Não há como fugir a isto: os principais desafios, potencialidades e fragilidades da democracia estão associados, em última análise, a duas áreas-passaporte: educação e cultura. É a nossa relação vivencial (ou a falta dela) com estes universos formativos que desenha e influencia decisivamente, por múltiplas vias e modos, mecanismos/valores como o poder, a ética, a justiça, a liberdade, a responsabilidade, a emancipação crítica, a sensibilidade e o gosto, a imaginação, a empatia e o cuidado, a tolerância, a confiabilidade e, last but not least, a inquietação (de quem não se deixa ficar).

In memoriam Agostinho da Silva, José Mário Branco e Nuno Júdice

 

1.

Hoje cruzamo-nos sem nos vermos. Somos hiper-estimulados com mensagens a todo o instante, com pouco espaço para as baixas frequências, os interlúdios, os silêncios – num excesso que nos ultrapassa pela direita e diminui o tempo longo e a capacidade de atenção. A percepção não imediatista, em construção, que tem a ver com uma aptidão essencial e lenta para ler o que está entre, nas entrelinhas, nas zonas aparentemente vazias/brancas e para lá das polarizações, tem perdido terreno na vivência quotidiana.

Trabalhamos cada vez mais, mas, feitos os devidos descontos – oficialmente em nome do bem coletivo –, o que ganhamos não parece chegar para viver dignamente, que é o mesmo que dizer, para ter “liberdade a sério” de mudar e decidir. Das cinco bandeiras da icónica canção de Sérgio Godinho (paz, pão, habitação, saúde e educação), só a primeira parece não ter grandes rasgões volvidos 50 anos sobre o “dia inicial, inteiro e limpo” que Sophia poetizou.

Confunde-se o “cuidar do outro” – pragmática, social, legal ou laboralmente perfilado em função dos contextos e das funcionalidades – com “o ter cuidado com o outro”, o qual, para lá de leis e regras, deve(ria) ser a matriz primordial e universalista, o fundamento da própria moral e da ética profissional. Falo de cuidados invisíveis, feitos de sensibilidade, empatia, curiosidade e atenção. Uma das fragilidades maiores da democracia está ligada precisamente ao défice de cuidado, a uma reduzida horizontalidade nas relações, à indisponibilidade para calçar as sandálias do outro. Isto porque, por mais que apregoemos o contrário, ainda não aprendemos a coexistir com a diversidade humana, sobretudo a que não conhecemos, para lá da esfera familiar e do círculo de amigos e colegas próximos.

O próprio elogio continua a ser uma espécie em vias de extinção. Parece haver uma certa percepção impressionista de que fazer muitas apreciações positivas sobre algo ou alguém será sinónimo de maior superficialidade, pouca exigência e critério, baixa competitividade ou até de tontice e desequilíbrio de quem faz o encómio. Nessa linha, será mais credível, socialmente impactante e intelectualmente distintivo estar sempre em modo de “copo meio vazio”, revoltado com o mundo e/ou generalizar e radicalizar um quadro à partida sempre pessimista e disfórico. É uma espécie de oxigénio distintivo a que não poucos se agarram para justificar a sua existência.

Soma-se o facto de continuar a ser muito desafiante estarmos abertos a provas e críticas, e de admitirmos a nossa falibilidade. “Todas as pessoas pensam que estão corretas e que quem delas discorda é estúpido ou mal-intencionado. Ou ambas as coisas.” – alerta-nos o reputado psicólogo Steven Pinker. Como nesta sociedade “my side” cada pessoa quer promover a sua ideia de verdade, nas redes sociais e nos media em geral multiplicam-se os fazedores de opinião, os especialistas-mores em todas as áreas conhecidas, inimagináveis e por inventar, numa tensão e agressividade verbais constantes e desmesuradas. O que leva, entre outras coisas, a que uma mentira se torne amiúde verdade de tão exaustivamente repetida, legitimada pela sua massiva, mimética e acrítica partilha. O “problema” adicional, por vezes, é o facto de a própria mentira, para “ser segura e atingir profundidade”, não raramente “trazer à mistura qualquer coisa de verdade” (o intemporal António Aleixo sabia, e muito).

Por mais que repitamos até à exaustão e com fervor a importância do contraditório, da pluralidade, da tolerância, a crítica do outro à nossa visão/opinião continua a provocar-nos estranheza, medo, desconfiança, incerteza, e isso deixa-nos numa espécie de espartilho, num bloqueio, numa estrada de sentido único, sem saída. E tendemos, por isso – e mesmo que não nos apercebamos ou admitamos –, a aproximar-nos mais dos que pensam como nós e a afastar-nos ou ficar indiferentes perante os que têm opiniões diversas das nossas. É, por isso, imperioso continuar a defender o princípio da liberdade de discurso, bem como os debates, os fóruns, os media, o factchecking e outros instrumentos de validação da informação veiculada.

Se, por um lado, não promovemos ou até desconfiamos amiúde das opiniões positivas e valorativas, por outro, neste tempo socialmente hipersensível e politicamente correto, parece quase pecaminoso esboçar uma crítica, tecer um comentário incisivo e acutilante, retorquir com uma argumentação clara, séria, assertiva e consistente, não concordar ou alinhar cabalmente com um grupo, corrente ou tendência (maioritário ou ligado a minorias) mais mediatizados ou ligados ao poder. Não certamente por acaso, Dostoievski escreveu que, um dia, a tolerância chegará a tal ponto que as pessoas inteligentes serão proibidas de fazer qualquer reflexão simplesmente para não ofender os imbecis.

Estar demasiado tempo sentado será um dos maiores dramas contemporâneos do corpo e, por extensão, da própria condição humana. (A classe política não deveria saber dançar?) Paradoxalmente, ao mesmo tempo, afigura-se cada vez mais difícil parar e permanecer quieto e concentrado durante mais de breves minutos. Porque temos de estar sempre conectados e a reagir em tempo real, nessa reza digital em que, em vez de perdão, pedimos atenção, como sublinha Byung-Chul Han. Soma-se a isto a nova e implacável “santíssima trindade”, em modo omnipresente, que nos coloca em constante e ansioso estado de alerta: notificações-subscrições-promoções.

E a chamada “motricidade fina”, é mesmo o quê? Ainda sabemos escrever manualmente, de forma legível e escorreita? Nas mãos, derivado da hiper-demanda digital, parece haver agora uma prazerosa ditadura rotativa com apenas três protagonistas, que sabe a pouco: o polegar, o indicador e o dedo médio. E apenas duas tarefas básicas: clicar e deslizar, deslizar e clicar, em incessante loop. Sobram quatro dedos, dois exilados em cada mão – condenados à dormência física, ao atrofiamento motor, ao analfabetismo sensitivo?

Ficámos mais preguiçosos e impacientes. Substituímos palavras por símbolos coloridos e outras invenções gráficas, e abreviamo-las porque é mais rápido, cool e porque less is more. Além disso, e como diz o senso comum, uma imagem vale mais que mil palavras. Mas as palavras, por si só, já não acertam no centro das coisas? Nuno Júdice iria discordar.

E o simples toque ainda nos toca? O corpo banalizou-se e automatizou-se. Ainda há segredos e mistérios na pele? Somos cada vez mais formatados e iletrados no que à expressão corporal diz respeito, mas somos (ou queremos ser) superdotados e preparados do pescoço para cima – ou nem tanto, pois a nossa saúde mental já teve dias bem melhores, basta ver as estatísticas oficiais. Conhecemos o nosso corpo? Valorizamos os seus sinais? Sabemos/conseguimos exprimir-nos com ele, sem a “bengala” verbal? Uma coisa é ginástica/desporto; outra é expressão corporal. E a balança anda desequilibrada.

Já não temos de esperar muito tempo por respostas. Estão à distância precisamente de um clique ou de um scroll. Ilusão ou realidade? Teremos paciência (e uma réstia de tempo) para confirmar a informação? E será que (ainda) sabemos formular as perguntas certas?

Em face da torrente digital e mediática, somos atropelados, em vários domínios, por processos constantes, ora visíveis ora mais velados, de simplificação, estupidificação, infantilização, pouca exigência, formatação/padronização. Como não ver aqui um ataque à inteligência, à sensibilidade, à educação? Que cidadãos e elites intelectuais e políticas teremos amanhã? Coarctando a conexão simbiótica entre pensamento, palavra e acção, descurando o papel da Humanitas, é, no fundo, a própria democracia que fica em perigo.

Hoje tudo é (ou parece/pretende ser) importante, urgente e incrível, sendo recorrente uma amplificação acrítica, hiperbólica e distorcida de pessoas, situações, contextos. Em favor de obscuras, instrumentalizadas, ociosas e/ou mimetizadas motivações, banaliza-se e até se expulsa perigosamente da ágora a seleção, o equilíbrio, a lucidez, a sensatez.

 

2.

É por tudo isto (que não é pouco) que hoje, mais do que nunca, em tempos politicamente exigentes e disruptivos, precisamos de uma educação e cultura sólidas, estabilizadas, dignificadas e empoderadas, que sejam encaradas pela governação como áreas basilares.

Não “apenas” porque é preciso continuar, como preconizava Yeats, a acender o fogo no outro (através da pedagogia, das artes), na senda do espanto, do sonho, do conhecimento e da alegria, mas também para que não se perca a capacidade de parar para interrogar, relativizar e questionar (“eu” próprio e o coletivo). Sem a dúvida, o risco, o erro, o pensamento divergente e o contraditório, não há possibilidades de futuro. E dialogar com o outro é essa ausência de ódio que cimenta e aprofunda uma democracia.

Sabemos que nas sociedades contemporâneas o sistema democrático padece sobretudo de três males: má formação educativa e ética; impreparação técnica; e/ou insensibilidade e falta de identificação e compromisso com a causa coletiva/pública (de alguns dos seus protagonistas). Mas ainda vamos esquecendo que, em última análise, é uma habitual não priorização, pelo poder instituído, das áreas educativa e cultural enquanto “casa térrea” (pois é preciso construir a partir do fundamento, como dizia Sophia de Mello Breyner) que vai deformando e corroendo os alicerces da trilogia magna: liberté, egalité, fraternité.

Só a educação e a cultura serão, na raiz, o antídoto – e mesmo assim não há garantias que isso seja sempre linear – para as fragilidades, distopias e extremismos que vão grassando e minando, ora mais explícita ora mais subtilmente, os ecossistemas político e social. Só esses dois pilares, essa “vida do espírito” (Paul Valéry), serão o passaporte privilegiado para uma sociedade que se pretenda evoluída, comprometida e madura. E para um outro exercício não menos exigente: a resistência ao automatismo, à superficialidade, ao óbvio, à banalidade, à ignorância, ao desinteresse, à acomodação e ao esquecimento.

Apesar de algumas mudanças positivas que têm sido operadas nestes sectores, do ponto de vista estrutural o universo da educação continua demasiado associado a instabilidade laboral, questionáveis experimentações, desvirtuamento ou menorização de alguns princípios essenciais, excessiva burocratização e tendencial facilitismo, enquanto a cultura tem vivido, do ponto de vista político, não poucas vezes, associada a invisibilidade, défice de investimento estratégico e financeiro, e secundarização simbólica. Se não se encarar (todos, da sociedade civil à governação) estas áreas como matriciais – pela sua repercussão direta, oblíqua ou silenciosa, a curto e a longo prazo, nos vários quadrantes da vida em coletivo –, não poderemos aspirar a uma democracia sólida e saudável.

E se isso não é o que mais importa, o que nos resta mesmo? De que servirá a liberdade, se não cuidarmos dela com inteligência e imaginação? A educação e a cultura são a invisível argamassa que funda e entretece tudo, e o barómetro maior da saúde de uma democracia. Por isso, é que são também faróis carregados de futuro. Não há como fugir a isto.