendes foi secretário de Estado Adjunto, secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, ministro Adjunto do Primeiro-Ministro, e em cada um desses três governos teve um filho: João Pedro (37 anos, advogado como o pai e o avô), Ana Sofia (35, educadora no Colégio do Bom Sucesso) e João Miguel (30, economista). “Dizia-se de brincadeira que eu tinha decidido não ter mais filhos, por isso Cavaco Silva tinha de acabar a governação”, ri-se.

Aos 65 anos, goza hoje os “quase seis netos” (está a dias de aumentar a descendência) com uma dedicação que não conseguiu dispensar aos filhos. “A minha vida é preenchidíssima, entre a advocacia, o comentário e as palestras e os netos, que adoro. Sou felicíssimo por ser avô – levo-os ao parque, a comer gelados, tudo o que eles adoram e a que por vezes os pais torcem o nariz. De alguma forma, estou a compensar não ter estado muito presente para os filhos. E viajo imenso, sobretudo em cruzeiros”, elenca, pondo na lista de destinos visitados este ano Malta, Singapura e Malásia.

De resto, diz que leva uma vida previsível, com o desporto a equilibrar-lhe a saúde mental – “já fiz de tudo: futebol federado, andebol, ténis, bodyboard; agora vou ao ginásio quase todos os dias”.

Também no plano partidário, “devo ser dos poucos que exerceram praticamente todos os cargos que é possível: fui presidente da concelhia de Fafe, da distrital de Braga, do conselho de jurisdição distrital, do conselho nacional, da comissão política nacional, presidente do grupo parlamentar e do partido. E no plano político, só não fui três coisas: eurodeputado, primeiro-ministro e Presidente da República”. E gostava de ser Presidente? “Não, não, não, não, não, não. A minha vida política terminou há 15 anos e estou bem assim.” Insisto e recusa de novo: “Há um tempo para tudo. Eu não me arrependo nada da vida política, mas também não me arrependo nada de ter saído. Saí aos 50, é cedo, mas também comecei cedo: ninguém vai para o governo aos 28 anos ou é autarca aos 19.”

Pergunto-lhe se a política não é um vício, como fumar – de vez em quando volta a tentação. Agarra a deixa: “Eu deixei de fumar há muitos anos e nunca voltei às tentações do tabaco – fumo um charuto muito de vez em quando… Mas não, não, não… estou muito bem assim. Depois de ter saído da política, fui convidado para o governo, o Parlamento e autarquias e nunca aceitei.” E para a Presidência? “Isso é uma decisão do próprio. É simpático dizerem essas coisas, fico sensibilizado, mas nada aponta nesse sentido. Não vale a pena criar expetativas. Como disse Passos Coelho, nestas coisas nunca se diz nunca, mas não interprete isto como uma probabilidade, porque não é mesmo. Eu adoro o que faço. Dá-me imenso trabalho – a advocacia, o comentário político, que faço há 13 anos e onde comecei inesperadamente por convite do Paulo Magalhães – mas tenho imenso gosto.”

A verdade é que tem ainda palco político – chama-lhe “senatorial” –, como conselheiro de Estado. “Já o tive com Jorge Sampaio, que muito prezava e de quem fui muito amigo, com Cavaco Silva e agora com Marcelo Rebelo de Sousa”, enumera, aceitando que os protagonistas trazem nuances às reuniões mas o fórum vale por si, pela qualidade do debate, da direita à esquerda, mas “com um grau de influência muitíssimo relativo”.

Arrumadas as espetadas e dispensada a sobremesa, vêm dois cafés acompanhados de cortesia por bolo de mel e Vinho Madeira. Mais dois cafés e a conta. Ainda o desafio a apontar onde foi mais feliz. Não hesita – mesmo que diga tê-lo sido em tudo –, aponta o papel de líder parlamentar, que lhe permitia dar largas à costela de advogado de barra numa época pós-Cavaco, com Marcelo a liderar o PSD e Guterres a governar.

“Adorei, precisamente pelas condições negativas: em 1996, o partido estava desmobilizado e nós, ambos notívagos, tínhamos longas conversas ao telefone, enquanto Guterres dormia, a combinar como o derrotaríamos no outro dia”, lembra a rir, invocando Lucas Pires para dizer que a política tem um lado lúdico. “Não temos de andar sempre grávidos de interesse nacional – eu brinco imenso com a minha estatura.”

Ganhou admiração por Guterres – “não foi grande primeiro-ministro, mas era um senhor, tinha nível, princípios e um discurso corretíssimo” – e ainda mais quando lhe sucedeu José Sócrates, que “degradou por completo o discurso político”. A esse, entendeu de imediato as “graves falhas de caráter” e denunciou-as quando todos, incluindo à direita, idolatravam o então primeiro-ministro. Fê-lo na sequência do caso da licenciatura e de “uma série de suspeitas de anormalidades e ilegalidades” que já se colavam a Sócrates e reforçou a convicção ao negociar com ele o Pacto da Justiça. “Caíram-me em cima, incluindo dois dirigentes do meu partido.” Eram Dias Loureiro e Duarte Lima.

Foi um tempo difícil, também porque teve de tomar a decisão de afastar Isaltino Morais e Valentim Loureiro nas autárquicas. “Fi-lo sem apoio nenhum no PSD, por razões de ética política”, vinca. E acredita que, se o partido o censurou, o país o reconheceu, dando ao PSD a segunda maior vitória de sempre. “Às vezes há que sacrificar uma eleição para afirmar uma linha política de credibilidade.”

E agora? “Posso morrer amanhã que fiz tudo o que queria.” Eventualmente, fará publicar episódios e curiosidades vividos em mais de 20 anos de vida política. “Se tiver tempo e condições e distanciamento histórico, talvez…”

Artigo originalmente publicado na edição do NOVO de 22 de julho