Ouça e acompanhe o “Discurso Direto” também em formato podcast:

Spotify |Apple Podcasts

O candidato da Iniciativa Liberal às eleições europeias, João Cotrim Figueiredo, considera que a União Europeia tem de ser reformada para que volte a ser “um espaço de liberdade sem qualquer espécie de reserva, volte a ter paz e segurança dentro das suas fronteiras e à volta das suas fronteiras e volte a ser um espaço de prosperidade que dê oportunidades a quem cá fica”.

Em Discurso Direto, ao NOVO e ao Jornal Económico, diz que a prioridade tem de ser a prosperidade e que essa falta de foco atrasou a Europa. Para concretizar uma mudança, defende que é necessário voltar a investir numa maior integração, económica, regulatória, integração de regras e de princípios, mas também política, para que a União Europeia (UE) possa acomodar um alargamento.

Outro desafio que a UE enfrenta é o da imigração, porque é necessária num continente a envelhecer, mas que tem sido difícil de gerir. Cotrim de Figueiredo diz, em primeiro lugar, que não pode haver tabus na discussão. “Quanto maior dificuldade ou pudor tivermos a falar do assunto e a reconhecer os problemas que existem e a propor soluções humanas para esses problemas, mais esse pasto é fértil para os extremistas populistas”, alerta.

 

A Europa e o mundo mudaram desde as últimas eleições europeias. Vivemos uma pandemia, uma crise económica, enfrentamos uma guerra de grande envergadura na nossa fronteira. Quais são os principais desafios que se colocam à União Europeia agora?

Acho que é uma excelente maneira de começar esta conversa porque, de facto, nestes últimos cinco anos, talvez até um bocadinho antes, passaram-se coisas suficientemente estruturais para termos de olhar para a Europa e para o projeto europeu de uma forma diferente. E talvez eu resumisse da seguinte forma: quando os europeus olham para a Europa – e os portugueses têm pela Europa um apreço particular – fazem-no com esse gosto e com esse preço, porque atribuem à Europa a importância e a capacidade de fazer da sua vida uma vida mais segura, mais livre e mais próspera. Foram esses os valores que presidiram à fundação da União Europeia e diria que em cada um desses pilares, desses atributos, temos vindo a perder algum gás.

Eu acho que os responsáveis políticos, de uma forma geral, tiraram os olhos da bola. Na paz, escuso de dizer porque é que ela está em risco. E sim, uma guerra na Ucrânia que não tenha um desfecho que não seja a vitória da Ucrânia coloca problemas de segurança e de futuro ao projeto europeu. Temos nas liberdades uma demasiada facilidade em prescindir de certas liberdades em troco de segurança ou de conveniência, e isso não é suficientemente sublinhado, que temos de continuar a ser um espaço de verdadeira liberdade – liberdades individuais, liberdades políticas. E, depois, a prosperidade, onde exatamente por termos nas várias decisões deixado de pôr a prosperidade como os objetivos principais da União – continuar a aprofundar o mercado único, a dar mais oportunidades às empresas e às pessoas – começámos a perder a corrida e a Europa começou a ficar para trás. Olhamos para o desenvolvimento dos Estados Unidos [da América], da China, de outros países importantes, como a Índia e até, um dia, o Brasil e outros blocos económicos e a Europa está a perder competitividade relativa

Respondendo diretamente à pergunta: os desafios são fazer com que a Europa reganhe brilho em cada uma destas dimensões, que volte a ser um espaço de liberdade sem qualquer espécie de reserva, volte a ter paz e segurança dentro das suas fronteiras e à volta das suas fronteiras e volte a ser um espaço de prosperidade que dê oportunidades a quem cá fica.

A prosperidade, não sendo o mais importante dos três [desafios], é aquele a que devemos dar prioridade, porque precede os outros dois. Precede no sentido em que tudo o que temos de fazer para garantir um espaço de liberdade e de segurança vai precisar de recursos, quer financeiros, quer humanos. E se não os tivermos, não vamos conseguir nem fazer as transições energéticas, nem fazer um alargamento em condições, nem tornarmo-nos autónomos na defesa.

Portanto, isto é, resumidamente, o nosso programa. Vamos tornar a Europa outra vez grande – e aqui hesito em usar a expressão Make Europe Great Again por motivos óbvios –, mas é um bocado essa lógica. Vamos voltar aos fundamentos da Europa, para que isto seja verdade, mas, para isso, precisamos de recursos financeiros. Precisamos de voltar a crescer.

Falou na dificuldade que temos de ceder a algumas conquistas para ter outros benefícios, sendo a defesa apontada como a questão mais relevante. Sabemos que nada vai voltar a ser igual. Faço-lhe duas perguntas: como é que a Europa ficou para trás, faltam líderes? Depois, haverá enquadramento par abdicarmos de riqueza para investir, por exemplo, em defesa?

Eu diria que há um problema de base, anterior a toda esta situação que hoje vivemos, que é o falhanço duma noção que apareceu algures nos anos 80/90 do século passado, de que a maior proximidade comercial e uma certa interdependência económica entre os povos ia acabar por não só favorecer a coexistência pacífica, como até o florescimento democrático das sociedades com quem comerciávamos e que não fossem democratas. Isso falhou. Portanto, há exemplos múltiplos de países que passaram a ser grandes parceiros da União Europeia em termos comerciais e que não se tornaram mais democráticos. Nalguns casos tornaram-se até menos democráticos. E isso, ao cair por terra, revela uma realidade cruel, mas que temos de enfrentar de que vai haver sociedades democráticas com líderes imperialistas ou com ambições agressivas e em relação aos quais temos de ter capacidade de defesa. Portanto, se me pergunta, falharam líderes, falhou quem visse a tempo que esta visão um pouco otimista de que o comércio, o comércio livre, não ia trazer sociedades mais livres e aproximar sociedades mais livres; quando isso falhou, devíamos ter tirado as consequências do que a Europa não podia depender exclusivamente daquilo que tinha sido até aí um chapéu de chuva de defesa, sobretudo nos Estados Unidos ou no âmbito mais vasto da NATO. E, de facto, agora, ao fazermos esta esta inversão de prioridades e pormos a segurança e a componente de defesa, dentro da segurança, ainda mais no topo das nossas prioridades, vamos ter de investir, de facto, montantes significativos; no caso português, podemos estar a falar de aumentar entre 40% a 50% o que hoje se gasta em defesa – são cerca de 1.500 a 2.000 milhões de euros por ano – e há prioridades que têm de ficar para trás, evidentemente, e isso é politicamente difícil de vender. É por isso que a União Europeia fez acompanhar esta decisão, que é relativamente consensual – penso que até que nenhum Estado-membro se tenha oposto terminantemente a isto, com exceção eventual daqueles que têm uma posição historicamente mais neutral, mas mesmo esses não se opuseram –, vamos acompanhar este investimento de uma espécie de reshoring, portanto, voltar a trazer para a Europa um conjunto de indústrias de investigação ligada à defesa, com o argumento de que a indústria, fabricação e produção de dispositivos com utilização militar cria empregos e geral ela própria investimento reprodutivo, e que a investigação com fins militares tem utilizações que são civis também. E há muitos exemplos na história que, de facto, houve grandes utilizações civis de tecnologias que foram desenvolvidas inicialmente com fins militares. A conjugação destas duas realidades, investimento superior de um lado, mas também retorno a nível social e económico do outro, pode acabar por se equilibrar e não necessitar de escolhas tão difíceis.

Eu gostava que a decisão fosse tomada mesmo que a escolha fosse mais difícil do que ela possa eventualmente acabar por ser. Nós temos de ter a noção de que nem liberdade nem segurança estão adquiridas e que temos de lutar por elas, e uma das formas de lutar por elas e prescindir de algumas outras coisas que temos tido, achando que não precisávamos de gastar tanto em defesa. Portanto, é nesse sentido que eu acho que é bom ser claro relativamente a quais são as prioridades que hoje temos e que os europeus têm de voltar a ser uma União capaz de se defender a si própria. Com um último acrescento: que este movimento de recentrar na Europa a capacidade de produção de equipamento militar não seja feito numa ótica excessivamente protecionista. Porquê? Como liberal, eu acredito que o que fez o sucesso da União Europeia foi exatamente basear-se em princípios do comércio livre; se reagimos aos outros que são protecionistas com retaliações de índole protecionista também, mesmo assumindo que gostamos do princípio da reciprocidade, etc. Mas, mesmo assim, se formos mais protecionistas do que isto, estamos a dizer, no fundo, que não temos a força dessa convicção de que o comércio livre é responsável por prosperidade. E como, para mim, a prosperidade está no topo das prioridades, não podemos deitar fora esse valor.

Tem a prosperidade no topo das prioridades. Quais são as principais propostas da Iniciativa Liberal para a Europa. O que é que o que é que vai acrescentar?

Elas descrevem-se de uma forma relativamente simples, porque também resultam de uma análise que, para nós, é clara, é que o todos os grandes benefícios em termos de prosperidade da União Europeia vieram de uma maior integração entre Estados europeus; integração económica, integração regulatória, integração de regras, princípios. Isto é verdade para o mercado único, o que já foi construído e aquilo que falta construir.

O muito que falta construir.

Essa é uma primeira proposta. Temos de avançar mais rapidamente no aperfeiçoamento do mercado único dos bens e serviços que já existe, mas acrescentar-lhe os serviços digitais, o mercado de capitais, a união bancária e integração que permita a atividade económica em qualquer país de ser transferível ou executável noutro espaço, noutro Estado da União, sem demasiadas diferenças.

Eu dou-lhe um exemplo: hoje, um empreendedor norte-americano que queira fazer levantar capital junto de financiadores nos Estados Unidos, estabelece uma empresa no Delaware e recebe os investidores de qualquer Estado dos Estados Unidos. Alguém que faça o mesmo no espaço da União Europeia precisa de ir a 27 notários, perceber 27 legislações fiscais e comerciais e de apresentar 27 vezes os mesmos oito papéis que teria para fazer. É um obstáculo à verdadeira integração, é um obstáculo ao crescimento.

Duas coisas aqui: aceitar que a integração é o que tem dado o crescimento, porque dá oportunidades mesmo aos países pequenos de terem um mercado, lá está, um mercado único muito maior, e dá também a cada um dos Estados-membros a possibilidade de aproveitar plenamente tudo o que a União tem para oferecer. Nesse sentido, ficámos muito satisfeitos que o relatório [de Enrico] Letta, que saiu há um mês, proponha acrescentar às quatro liberdades que constituem o mercado único – bens, serviços, pessoas e capital – uma quinta, que é a liberdade de circulação de conhecimento. Tudo o que seja pesquisa, a produção de conhecimento, colaboração entre centros de produção, de crescimento universitário ou não, que seja mais facilitado, para tudo isto circule mais depressa.

Acreditamos – e não é preciso ser uma pessoa de fé, há evidências suficientes – acreditamos na capacidade inventiva e trabalhadora da população europeia. Achamos é que se não fazem mais é porque o sistema está ainda demasiado pesado, empastelado. Portanto, vamos tirar os obstáculos. Já falei de alguns deles e há um que tem de ser dito que é a burocracia. Nós temos de reduzir brutalmente a burocracia que ainda acompanha boa parte dos processos europeus. Portanto, uma das coisas que vamos fazer é tornar letra viva aquilo que tem sido pouco utilizado, que é a necessidade de revogar duas normas por cada uma que se aprove. E há muita coisa aí para revogar, para fazer com que o edifício de regras da União Europeia seja entendível e navegável, sem grande problema.

O alargamento vai ser um dos desafios da próxima legislatura. Neste quadro, como é que se consegue fazer com que funcione, quando já há uma dificuldade dos 27 se entenderem. Devemos ir mais além, para um aprofundamento político?

É. Porque é que nós somos indefetíveis defensores do alargamento? Porque achamos que há razões morais, razões políticas e razões económicas para fazer o alargamento. As morais são que qualquer país tem de ter os mesmos direitos que nós tivemos quando, na altura, na década de 80, aderimos à Comunidade Económica Europeia. Políticos, porque é uma forma de incentivar e apoiar a instauração de democracias liberais e de economias de mercado no espaço europeu; dá-lhes segurança, tal como nos deu a nós quando aderimos. E económicas, porque trazendo desafios nessa área, traz também umas dezenas de milhões de consumidores adicionais, de mercado adicional, ao espaço europeu, que já é o maior bloco económico em termos de população e que terá assim a oportunidade de crescer ainda mais.

Os problemas que derivam dessa integração e desse alargamento têm de ser resolvidos exatamente na medida em que, como é preciso fazer, vamos ter de os resolver.

A nível institucional, há problemas na tomada de decisão na Europa que se provaram, pela reação às crises que tivemos mais recentes, quer da pandemia quer da guerra na Ucrânia, que são circunventáveis; é possível aligeirar e acelerar o processo de decisão quando as coisas são mesmo necessárias. E eu dou crédito à capacidade da União Europeia ter reagido nas crises, mas não acho que esteja a funcionar muito bem fora das crises; e se tivesse de escolher, e penso que a maior parte dos Europeus se tivesse de escolher, preferia uma União Europeia que funcionasse bem na gestão diária daquilo que não é crise, e que hesitasse e se atrapalhasse com as crises, que é uma coisa que é mais normal, porque é a falta de resposta no dia a dia que tem estado a gerar problemas de desilusão e de não cumprimento de expectativas dos cidadãos, dando origem, depois, a um alheamento em relação à União Europeia e a outros fenómenos políticos de que estamos sempre a queixar-nos que são indesejáveis, mas derivam da desilusão das pessoas de o projeto europeu não estar a entregar a promessa implícita no contrato social, que, no fundo, fizemos com os nossos concidadãos europeus. Temos de tornar isso uma realidade e preparar os processos de decisão para incluírem não só uma maior celeridade, mas determinadas matérias para que até hoje eram necessárias da unanimidade passarem a ser tomadas por votação por maioria qualificada, sempre com as salvaguardas da soberania, que já hoje existem nas famosas cláusulas passerelle, que raramente são utilizadas, mas que já preveem a possibilidade de não termos que esperar pela unanimidade; até para União Europeia não ficar refém de algum Estado que tenha um interesse muito particular, mais legítimo ou menos legítimo, para impedir algum avanço.

Tudo indica que vamos ter um novo quadro político no Parlamento Europeu, com uma maior afirmação das forças à direita e com a provável subida dos extremos. O que é que isto vai mudar no caminho que tem sido seguido?

Pode mudar alguma coisa, mas também é possível que não mude nada muito significativo, porque todos os cenários que eu tenho visto baseado nos estudos de opinião que têm saído um pouco por todos os Estados-membros, e também uns promovidos pela própria União Europeia, o Eurobarómetro, na maior parte dos cenários credíveis mais prováveis indicam um crescimento de forças à direita do Parlamento, mas não indicam uma alteração das maiorias possíveis para serem, no fundo, hoje, os líderes dos processos de mudança na União Europeia. Todos os cenários credíveis que eu conheço mantêm que a aliança entre os liberais, o PPE [Partido Popular Europeu] e os socialistas continua a ter a maioria no Parlamento, com alguma folga, e que continuem a ser, digamos, a locomotiva das reformas do projeto europeu.

Dito isso, independentemente de conseguir continuar a ter maioria e de conseguir fazer avançar o projeto europeu, é evidente que a natureza da discussão vai tornar-se diferente e espero que não a utilidade da discussão, porque é muito difícil tentar fazer discussões produtivas com vista a melhorar aquilo que está sob discussão se tivermos, no mesmo tempo e no mesmo período, a ter de afastar ideias mais bizarras, rocambolescas ou inaceitáveis que venham dos extremos do Parlamento; e devo dizer que não é só do extremo-direito do Parlamento que vem, [porque] da extrema-esquerda do Parlamento Europeu também vêm coisas bem bizarras. Portanto, quanto menos tempo se tiver de passar a pôr de lado essas ideias, mais se pode dedicar à melhoria das ideias que têm pernas para andar e que têm o interesse europeu no centro das preocupações.

Neste quadro de instabilidade geopolítica, que papel é que pode ter a União Europeia? O que disse sobre o termos de lutar pela afirmação dos valores que defendemos aplica-se?

Isto tem dois lados, um aspeto mais defensivo que é não somos ingénuos e sabemos que há quem se aproveite da liberdade de expressão, da liberdade de circulação para fazer disso instrumentos de desestabilização da estabilidade política nalguns Estados-membros e até na União como um todo. Portanto, não sendo ingénuos, isso é uma parte, se quiser, da componente defensiva, da defesa mesmo – há aqui uma ciberdefesa que inclui o combate à desinformação, aos ataques cibernéticos patrocinados por Estados soberanos e hostis à Europa e aos interesses ocidentais, até, de uma forma geral. E depois temos uma [vertente] a que que vou chamar ofensiva, porque é de iniciativa pró-ativa da União Europeia, de ser um exemplo dessas liberdades que pretende defender e não as coartar com o pretexto de que isso é uma forma de defender as liberdades, limitando-as; estou a falar, concretamente, da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa. Por exemplo, não achei bem que houvesse aquela facilidade de suspender as emissões da estação RT, a Russia Today, porque por muito que constitua propaganda do Estado russo, isso não era unívoco e num espaço de verdadeira liberdade temos de saber conviver com isso. Isso para mim é tão evidente que não entra no capítulo da desinformação e dos tais instrumentos mais modernos e engenhosos e eficazes de desinformação. Mas não podemos ser exemplo de falta de liberdade de expressão, falta de liberdade de imprensa, muito menos falta de liberdade de circulação ou associação política. Temos de defender essas liberdades e confiar que a democracia tem instrumentos e processos para ser mais forte do que quem nos quer atacar.

Outro dos desafios que enfrentamos, com vários prismas, é o da imigração; precisamos de imigração, mas temos receio dela e temos demonstrado que não sabemos gerir, enquanto Europa, os fluxos migratórios. Como é que podemos abordar esta questão? E nós notamos, por exemplo, que os movimentos populistas têm tido alguma progressão a cavalgar medo.

Quanto maior dificuldade ou pudor tivermos a falar do assunto e a reconhecer os problemas que existem e a propor soluções humanas para esses problemas, mais esse pasto é fértil para os extremistas populistas. De facto, é por isso que eu digo que isto não pode ser um tabu. Nós temos de falar dos problemas da imigração, a bem das pessoas que nos procuram para [terem] uma vida melhor e a bem, também, dos que já cá estão à procura de vida melhor, e dos próprios nacionais, a bem de toda a gente. E tem de deixar de haver esta sensação de descontrolo, que é uma perceção que pode até ser empolada aqui ou acolá, mas tem uma base na realidade. Falta organização, falta fiscalização e, em resultado disto, falta integração, que é o mais grave, que é o que tira a dignidade a quem nos procura. Reconhecer isto tem de ser possível sem se ser acusado imediatamente de estar a ser xenófobo ou anti-imigrantes. Pelo contrário, a Portugal, em particular, dada a sua história de país emissor, digamos assim, de muitos imigrantes, quer pela minha convicção liberal, não é precisarmos de imigração, as pessoas não devem vir porque nós precisamos, mas porque desejam uma vida melhor e devem ter essa possibilidade, mas não pode ser neste ambiente descontrolado. Portanto, pelo menos as regras que já existem devem ser cumpridas e vamos a ver e não são.

Existe no espaço Schengen a regra de ter de se fazer prova de meios de subsistência. Há várias formas de o fazer, não são fiscalizadas. Não conheço um caso de uma recusa de entrada a alguém que não tenha provado meios de subsistência ou cujo garante, porque pode-se pedir alguém que já cá esteja que garanta essas condições mínimas de vida a essa pessoa, tenha sido interpelado. Outro exemplo é que, hoje, é voluntária a inscrição no sistema automático de pré-agendamento de autorização de residência, em que é registado o passado da pessoa, quer em termos pessoais, profissionais e criminais, se for o caso, e não são verificadas nenhumas destas informações. Pelo menos as regras que existem deviam ser verificadas, porque não é possível nós termos um sistema que funcione e que seja capaz de dar habitação condigna, acesso a serviços de saúde em condições e escolas para os menores que possam acompanhar as pessoas que emigram, etc., se não tivermos a capacidade de prever aquilo que pode vir a acontecer. Portanto, é nesse sentido que é importantíssimo dar esse passo e que eu a acolho com agrado o espaço que o Pacto para as Migrações e Asilo veio trazer, porque os princípios vêm dali; há disposições que são melhoráveis, mas há ali os princípios de tornar a imigração humana e justa para quem é elegível, firme para quem não é elegível e completamente intransigente para as redes de tráfico, que se aproveitam do desespero destas pessoas. E estes princípios declinados depois na série de diplomas que compõem o Pacto, são um bom princípio para começar a afastar esta perceção de desorganização que, como digo, é o pasto ideal para os populistas fazer disto um assunto.

O desafio é transformar isso numa numa prática.

E poderá, de facto, porque olhamos para aquilo que se passou com avisos de vários, a começar por nós, relativamente à extinção do SEF, que dissemos não só em relação à componente policial e de controlo de fronteiras, que não estava suficientemente preparada, mas sobretudo uma nova agência entretanto criada, a AIMA, que essa, como era nova, ainda menos preparada estava. E já havia, na altura da ideia da extinção, claramente motivada politicamente pelos problemas do ministro [Eduardo] Cabrita, já havia mais de 200 mil pessoas à espera da sua regularização em atraso; subiram para 400 mil, entretanto. Soubemos ontem [14 de maio] que em mais um dia de grande turbulência às portas dos serviços da AIMA, neste caso em Lisboa, se tinham conseguido dar 200 senhas, para 200 pessoas resolverem o problema. Eu sei que alguns, desejavelmente, já vão resolver o problema online e não precisam das senhas, mas também há pessoas que precisam de ir mais do que uma vez. Se temos 400 mil à espera e estamos a dar 200 senhas por dia, eu já fiz as contas, são mais de quatro anos.

É evidente que isto não é um sistema que esteja preparado e, repito, o pior que podemos ter para quem cá vive, para quem já imigrou para Portugal e para quem queira imigrar para Portugal é esta sensação de descontrolo, que se vê nestes temas da AIMA, mas também nas tendas e nas pessoas a dormir na rua, que se veem um pouco por todas as grandes cidades. A sensação de descontrolo é o pior serviço que podemos fazer aos emigrantes e o melhor serviço que podemos fazer aos que vivem destas desgraças.