A delinquência e a proteção juvenis revelam-se um foco preocupante na atenção das principais responsáveis da justiça portuguesa. Desde logo, a ministra da Justiça, Rita Alarcão Júdice, que alerta para o aumento de internamentos em Centros Educativos, sabendo que o sistema está completamente lotado; e a Procuradora-geral da República (PGR), magistrada sempre atenta a este setor, que aponta o caos na área da promoção e proteção gerida pela segurança social. O sistema, diz, está a “catapultar jovens residencialmente acolhidos para a mendicidade, a prostituição, o consumo e a dependência de drogas e de álcool, os comportamentos desviantes, muitos preenchendo os elementos objetivos de tipos legais de crimes de média e assinalável gravidade, não obstante a tenra idade dos protagonistas”.

Estas palavras de Lucília Gago foram proferidas esta semana na sessão de abertura do IV Congresso Europeu sobre uma Justiça Amiga das Crianças fazendo naturalmente  “calar” os que se sentavam no auditório da Fundação Calouste Gulbenkian a convite da entidade promotora do evento – a ComDignitatis (Associação Portuguesa para a Promoção da dignidade Humana).

A ministra Rita Alarcão Júdice, na mesma sessão de abertura avisava depois que “segundo os dados já públicos do Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) de 2023, a delinquência juvenil (que abarca crimes praticados por crianças e jovens com idades compreendidas entre os 12 e os 16) aumentou de forma consistente, pelo menos desde 2021”.

Consequentemente, alertou, “a aplicação potencial da medida tutelar mais intrusiva para as crianças, o internamento em centro educativo, tenderá a aumentar”. Entretanto, observou, “os jovens aos quais é aplicada esta medida chegam aos centros educativos, em média por volta dos 16 anos de idade, com percursos desviantes cada vez mais complexos”.

Neste sentido, e tendo como base o mais recente o relatório da Comissão de Acompanhamento e Fiscalização dos Centros Educativos, a ministra advertiu que a medida de internamento não está a ser aplicada “no tempo devido”, sublinhando que “o trabalho desenvolvido nos centros educativos pretende contribuir para a construção da personalidade dos jovens, influindo de forma positiva na sua inserção na sociedade, fazendo nascer os pilares na criança em formação de um futuro adulto pleno de capacidades individuais e sociais”.

Contudo, salientou a ministra, “deveremos ter presente que a medida de internamento é de ultima ratio de entre as medidas tutelares educativas potencialmente aplicáveis, por imperativo constitucional. Por tal razão, não deveremos deixar de lutar por um princípio de intervenção mínima”. Neste contexto, defendeu: “Uma Justiça amiga das crianças tem de existir antes da porta de entrada do Sistema de Justiça. E para tal é essencial assegurar uma forte intervenção preventiva”.

 

Sistemas desencontrados

Aqui, as palavras de Rita Alarcão Júdice encontram-se com as de Lucília Gago porque a par do trabalho realizado na justiça tutelar de menores – crianças e jovens que praticaram atos considerados crime na lei dos adultos, da responsabilidade do MJ –  existe também o trabalho de promoção e proteção de crianças e jovens que não praticaram atos criminais, mas que vivem em situação de vulnerabilidade, sendo esta área da responsabilidade da Segurança Social.

Disse Lucília Gago que “fenómenos de violência, nas suas múltiplas manifestações, não dão sinais de estagnação e, muito menos, de abrandamento”. Esta realidade atinge também os tais jovens vulneráveis que estão acolhidos em equipamentos de acolhimento (lares) da segurança social, no âmbito da promoção e proteção. As várias situações de violência têm atingido repercussões de tal forma graves que a PGR defende que no sistema de promoção e proteção deveriam existir “medidas de acolhimento em regime semi-aberto”.

O que significa? Significaria existirem equipamentos onde os jovens mais problemáticos, por exemplo, aqueles que exercem atos de violência sobre os colegas ou sobre os educadores, tivessem uma liberdade mais contida e regras mais apertadas, com aulas no interior da própria instituição de acolhimento. Não existindo estes equipamentos, acontece que, ou fogem ou são expulsos. Ou seja, alerta a PGR, o sistema vigente “catapulta os jovens  residencialmente acolhidos para a mendicidade, a prostituição, o consumo e a dependência de drogas e de álcool, os comportamentos desviantes, muitos preenchendo os elementos objetivos de tipos legais de crimes de média e assinalável gravidade, não obstante a tenra idade dos protagonistas.”

A PGR lamenta a impossibilidade legal de decretamento da medida de acolhimento residencial em regime semiaberto. “Uma opção do legislador que reputamos de altamente questionável, atentos os reflexos perversos que potencia, por possibilitar aos acolhidos empreender sucessivas fugas que avolumam a sua desproteção, projetando-os para o absurdo de precoces, impreparadas e, a todos os títulos, contraproducentes autonomias”.

Estes jovens problemáticos acabam por cair no sistema tutelar educativo, indo parar, naturalmente, aos Centros Educativos, onde tudo é muito mais contido e restrito. Descobre-se, depois, que aqueles jovens, afinal, já tinham passado pelo acolhimento da segurança social. Mais tarde, alguns deles, incapazes de uma vida estável e integrada, vão parar às prisões, descobrindo-se, depois, que, afinal, já antes tinham estado na promoção e proteção da segurança social e  no tutelar educativo do MJ, sem que a escalada fosse interrompida.

A PGR, a propósito disto, invocou o relatório CASA 2022, da Segurança Social, onde se lê que “prevalentemente o acolhimento residencial de crianças e jovens foi ditado, em 25,1% dos casos, por problemas de comportamento, seguidos da deficiência mental e de problemas de saúde mental, ambos clinicamente diagnosticados, com uma expressão de, respetivamente, 9,6% e 4,9%, ambos perfazendo 14,5%”.

No total, no fim de 2022, note-se, encontravam-se acolhidas em equipamentos da Segurança Social, 6437 crianças e jovens. Destas, apenas 3,6% estão com famílias de acolhimento e 2,6% em apartamentos de autonomização. Causas para o acolhimento: os problemas de comportamento em evidência 25,1%, seguidos da deficiência mental (9,6%) e da doença mental (4,9%).

 

Portas giratórias

No ano em avaliação do relatório CASA, “aproximadamente 8% do total dos jovens que se encontram em acolhimento [na Segurança Social], tiveram também inquéritos ou medidas aplicadas no âmbito de Processos Tutelares Educativos, verificando-se um aumento de 23% relativamente aos dados 2021.” Mais: “Do total de jovens com processos tutelares educativos, a 1 de novembro de 2022 mais de metade (58,6%)  têm processo em fase de inquérito nos serviços do Ministério Público”. Isto significa que na promoção e proteção vivem misturados jovens com problemas sociais e familiares e jovens que praticaram crimes.

Outra preocupação: “No ano de 2022, reentraram no sistema (saíram e voltaram a entrar) 165 crianças e jovens. Este valor corresponde a um crescimento de 42% em comparação com o ano anterior (116 no ano de 2021)”. Das 165 crianças e jovens que reentraram no sistema, 154 (93%) tinham medidas aplicadas, identificando-se que 105 jovens que reentraram com 12 e mais anos, 62 tinham medida de apoio junto dos pais, 17 apoio junto de outro familiar e sete com confiança a pessoa idónea. Relativamente às 49 crianças com 11 e menos anos, 36 das reentradas tinham medida aplicada de apoio junto dos pais, 17 de apoio junto de outro familiar e sete de confiança a pessoa idónea.

Dos 989 jovens com 18 anos ou mais que cessaram o acolhimento em 2022, foram identificados pelos técnicos 61 jovens em que, se possível, se alteraria a situação de meio natural de vida em que o jovem vive para uma medida de colocação. Comparativamente aos anos anteriores, este número tem vindo a crescer (56 no ano de 2021), o que traduz uma maior vulnerabilidade dos jovens com percurso em acolhimento

Noutra parte do relatório lê-se a problemática de fundo que preocupa a ministra da Justiça e a PGR. “No que respeita à área da Justiça e às intercorrências entre o Sistema de Proteção e o Sistema de Justiça Juvenil, é de salientar relativamente ao ano de 2021, um aumento de 21% de jovens em acolhimento que para além dos processos de promoção e proteção, têm também processos tutelares educativos em curso, ou processos crime caso tenham praticado facto qualificado como crime depois dos 16 anos, verificando-se que 29 saíram para internamento em Centro Educativo e 11 para Estabelecimento Prisional, registando-se neste ultimo indicador um aumento de 267% relativamente a 2021.”

No relatório reconhece-se que a promoção e a proteção e o tutelar educativo andam de costas voltadas, e o panorama é assustador.

Lê-se:  “Estes indicadores remetem para a necessidade do reforço da articulação entre os dois sistemas, no sentido de assegurar transições securizantes e adequadas dos jovens, continuidade dos apoios e do acompanhamento das famílias, bem como de revisitar o regime penal para jovens entre os 16 e os 21 anos, instituído em 1982 , e em que por não estarem ao abrigo da Lei Tutelar Educativa, alguns mantêm-se acolhidos em instituições do sistema de proteção por decisão judicial, enquanto aguardam julgamento, em processos crime por norma morosos.”

Diz a PGR: “A conjuntura inspira a maior apreensão, face também à escassez de recursos humanos e ao crescente ingresso em território nacional de jovens não acompanhados das respetivas famílias, desenraizados, indocumentados, de distintas origens e proveniências e naturalmente sem capacidade, inclusive do ponto de vista económico, de se autorregularem e de se autossustentarem, os quais, com elevada probabilidade, poderão vir a denotar necessidades educativas manifestadas na prática de factos criminalmente relevantes,  avolumando as dificuldades no terreno hoje fortemente sentidas”.

A ministra da Justiça apela, por seu lado, para que se aposte nas políticas de prevenção, frisando que “também a sociedade em geral e as escolas podem e devem assumir um papel primordial, com o seu olhar atento e de proximidade”.

Mas, não há como fugir à realidade constatada pela PGR que desemboca na conclusão da ministra da Justiça: o número de jovens acolhidos em Centro Educativo vai aumentar.

O sistema, entretanto, já está cheio. Disse Lucília Gago: “O número global de internamentos decretados (136) suplantou, em fevereiro e março deste ano, a lotação estabelecida (134), em claríssimo desfavor da atenção, do cuidado e do atendimento personalizado de que os jovens que protagonizaram factos criminalmente relevantes carecem, de molde a que a intervenção tutelar educativa em meio contentor sirva os relevantes objetivos para os quais está concebida e vocacionada”.

Jovens presos

Segundo a Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, que gere os Centros Educativos e a prisões, ao total de 136 jovens internados corresponderam um total de 447 tipos de crimes registados nos processos judiciais de origem. Deste total, 378, a que corresponderam 84,56%, respeitaram a jovens do género masculino. Predominou a categoria de crimes contra as pessoas com 266 tipos de crime e uma percentagem de 59,51% nomeadamente, as ofensas à integridade física voluntária simples e grave. Seguiu-se a categoria contra o património, com 33,78% e 151 registos, com destaque para os crimes de dano, roubo e furto. O tipo de crime mais registado foi a ofensa à integridade física voluntária simples, na categoria contra as pessoas, com um total de 65 registos e uma percentagem de 14,54%.  No seu conjunto, os tipos de crimes respeitantes às ofensas à integridade física obtiveram um total de 122 registos, a que correspondeu uma percentagem de 27,29%. Seguiram-se, também da categoria contra as pessoas, a ameaça e coação (53) e a difamação, calúnia e injúria (50). Não se verificaram grandes diferenças nesta distribuição de crimes por género.

Este é o panorama da infância e juventude mais problemática. Na Fundação Calouste Gulbenkian, esta semana, ficou o desafio da ministra da Justiça: “Uma Justiça amiga das crianças não se faz apenas com um adequado enquadramento legislativo, assim como a amizade não se define por um encontro esporádico. Uma Justiça amiga das crianças, como a amizade, exige tempo, meios e escuta.”