Não é a primeira vez que escrevo sobre a necessidade de manter a política e o fanatismo religioso fora da saúde sexual e reprodutiva. É inegável que a ciência, o humanismo e a equidade devem ser os fios condutores das políticas públicas deste setor. E é importante relembrar, as vezes que forem precisas, que saúde sexual e reprodutiva não se resume apenas às questões do aborto seguro e doenças sexualmente transmissíveis. Segundo a Organização Mundial de Saúde, inclui igualmente a prevenção e tratamento de doença oncológica nos órgãos reprodutivos e a prevenção da violência sexual.

Passaram já quase dois anos desde a revogação do direito federal ao aborto nos Estados Unidos. Durante os 750 dias que decorreram, vários estados aproveitaram para recuar nos direitos das mulheres. Não me refiro apenas sobre o acesso a cuidados de saúde relacionados com o aborto: a agenda conservadora pretende acima de tudo controlar os corpos das mulheres, pelo que, após a restrição da interrupção voluntária da gravidez (IVG), é a contraceção que começa a ser tema e alvo de ataques. De facto, registou-se uma redução no consumo de métodos contracetivos nos Estados que mais recuaram no acesso ao aborto.

Os efeitos destas políticas há muito que são conhecidos. As experiências feitas neste campo na Polónia, El Salvador e Nicarágua – únicos países a par dos Estados Unidos que recuaram nestes direitos – são inequívocas: o aborto não diminuiu, aumentou a mortalidade materna e o número de mulheres presas e humilhadas. O desespero e o abandono é tanto que, em El Salvador, o suicídio é a terceira maior causa de morte das mulheres grávidas.

É inaceitável e bárbaro quando um país, perante uma mulher que sofreu um aborto espontâneo, opta não por promover o acesso a cuidados de saúde mental, mas escolhe perseguir, julgar e condenar a penas efetivas de prisão. Revolta saber que, na Europa, há países onde uma mulher grávida e com doença oncológica vê o seu acesso a cuidados de saúde vedados, condenando-a a uma lenta e dolorosa morte, a não ser que seja rica e possa cruzar a fronteira para ter acesso a cuidados seguros. Estamos perante um recuo civilizacional enorme, quando na Europa voltam a morrer mulheres por não terem acesso a cuidados de saúde pós-IVG.

Não devemos ficar surpreendidos que nos Estados Unidos aconteça o mesmo. O caminho é o mesmo, o destino só poderia ser semelhante. Nos últimos meses, foram pelo menos duas as mulheres que faleceram por falta de cuidados relacionados com a saúde sexual. O disfuncional sistema de saúde americano torna difícil um bom escrutínio em tempo real, pelo que o número real será, infelizmente, bem superior. Vários peritos afirmam que, em caso de uma restrição total federal, teria como consequência a morte de 140 mulheres por ano.

Assim, é sem surpresa que os estados onde se verificaram os maiores retrocessos de saúde sexual e reprodutiva sejam aqueles onde mais se observa a degradação dos indicadores de saúde materna e infantil. Também são estes estados que perderam mais médicos internos. O que demonstra que estas políticas conservadoras prejudicam a saúde de toda a sociedade, não apenas das mulheres.

Poderiam ser evitados, a nível mundial, 25% das mortes de mulheres na área da saúde materna, com melhor acesso a métodos de contraceção e aos cuidados de saúde relacionados com a IVG. Está na hora de se ser realmente pró-vida e salvar estas mulheres. Deixar de lado a ideologia e o fanatismo religioso e abraçar, de braços abertos, a ciência e o humanismo.

Perante as constantes propostas de regressão que os setores mais conservadores se entretêm a lançar no debate público, é importante relembrar que a lei portuguesa até é das mais restritivas a nível europeu. É indispensável contrapor que mesmo esta lei pequenina não é cumprida na totalidade, pois o serviço público de saúde não chega a todo lado nos exíguos prazos que são exigidos. É preciso afirmar que criminalizar nada resolve e que o que funciona, com provas dadas, é a melhoria das condições laborais, da escolaridade, da literacia em saúde, da condição socioeconómica, do acesso à saúde sexual e reprodutiva. Precisamos de progresso em todas estas áreas. Não nos tirem o futuro.

Enfermeiro da Urgência Pediátrica e coordenador da Unidade de Saúde Pública Hospitalar do Hospital Fernando Fonseca