1. São múltiplos os relatórios técnicos e estudos científicos levados a cabo nos últimos anos que têm vindo a atestar que as intervenções/manifestações de natureza artística (tanto numa perspectiva (co-)criativa e participativa como na sua vertente de fruição) se revelam benéficas para a saúde mental e física dos indivíduos. Já num plano clínico, e ancorados em diferentes modelos e metodologias, são inúmeras e heterogéneas as práticas terapêuticas e os projetos interdisciplinares e colaborativos, já implementados e/ou em curso em muitos países, que interseccionam harmoniosa e eficazmente arte e saúde.

Paralelamente, há uma convicção cada vez mais generalizada da correlação entre os determinantes sociais da saúde (estabilidade económica; educação; comunidade e contexto social; sistema de saúde; e vizinhança e ambiente envolvente) e a qualidade de vida e bem-estar das populações. Esta associação reveste-se de particular acuidade na saúde mental e em questões como sentimentos de solidão e medo, problemas emocionais diversos, quadros de ansiedade e depressão, insatisfação profissional ou burnout. Alguns autores, como Muir Gray e Anant Jani (Universidade de Oxford), preconizam mesmo que os fatores de índole social são responsáveis por cerca de 70% dos outcomes de saúde, sendo que vários estudos estimam que aproximadamente 20% dos utentes procuram o médico de família por motivos primariamente de âmbito social e cuja intervenção mais adequada não passará por uma atitude médica ou farmacológica no seu sentido convencional.

Soma-se o facto de, nos últimos anos, se ter assistido, a nível mundial, a um crescimento exponencial do número de pessoas com doença mental, prevendo-se que em 2030 esta área – ainda muito envolta em estigma, silêncio e invisibilidade (é a tão glosada metáfora do iceberg) – constitua mesmo, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), uma das principais causas de morte. Em Portugal, as patologias mentais atingem cerca de um terço da população, tornando-o no segundo país europeu com mais elevada prevalência de doenças psiquiátricas, só ultrapassado, e pouco, pela Irlanda do Norte.

Em Dezembro de 2022, em Budapeste, uma conferência internacional reunia um eclético conjunto de protagonistas (das artes à saúde, da política e gestão à investigação) para um “estado da arte” sobre o papel das intervenções artísticas no campo da saúde, ao nível das doenças crónicas não transmissíveis (DCNT). Dessa iniciativa resultou um importante relatório publicado em 2023 pela World Health Organization (WHO), e as conclusões são ilustrativas: este é, de facto, um “growing momentum” para a integração formal das artes/criatividade no sector da saúde como uma pertinente e útil ferramenta de complemento ao tratamento médico e, assim, aos contextos e práticas terapêuticos.

Este território era, até há alguns anos, encarado por algumas franjas/vozes da comunidade ligada aos cuidados de saúde com preconceito, cepticismo ou indiferença, centrando-se então a tónica na necessidade de mais evidências concretas das potencialidades e impactos positivos desta relação virtuosa. Hoje existe uma consciência crescente de que se trata de um campo de intervenção verdadeiramente fértil e estimulante, e de que devem ser desenvolvidas soluções criativas, transdisciplinares e cientificamente sustentadas que contribuam para promover, empoderar e consolidar o ecossistema arte-saúde em função dos complexos desafios clínicos e de bem-estar com que a sociedade contemporânea se depara.

Além de a participação nas artes constituir, per se, um comportamento saudável, a aplicação de conteúdos e formatos artísticos na prevenção e controlo de doenças (mormente na saúde mental, nos distúrbios relacionados com a idade e nas doenças crónicas, das cardiovasculares às oncológicas) pode revelar-se muito impactante e transformadora, numa lógica mais centrada no cuidado, na dimensão paliativa e na melhoria do que propriamente na cura.

Recorde-se que as iniciativas de base artística apresentam um cariz não invasivo e um baixo risco em termos de saúde, podendo ainda fornecer relevantes insights e significados a nível comportamental e cultural. Além disso, incrementam o envolvimento, participação e disseminação públicos, geram mudanças de atitude perante a doença (face a barreiras e estigmas enraizados na tessitura social) e estimulam o surgimento de novos chips na construção de uma renovada cultura, social e organizacional, de saúde e bem-estar. Isto porque as atividades que conjugam artes e saúde apresentam uma matriz multimodal, agindo nos planos psicológico, comportamental e social, todos estes fundamentais na prevenção e gestão das DCNT.

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2. Existem diferentes modalidades de integração de conteúdos culturais e artísticos no universo da saúde, não se resumindo ou limitando esta convergência a uma única visão conceptual, modelo ou modo de implementação. É neste âmbito que surge, por exemplo, a prescrição social (que, em geral, inclui uma significativa componente cultural), com origem no Reino Unido há mais de vinte anos e já amplamente disseminada por várias geografias europeias e também numa escala global.

Não obstante poder haver outros canais de entrada e circuitos nessa lógica prescritiva, na sua essência esta consiste na implementação de uma abordagem, já testada e normalizada em termos metodológicos, que se inicia nos cuidados primários de saúde e que prossegue, através de propostas de referenciação dos utentes, para link-workers (técnicos de serviço social ou outros mediadores) devidamente capacitados para a avaliação dos pacientes e conhecedores das suas realidades comunitárias. Estes profissionais, por sua vez, dinamizam entrevistas com os utentes, identificando os diversos fatores facilitadores do seu envolvimento com as artes (a nível de capacidade, oportunidade e motivação), e encaminham-nos para o contacto com os agentes culturais e, assim, para um conjunto estruturado de atividades, consideradas potencialmente reabilitadoras, a experienciar durante um período definido como temporalmente adequado. Segue-se, numa lógica de acompanhamento e monitorização, a partilha da informação, pelos utentes, sobre a prescrição cultural com o médico de família e outros atores.

Este instrumento alternativo de terapia pode englobar diversas tipologias de atividades (“receptivas e/ou observacionais” e de “participação ativa”) constantes das agendas culturais, abarcando música, teatro, dança, leitura e escrita criativa, narração oral, artes plásticas e não só, isto de acordo com os perfis e necessidades dos utentes, empoderando-os também, por esta via, para um maior auto-cuidado e uma melhor gestão do seu bem-estar e qualidade de vida e doença.

Em Portugal, a prescrição social surge, de um modo assumido e organizado, em 2018 no seio do agrupamento dos centros de saúde de Lisboa Central, mais concretamente na Unidade de Saúde Familiar da Baixa, em parceria com a Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP-NOVA). Esta instituição académica, juntamente com o ACES Lisboa Central – USF da Baixa e USF Almirante, lançou depois o NOVA Grupo de Investigação em Prescrição Social (NOVA GIPS), no sentido de, através da investigação multidisciplinar e da cooperação intersectorial, estimular, estruturar e muscular a intervenção dos profissionais (da implementação à avaliação) em torno da prescrição social, construindo parcerias institucionais alargadas e fixando novas âncoras no território ao nível de projetos-piloto e boas práticas, com o fito de arquitetar uma rede nacional de prescrição social, a qual será lançada em Abril deste ano na Fundação Calouste Gulbenkian.

O Museu Nacional de História Natural e da Ciência da Universidade (num consórcio com as Unidades de Saúde Familiar da Baixa e Almirante, o Museu de São Roque e a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa) tem igualmente dinamizado um projeto de prescrição social em torno do museu e dos jardins botânicos, numa abordagem mais centrada na dimensão cultural e destinada particularmente a estudantes universitários, seniores e comunidades vizinhas.

É de destacar ainda, pelo seu pioneirismo fora das principais metrópoles, e igualmente inspirado em modelos europeus, o projeto de prescrição cultural que decorreu até final de 2023 em oito municípios do Alentejo Central (Alandroal, Arraiolos, Borba, Évora, Estremoz, Montemor-o-Novo, Portel e Redondo). Trata-se de um trabalho continuado e estruturado, conduzido pela equipa da associação cultural Pó de Vir a Ser (sediada em Évora), e que contou com financiamento da Comunidade Intermunicipal do Alentejo Central através do programa “Transforma”, sendo ainda apoiado pela Administração Regional de Saúde e seus centros de saúde. Atente-se no rigoroso e ilustrativo manual de apoio sobre prescrição cultural produzido em 2022 neste âmbito, o qual contém diversos capítulos com informação útil e atualizada, quer numa óptica mais teórica quer na sua aplicação no terreno.

Relativamente a estes e outros exemplos de prescrição cultural, será fundamental ter em conta quatro aspectos: o facto de haver dois níveis de intervenção com objetivos distintos, mesmo que interligados, ou seja, de um lado as práticas preventivas no domínio da saúde e do outro as que visam já um controlo da doença (mental ou outra); que estas intersecções inovadoras possam ter uma efetiva continuidade e consolidação no terreno, sendo exploradas em toda a sua potência e impacto; que se invista no domínio da capacitação dos profissionais destas áreas, bem como na literacia em torno desta articulação disciplinar; e que, em termos de monitorização, avaliação e reflexão crítica, haja também produção de pensamento científico, sendo elaborados, publicados e discutidos relatórios e outros estudos sobre as mesmas.

Enquanto intervenção inovadora, a prescrição social/cultural contribui para a criação de comunidades mais saudáveis, inclusivas e coesas. Ao colocar a tónica na pessoa, incrementa a sua saúde física e mental e, assim, o seu estilo de vida, promove a participação ativa e o suporte social. Por assentar numa intervenção em rede, privilegia ainda a integração e proximidade, valoriza o sector social e permite respostas mais ágeis e eficientes. E no que toca à sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde, esta abordagem contribuirá para uma redução do custo dos cuidados prestados, bem como para uma utilização mais eficiente dos serviços de saúde.

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3. Sendo o ecossistema arte-saúde um universo muito plural e heterogéneo, há que distinguir as abordagens enquadradas mais estritamente no âmbito da prescrição social/cultural de outras, igualmente relevantes, que cruzam arte e saúde recorrendo a diferentes estratégias e formatos. Seguem-se agora alguns exemplos deste último (e plural) universo.

Desde logo, um destaque para a associação P28/Manicómio, que aposta na promoção de trabalhos de artistas com experiência de doença mental, através de um espaço de criação, hub social e galeria de Arte Bruta, num cowork regular juntando artistas-doentes a outros criativos, e incluindo ainda a primeira agência de design e comunicação com criativos com doença mental. A estas valências culturais juntam-se o projeto solidário “Consultas sem paredes”, realizado em contextos não convencionais e em modo site specific (como no MAAT, em Lisboa), bem como, mais recentemente, o primeiro co-living de saúde mental em Portugal, situado em Cascais, que inclui uma equipa multidisciplinar de profissionais e um conjunto de atividades terapêuticas, artísticas e desportivas que potenciam o bem-estar e a vivência em comunidade.

Desde 2018, o Festival Mental, dinamizado pela associação Safe Space Portugal, explora diálogos e intersecções criativas entre as artes (cinema, artes plásticas, música, teatro, performance, etc.), o pensamento/reflexão crítica, o engagement e a saúde mental. E, em 2020, a própria Direção-Geral das Artes lançaria, de modo inédito, um programa de apoio em parceria sobre arte e saúde mental, tendo financiado, durante dois anos, vários projetos artísticos independentes disseminados pelo território nacional.

A Sociedade Portuguesa de Arte-Terapia (criada em 1997), por seu lado, tem vindo a aplicar e difundir novas abordagens terapêuticas no tratamento de patologias mentais, por um lado assentes num modelo triangular paciente-terapeuta-criação artística e, por outro, na promoção da arte-psicoterapia nas suas várias modalidades. Note-se, a este propósito, que a arte-terapia carece de uma regulação profissional ainda não existente em Portugal (há uma petição pública em circulação), visando uma maior valorização e reconhecimento desta profissão.

Já a iniciativa “Marcar o Lugar” – desenhada pela Associação Alzheimer Portugal juntamente com a Acesso Cultura, Museu de Lisboa, Universidade Católica Portuguesa, Sofia Cabrita e Margarida Mestre – traduz-se em visitas-oficina realizadas no MAAT e dirigidas a pessoas com demência e seus cuidadores, as quais incluem, numa lógica grupal, a fruição e reflexão sobre obras de arte e a realização de atividades de produção plástica, bem como outras estratégias de exploração criativa das exposições patentes ao público.

No que concerne a intervenções artísticas em contextos clínicos – e apenas para citar dois exemplos de maior longevidade e consistência –, a Operação Nariz Vermelho, encetada em 2002, tem desempenhado um papel fundamental junto dos serviços pediátricos de muitas instituições hospitalares portuguesas, através da visita de palhaços profissionais, devidamente capacitados para este tipo específico de intervenção, a crianças internadas e seus familiares. Já a associação Palhaços d’Opital, fundada em 2013, tem incidido a sua ação junto de adultos e, mormente, de seniores em ambiente hospitalar, integrando na sua equipa não só palhaços como também atores, músicos e outros perfis com experiência performativa, privilegiando igualmente uma forte dimensão de formação interna e externa.

No campo teatral, por exemplo, note-se o trabalho que tem sido desenvolvido, numa lógica de continuidade, pela companhia profissional Marionet, sediada em Coimbra, a qual, quer através do seu Laboratório do Desconhecimento (iniciativa de pesquisa, reflexão interdisciplinar e criação) quer da produção de múltiplas peças e outros formatos, tem especializado a sua intervenção artística nos cruzamentos entre teatro e ciência, incidindo amiúde em temáticas ligadas à saúde física e mental.

Várias outras entidades (públicas e privadas) têm, por vias diversas, destacado a importância do recurso às artes no campo da saúde e bem-estar, como, por exemplo, a Ordem dos Psicólogos, a Coordenação Nacional das Políticas de Saúde Mental, a Sociedade Portuguesa de Literacia em Saúde (veja-se o projeto “Do Passo ao Abraço: Longevidade Ativa e Tratamento Integrado”), o Centro de Investigação Interdisciplinar em Saúde (CIIS) da Universidade Católica Portuguesa, a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, o MAAT, a Fundação Calouste Gulbenkian ou o Centro de Arte Oliva, sediado em São João da Madeira, onde está depositada a colecção de Arte Bruta “Treger Saint Silvestre”.

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4. Como já salientado, a prescrição social e, nesse âmbito, o acesso às artes têm um papel especialmente relevante no campo da saúde mental. No precursor Reino Unido foi criada em 2018 a Rede MARCH, que aglutina grupos comunitários, centros clínicos, organizações artísticas e investigadores no sentido de desenvolver a investigação sobre saúde mental e apoiar a integração das artes e de atividades comunitárias mais vastas nos programas de saúde e de assistência social. Já em 2022 esta rede produziu um importante relatório que versa sobre formas de melhorar coletivamente a introdução das artes no domínio da saúde mental, baseando-se em novas investigações e estudos de casos de práticas comunitárias.

Nesta linha, é possível identificar – para o caso inglês, mas facilmente replicável para outras realidades, como a portuguesa – um conjunto vasto de barreiras e desafios que tanto os agentes e organizações culturais/artísticas como a área social, os potenciais utentes e o sector clínico enfrentam quando se parte para a implementação e disseminação de modelos como a prescrição social e cultural, já com reconhecidos benefícios individuais e sistémicos validados internacionalmente.

No caso das estruturas culturais, é preciso ter em conta um conjunto de fatores que vão: do programa artístico à figura do link worker (ponto focal de ligação/facilitador/mediador social ou cultural); das fontes de financiamento às parcerias institucionais e relações informais; da capacitação das equipas ao recurso a boas práticas já testadas e consolidadas; dos mecanismos de acompanhamento e avaliação à proteção de dados pessoais; das políticas de salvaguarda e da dimensão do cuidado com os envolvidos no processo às estratégias de comunicação; da investigação interdisciplinar à promoção e sensibilização públicas para esta visão holística, integrada e colaborativa.

Como enfatiza o relatório produzido pela World Health Organization (WHO) e publicado em 2023 no seguimento da conferência realizada no final de 2022 em Budapeste sobre o tema “Learning from the arts”, o desenho destes projetos deve articular a natureza e idiossincrasias do enfoque artístico com a criação de um ambiente de efetiva participação/experienciação e sociabilização, do qual resultem impactos tanto artísticos como psicossociais e científicos. Nestas dinâmicas deve privilegiar-se a inclusão de jovens e idosos, pois estas abordagens, pela sua natureza, podem contribuir para esbater o fosso entre cultura e saúde, mas também entre gerações, devendo ser equitativas, inclusivas e acessíveis. É importante também que os planos de intervenção neste domínio tenham a preocupação de, ao nível da sua dimensão e escala, ser configurados para contextos controlados e calibrados para uma disseminação local.

Esta modalidade de prescrição também inquieta certas entidades culturais pelo seu receio de sentirem que a dimensão estético-artística do seu trabalho poderá ficar subalternizada (ou ser, de algum modo, “instrumentalizada”) nestes processos e que, do ponto de vista identitário, podem ser confundidas com organizações de saúde mental e não com agentes culturais e artísticos; ou de que, eventualmente, o seu próprio know-how e modus operandi poderão ser subvalorizados por parceiros da área da saúde. É ainda comum identificar, junto destas organizações, diversas preocupações com a falta de competências, formação e apoio para trabalhar com públicos-alvo específicos (com experiência de doença mental, por exemplo) e para gerir questões como as responsabilidades legais e a proteção de dados pessoais. Assim como com a ausência, neste âmbito específico, de parcerias musculadas e continuadas nos territórios, e de programas e linhas de apoio financeiro para desenvolver projetos mais dirigidos a estes objetivos.

Por outro lado, a prescrição cultural também pode constituir um desafio e uma oportunidade para determinados agentes – não apenas os de cariz independente ligados ao terceiro sector, mas também, por exemplo, as autarquias – explorarem novas ou renovadas abordagens, dinâmicas e formatos de criação, programação e mediação culturais desenhados de modo mais direcionado para estes públicos-alvo. Nesta linha, a construção de projetos artísticos inovadores, com colaborações provindas de várias disciplinas, contribuirá também para questionar, desconstruir e aclarar, de modo crítico e criativo, a temática da saúde mental e o universo psicossocial que lhe está associado.

Por norma, este modelo prescritivo aproveita a oferta de atividades e eventos já existente e em curso nas comunidades como “receituário” prioritário. Mas, atendendo aos vários perfis e necessidades dos utentes, existir uma programação mais densa, plural e multidisciplinar nas comunidades locais permitirá a quem prescreve ter uma maior panóplia de opções, nomeadamente quando se está perante pessoas já com experiência de doença mental e não apenas numa óptica de prevenção da saúde mental. Ou seja, há uma íntima correlação entre o impacto e eficácia da prescrição cultural e a própria robustez, diversidade e qualidade da oferta cultural existente nos territórios.

Ainda no plano comunitário, a prescrição social e cultural também acaba funcionando como um barómetro de outros aspectos estruturais que habitualmente – e ainda mais no caso dos potenciais destinatários deste modelo prescritivo – influenciam a adesão dos cidadãos à oferta cultural existente na comunidade. É o caso de uma rede de transportes que permita deslocações mais facilitadas, dos preços dos ingressos nos eventos, dos horários fixados para as atividades culturais, do grau de informação que têm (ou não) sobre as mesmas a nível de comunicação institucional, entre outros fatores que condicionam, em maior ou menor grau, o acesso físico, social e intelectual à participação cultural e, assim, à possibilidade de integração dessa oferta em esquemas de prescrição. É por isso que se afigura essencial que a comunidade esteja robustecida e seja dotada de recursos e respostas plurais, adequadas e eficazes para corresponder positivamente aos objetivos da prescrição social.

Além destes aspectos que têm a ver com a oportunidade a nível comportamental (tendo aqui por referência o conhecido modelo COM-B), os utentes – sobretudo aqueles com experiência de doença mental – podem deparar-se ainda com barreiras a nível da sua capacidade, relativos à facilidade ou não em superar limitações de ordem psicológica e/ou física que condicionem a sua autonomia na participação nas atividades prescritas. Somam-se eventuais obstáculos de natureza motivacional, ligados a processos cognitivos conscientes e inconscientes. Estes materializam-se mormente em falta de confiança de alguns utentes nas suas faculdades e num sentimento de desconforto e insegurança, por considerarem que têm menos preparação, menor facilidade de adaptação/aprendizagem ou que são menos competentes do que as outras pessoas, provocando-lhes, assim, receio de rejeição pelo coletivo.

Voltando ao plano contextual: a necessidade de articular a implementação das intervenções de prescrição cultural com o trabalho desenvolvido pelas autarquias também acaba desvelando até que ponto, no seio destas, existe (ou não) um diálogo e concertação efetivos entre os sectores social e cultural ao nível das estratégias e planos de intervenção e das respectivas iniciativas e projetos associados – campo colaborativo onde, em não poucas geografias, ainda há muito trabalho a empreender.

Neste ponto, é de sublinhar que os princípios que subjazem ao modelo da prescrição social e cultural não podem ser descurados ou deturpados ao se tentar, por vezes, a nível institucional, inserir estas práticas em programas ou mecanismos municipais de apoio social, como, por exemplo, o RSI (Rendimento Social de Inserção), o qual pressupõe, como é sabido, um conjunto de obrigações para os contemplados com o mesmo. Isto porque a prescrição social e cultural não é, em si mesma, um instrumento de combate à pobreza ou ao desemprego, implicando, à partida, o preenchimento de um conjunto de requisitos que cruza critérios clínicos de elegibilidade com os determinantes sociais da saúde, e uma adesão voluntária e “negociada” dos utentes ao modelo mediante um compromisso estabelecido entre as partes.

O universo clínico também se debate com vários desafios face à prescrição social e cultural. Ainda que ao longo da sua formação os médicos tenham aprendizagens acerca do modelo biopsicossocial e dos determinantes sociais da saúde (DSS), nem sempre são capacitados sobre a forma como devem gerir, em contextos de cuidados primários, as situações em que os utentes se apresentam com problemas e preocupações não estritamente (ou não apenas) médicas, mas antes mais relacionadas com questões psicossociais.

Por outro lado, por falta de tempo ou interesse e/ou devido à rotatividade laboral, muitas vezes os médicos desconhecem os recursos socioculturais da comunidade local ou não sabem como referenciar os utentes para os mesmos – daí também a importância dos programas de prescrição social organizados e das figuras do interlocutor local/mediador/facilitador, o qual, provindo dos sectores social ou cultural, deve possuir um perfil e formação adequados e um conhecimento aprofundado e abrangente da realidade local nas suas várias dimensões e estratos. Por isso, uma ligação mais próxima com as organizações comunitárias é também fundamental para que os profissionais de saúde possam estar mais informados, explicar melhor e persuadir os seus pacientes a adotar a prescrição social/cultural.

Como também frisa o já aludido relatório Learning from the arts, é ainda fundamental construir, numa lógica bottom-up, uma comunidade de aprendizagens e boas práticas em torno do ecossistema arte-saúde, a qual albergue os múltiplos stakeholders e disciplinas deste amplexo, redefinindo prioridades, gerando/diversificando colaborações e mantendo a vitalidade deste momento de crescimento. E que essas comunidades locais de cooperação possam evoluir para uma dimensão regional, fazendo sentido que este ecossistema possa integrar Regional Innovation Valleys (RIVs), na linha da nova agenda de inovação da Comissão Europeia. Isso permitirá aceder a fundos comunitários, conferindo maior sustentabilidade e previsibilidade aos projetos, investir na capacitação, aprofundar as sinergias e mecanismos de cooperação nacional, e criar redes colaborativas com outros países e suas boas práticas.

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5. Sobretudo na última década, tem vindo, assim, a crescer em Portugal um importante ecossistema de estruturas (públicas e privadas), projetos e dinâmicas que conecta, com consistência, inovação e eficácia, o campo da cultura/artes e sua dimensão criativa, a área social/comunitária e o universo clínico, sobretudo no segmento da saúde mental. Nessa linha, a prescrição social/cultural, a intervenção artística em contexto hospitalar e outros projetos afins em contextos não convencionais, além da arte-terapia e da arte-psicoterapia, têm desempenhado um papel decisivo enquanto dinâmicas de alavancagem dessa conexão triangular.

Para afirmar e consolidar o ecossistema arte-saúde, são necessárias, contudo, políticas públicas estruturais, planos de intervenção e programas de financiamento a pensar nas suas várias dimensões: investigação académica; criação de projetos multidisciplinares; mediação sociocultural; capacitação profissional e produção de recursos educativos e outras ferramentas de apoio; literacia para a saúde junto de crianças e jovens, com recurso criativo às artes; monitorização e avaliação de práticas; e sensibilização e comunicação/marketing.

A declarada incorporação da cultura e das artes em estratégias organizacionais de prevenção sobre saúde mental em contextos laborais (públicos e privados) afigura-se igualmente essencial, mais uma vez numa vertente interdisciplinar e colaborativa, sobretudo nestas dimensões específicas: no desenvolvimento de planos de ação sobre saúde mental para equipas; no envolvimento das lideranças na eliminação do estigma ao nível das culturas empresariais; na capacitação e na orientação dos colaboradores para ferramentas de apoio; e na medição regular do impacto interno das iniciativas adotadas.

Justifica-se ainda, numa lógica preventiva, um alargamento estratégico da convergência entre arte e saúde mental aos meios educativos formais e não formais – estão a surgir, e bem, programas de intervenção neste sentido, mas para já, mais centrados no ensino superior público e privado –, até para o desenvolvimento junto de crianças e jovens de uma atempada literacia neste domínio, enfatizando a importância do auto-cuidado e bem-estar. Recorde-se, aliás, que 50% das doenças mentais instalam-se até aos 14 anos e 75% até aos 24 anos.

Em última análise: são fundamentais estratégias e políticas para a saúde mental que, para lá do seu escopo setorial, assumam – através de uma vital articulação interministerial (saúde-cultura-ciência-educação-solidariedade social/trabalho) e de um declarado compromisso político nesse sentido – uma visão efetivamente transversal e integrada para esta temática, convocando domínios de intervenção convergentes em prol de objetivos comuns. Nesta linha, o eixo cultura-arte-criatividade pode constituir uma legítima e relevante ferramenta terapêutica (mais preponderante ou mais complementar, conforme os casos), entre outras, para o ecossistema da saúde pública e, em particular, no contexto da saúde mental. Para um futuro-hoje mais holístico, colaborativo e inovador.

Gestor cultural e programador