À mesa d’O Madeirense em que habitualmente se sentava Almeida Santos, histórico do seu Partido Socialista e um amigo, Eduardo Barroso faz deste almoço uma pausa na promoção que anda a fazer do livro que publicou há dias, Coração ao Pé da Boca – Memórias de Um Cirurgião. “Abdiquei das receitas em favor de causas solidárias à escolha da editora, mas tenho feito este esforço para ajudar a vender”, explica. É um hábito de vida, na verdade, o de entregar a quem possa trazer dessa receita (que a ele não fazia falta) bons frutos, pôr os pagamentos daquilo que não é a sua atividade principal, sobretudo o que escreve, a beneficiar causas. “O livro Prazeres deu 20 mil contos à Casa Amarela, instituição da Misericórdia que ajudava na luta contra a droga. Vendeu mais de 100 mil exemplares”, recorda.

Pede um bife, “mal passado, com batatas fritas e arroz branco e ovo estrelado – peixe já basta o que a minha mulher me obriga a comer”, ri-se. Descontraído, gosta de comer bem, de viver bem, de conversar bem. Aprecia as coisas melhores da vida e assume-o como poucos. Seja no apoio convicto a Pedro Nuno Santos (“Eu adorei os tempos da geringonça!”) seja na defesa de um SNS transformado, em que o primeiro S tem de deixar de ser o original, de Serviço, para se tornar Sistema.

Servido o bife e o cabrito assado no forno – que aqui se faz a preceito e se desfaz de macio e saboroso –, explica que quis escrever este relato do que foi para perspetivar, a partir do seu exemplo, o que deve ser. E sobretudo para contribuir para a reflexão de como a saúde deve reorganizar-se – o que até já o levou a sugerir ao Presidente da República, de quem é amigo quase siamês, a fazer uns Estados Gerais que permitissem traçar as linhas mais importantes para reformar o sector, subtraindo à equação a carga ideológica.

Sem papas na língua – o próprio amigo Marcelo recomendou-lhe que não as tivesse, após uma derrota desastrosa num debate com Sampaio, para a Câmara de Lisboa, em que o hoje PR prescindiu da sua forma de ser em nome do que lhe recomendava o consultor de comunicação –, diz que não há novidade no que se vê nas urgências. “Sempre foi assim, mas agora temos uns médicos terroristas que não querem fazer aquelas horas extra. Eu fazia 80 por semana, no mínimo, porque ser médico não é ser funcionário público.” Reconhece porém que o SNS não pode manter-se como há 40 anos, deve abarcar público, privado e sector social, em cooperação, equilibrado sobre uma boa base pública, sem descurar nem sobrevalorizar o lado do negócio. Rejeita a ideia de se obrigar médicos à exclusividade – “seria acabar com várias especialidades no público” –, mas via vantagem em fazê-los ficar dois anos após a sua formação. “É um período razoável e todos os anos teria 30 cirurgiões jovens, que hoje vão diretos para fora ou para o privado.” E defende com todas as forças que se recupere o prestígio das carreiras e se valorizem os centros de referência.

Das Índias
“Parir é um ato fisiológico, ainda que se deva ter cuidados”, diz-me, antes de contar que ele e os irmãos nasceram em casa, na Rua Nova da Piedade, com o pai (José Jacques da Cunha Garcia da Silva) a assistir. Aos 16 meses entrava para o vizinho Lar da Criança, onde conheceu o PR; eram o Marcelo e o Eduardinho, os preferidos da Bertinha, que em tempos de maior aperto – quando nasceu a irmã mais nova, seria impossível ter três no colégio – o manteve nas aulas sem pagar. Conta como nesses tempos teve o ano mais feliz, aquele em que os dois amigos, melhores alunos do ano, repetiram a 4.ª classe: “O Marcelo fazia anos a 12 de dezembro e eu a 26 de janeiro; só podíamos fazer o exame de admissão se fizéssemos anos até setembro.” Querendo que o filho se antecipasse e sendo amiga de casa, a mãe de Eduardo (a engenheira química Fernanda de Jesus Barroso) falou a Baltasar Rebelo de Sousa, que tinha poder para o decidir, pedindo-lhe que permitisse a Eduardo fazer o exame um ano antes. “Ele recusou porque essa decisão também beneficiaria o seu filho Marcelo.” Se poria o filho em vantagem, nada feito. “Foi bonito”, recorda.

Se parece estranho que o pai não tivesse aqui um papel, a razão é simples: o médico emigrara para a Índia antes de Eduardo cumprir três anos. “Eu só o conheci aos 11 anos (antes não me lembro), quando lá fui visitá-lo nas férias grandes. Eram 36 horas aos saltinhos – Lisboa-Malta-Beirute-Damasco-Karachi-Goa – num avião a quatro hélices da TAP, em que o comandante Solano, a quem eu e o meu irmão íamos entregues, levava o cotovelo fora da janela, como se fosse de carro. As pessoas mais pesadas iam atrás para dar balanço na descolagem – essas imagens ficaram-me gravadas na memória.” O ambiente já era, nesse verão de 1960, tenso e a invasão chegaria logo no ano seguinte, trazendo o pai de volta a Lisboa. Mas não seria um regresso feliz: em poucos meses, Eduardo e os irmãos entregavam aos pais um abaixo-assinado a exigir o divórcio porque não os suportavam a discutir. O pai casaria mais tarde com Luísa, que viera com ele da Índia “e fazia um caril fenomenal”, e juntos partiriam para Moçambique, onde José Jacques ficaria “diretor do Hospital da Machava e amigo de toda a gente”.

Por cá, Eduardo poderia ter seguido a turma-piloto que abria no Pedro Nunes, reservada aos melhores alunos – a sua classificação no exame foi até acima de Marcelo –, mas iria antes para o Colégio Moderno, onde ficou interno um ano, beneficiando da amizade da família. O desporto deu-lhe ali companheiros, mas “amizade fraterna foi a que trouxe do Lar da Criança”. E foi com ele, Marcelo e Luís Ferreira que se fez a Associação de Antigos Alunos. Do Moderno seguiu, naturalmente, para a Medicina que escolhera ainda antes de aprender a ler. “Lá em casa, contavam que eu destruía os ursos de peluche para os operar, mas eu destruía-os por ciúme: o mais velho era o Marinho, a Gracinha era a princesa, e eu era o irmão do meio e ninguém me ligava nenhuma”, ri-se. Quis o destino, porém, que se fizesse uma espécie de filho único: aos 18 anos, o irmão foi para França, aos 15 a irmã ia estudar ballet para a melhor escola da Europa, em Cannes e depois Estrasburgo (mais tarde traria os seus dotes de prima ballerina para a Gulbenkian e “João Salaviza aceitou ser diretor dessa casa por ela”, orgulha-se), ficou ele com a mãe em exclusivo e as vantagens das visitas aos irmãos.

A maior paixão
Não é difícil ver que a medicina, em particular o transplante, é o que empurra Eduardo Barroso na vida. “Isto tem uma urgência única… Tantas vezes interrompi férias, jantares, festas para ir fazer transplantes”, conta, assumindo que desde muito jovem fazia “uma loucura de horas, incluindo dois bancos de 24 horas por semana, um deles como voluntário, e ainda ajudava os colegas da privada porque não o podia negar”. Fazia o que gostava, treinava para ser o melhor – e foi, ainda que isso lhe custasse o primeiro casamento: foi dos mais jovens médicos a entrarem para os Hospitais Civis de Lisboa, aos 30 anos, depois de fazer exame à Ordem até antes da especialidade. Foi precoce, mas é ao talento e ao trabalho que deve o merecido prestígio.

Desde que, em 1983, foi descoberta a droga que combatia a rejeição dos órgãos e os transplantes hepáticos viraram modalidade terapêutica, não descansou enquanto não criou (com o dr. Rodrigues Pena) uma grande unidade de Hepatologia Moderna, que oferecia aos doentes dos tratamentos mais simples ao mais complexo. Fez-se diretor do Serviço de Cirurgia Geral e Unidade de Transplantação e do Centro Hepato-Bilio-Pancreático e Transplantação do Curry Cabral, referência mundial na área. “Chegámos a líderes na Europa, dos melhores do mundo.” Num ano, faziam-se ali mais de mil transplantes hepáticos.

Nessas conquistas, em que não tinha horário de trabalho porque era essa toda a sua vida, reconhece o papel de “Manela”, a quem se juntou há 42 anos – e a quem dedica o presente livro. Estavam juntos há meses quando decidiu ir para Cambridge especializar-se e se ela não tem aceitado ir talvez a sua vida não fosse esta. “Ela apaixonou-se por um cirurgião jovem, giraço, com uma boa vida, e eu propunha-lhe vender tudo para ir estudar para fora.” Era o tempo de Thatcher e chegaram com a libra a valer 60 escudos; dois anos depois, quando regressaram já com um filho ao colo, estava a 120. Conta-me que por pouco não foi preso por lá: não estando legalmente divorciados das primeiras uniões, não queriam deixá-los sair com o bebé e se alguém na sala do consulado não o tem reconhecido como sobrinho do então Presidente Mário Soares era bem provável que tivesse tentado, com reduzidas hipóteses de sucesso, trazer a criança escondida.

Sportinguista desde que nasceu (a mãe foi campeã nacional de ginástica aos 40 anos) – com cativo para toda a família em Alvalade, onde é vizinho da família de Jorge Sampaio, de quem foi médico –, diz que Bruno de Carvalho foi “o melhor presidente que o clube já teve” (“o segundo mandato foi um desastre…”). Atenuou essa paixão quando se fez presidente da mesa da assembleia. “Fui muito maltratado. As pessoas são más e servem-se dos clubes…”

Agora que a sua paixão maior e mais longa também lhe rouba menos tempo, faz planos de voltar à Índia, com os filhos Francisco e Eduardo, e os quatro netos (entre os 20 e os quatro anos). “Já lá fui oito vezes, desde aquela primeira visita. Ia este ano, mas tive de adiar… Eu vivi muito bem, ganhei muito dinheiro, mas gastei tudo, não acautelei bem a reforma”, diz, sem remorso. Alguma coisa fez: quando podia, comprou uma generosa casa que agora lhe servirá para financiar essa viagem.

De resto, diz-me já a terminar o café e o pastel de nata, não vai parar de pensar e de fazer o que pode para nos garantir uma melhor saúde. Cita Borges de Almeida, de quem foi inimigo político e depois amigo: “Os cirurgiões são como os toiros, são perigosos quando estão sozinhos.” “E eu quero ajudar os portugueses a escolherem melhor os seus médicos.”

Artigo publicado na edição do NOVO de 25 de novembro