Ultimamente, o meu mundo tem vindo a povoar-se de iconografia partilhada com uma tranche da minha geração que, à falta de melhores conceitos agregadores, assume contornos da dirtbag left. Este conceito obscuro permanece relativamente confinado às paredes da cultura pop norte-americana, mas que me tem preenchido um vazio, se não político, pelo menos cultural. Quem me lê poderá eventualmente não saber o que é a dirtbag left, mas inevitavelmente reconhecerá ícones que irei trazer para a construção do mapa das novas influências da esquerda pós-moderna, nascida e criada na internet, acima de tudo crítica da cultura na qual nasceu e está profundamente intricada.
A minha viagem mental começou com um mergulhar na discografia carregada do bonito liricismo da banda The 1975, particularmente na música Love It If We Made It: “Jesus save us/ Modernity has failed us”. Não sendo uma mensagem cristã, é, não obstante, uma observação perspicaz do desejo de retorno que eu e muitos mais amigos meus sentimos. Ao contrário do reacionarismo primário dos conservadores de direita, o desejo de retorno que eu e os meus pares sentimos não advém de uma honesta afinidade com a sociedade retrógrada de décadas atrás, mas de uma desilusão constante com a sociedade pós-moderna, neoliberal que nos impingem como sinónimo de progresso. Não há um verdadeiro desejo de retorno, mas uma escapatória na falta de outras possibilidades.
Assim se vai moldando um mundo de influências. O álbum Brat por Charli xcx, que usa como musa para a música Mean Girls (“worships Lana del Rey in her airpods/ yeah, she’s in her midtwenties, real intelligent/ hedonistic with the gravel, drawl and dead eyes”) Dasha Nekrasova, metade do podcast Red Scare. The 1975, cujo baterista (George Daniel) é noivo de Charli xcx. Bojack Horseman, Succession (onde Dasha Nekrasova fez parte do elenco), My Year of Rest and Relaxation, Lana del Rey.
Nas palavras de Kamala Harris: “You think you just fell out of a coconut tree? You exist in the context of all in which you live and what came before you”. E, portanto, é neste contexto cultural, mas igualmente politizado, que eu e os meus pares nos fomos e vamos descobrindo, flying off the radar. O discurso político não nos atinge porque não nos conhece: estas são as cara do desapontamento com a woke left, que acha parva a priorização de políticas identitárias sobre a questão da classe, e que se movimenta dentro dos círculos liberais de forma cínica. Gosta de Red Scare por levantar questões sobre a cultura de forma hiper provocadora e utilizar slurs em tempos da cultura de cancelamento, ou de Sex and the City por falar de forma sexualmente explícita antes da hiper categorização, hiper análise em tempos de poliamor, terapia (“How does that make you feel?”) e outros conceitos que dão dor de cabeça.
O conceito obscuro da dirtbag left está, então, baseado na vulgaridade. O maior manifesto da dirtbag left seria o ensaio de Amber A’Lee Frost, The Necessity of Political Vulgarity. Nas suas palavras, a vulgaridade tem se provado potente e efetiva ao longo da história política da humanidade, sendo Donald Trump o exemplo óbvio disso neste momento. “But Trump’s vulgarity is appealing precisely because it exposes political truths. As others have noted, Trump’s policies (wildly inconsistent though may be) are actually no more extreme than those of other Republicans; Trump is just willing to strip away the pretense. Other candidates may say ‘national security is a fundamental priority’, whereas Trump will opt for ‘ban all the Muslims’. The latter is far less diplomatic, but in practice the two candidates fundamentally mean the same thing. We should prefer the honest boor, as polite euphemism is constantly used to mask atrocities”.
O que a autora argumenta é que a esquerda deve também reclamar para si a vulgaridade ou ficará para sempre manca perante Trump e figuras afins. No entanto, desde 2016 (quando o ensaio foi escrito) até hoje, o que acabo por observar é que a vulgaridade que a nova esquerda reclama é algo inconsistente na crítica que faz, muitas vezes perdendo-se na linha que separa o ceticismo do neoliberalismo woke, do simples apoio de malucos da teoria da conspiração, sendo as mulheres do podcast Red Scare o seu perfeito exemplo.
Não obstante, vejo um potencial imenso numa nova onda da esquerda, em que a passividade e ceticismo perante as lutas identitárias, entretanto já cooptadas pelo capitalismo (em que vemos os grandes monopólios a sugar o Pride Month), seja por si só subversiva. Vulgar, honesta, sem particular interesse em ceder aos tiques do status quo, que evolui desta iconografia primitiva para um ceticismo realmente útil. Mal posso esperar.
PS: Lamento pelo jargão excessivamente em inglês, mas é uma sinalização importante e propositada a fazer. Somos um produto de uma cultura global e que comunica na internet pela linguagem universal do inglês e, não assumi-lo, estripa o argumento do ponto essencial. Fazemo-lo e sabemo-lo. “Am I ironically woke? The butt of my joke? / Or am I just some post-coke, average, skinny bloke/ Calling his ego imagination?” (Part of the Band, The 1975).
Estudante de Direito na Faculdade de Direito da Universidade do Porto