No dia em que se despediu dos seus diretores no Novobanco, a gravata de António Ramalho foi feita em pedaços, cada um dos retalhos uma palavra gravada da seda fina, agora arruinada como peça de roupa mas ganhando estatuto de quase obra de arte. “Tenho tudo numa moldura”, conta-me, na emoção que a memória evoca, sobretudo pela repetição dos adjetivos que lhe colaram na despedida: ousadia e coragem. “Foi o que quis transmitir-lhes, o que aprendi com o Champalimaud.” Tornou-se exemplo para outros, os que com ele trabalharam para levantar o banco, que antecipou objetivos de lucro e se mostra fruto apetecível para venda.

Agora, António Ramalho diz-se “na fase não executiva” da vida, distribuindo-se entre os papéis de fellow da Católica Business School do Porto, administrador da FIL – Fundação AEP, senior advisor da Alvarez & Marsal, nos quadros de um pequeno private equity, da Cruz Vermelha e da Fundação Aljubarrota. Também faz comentário escrito e falado, dá aulas, aconselha sobre negócios e participa em conferências sobre os mais diversos temas – são os frutos que colhe de uma carreira amplamente diversificada e da merecida reputação que foi ganhando.

“Há um momento na vida em que temos de preparar esta fase. Eu fui 15 anos CEO, fui administrador da banca pela primeira vez em 1992; há que respeitar o princípio da rotação, abrir oportunidades à nova geração. Até porque, com o tempo, perdemos algum killer instinct”, diz-me, comparando a exigência das funções, sobretudo as mais recentes, Infraestruturas de Portugal e NB, e a perda de fulgor aos tempos em que se retirou da competição de kart. “Continuei a conduzir muito bem, mas já não tinha o ímpeto.”

Tendo tido 23 auditorias, está tranquilo com o banco que deixou e as funções que assumiu “sem ceder um milímetro” na missão proposta e saltando para a frente sempre que as coisas pareciam azedar, recebendo ele os ataques. “É o método Mourinho”, brinca, para a equipa jogar com tranquilidade, o líder tem de dar a cara, assumir responsabilidades e ódios. Os outros banqueiros, que pagaram a conta, respeitam-nos e essa é a prova de dever cumprido. Isso e o facto de ter entrado num banco triplo C e tê-lo deixado forte e saudável, com confiança renovada dos clientes e mais depósitos do que na sua chegada.

À mesa d’O Madeirense, vai acenando com sorriso rasgado a quem o cumprimenta e recebe a típica espetada com prazer semelhante ao que ambos dedicamos à imperial que nos acompanha. A verdade é que continua tão ocupado quanto antes, até porque, confessa, dedica tanto entusiasmo ao trabalho pro bono que faz na Cruz Vermelha ou como presidente da Fundação Aljubarrota e àquilo a que chama stewardship quanto às funções pelas quais é remunerado. É alguém que abraça paixões e por isso prepara-se.

“Já saí muitas vezes de sítios, por iniciativa própria ou por convite para outros lugares e acredito que só se está bem se se tiver a liberdade de sair quando se quer”, diz, explicando que, por exemplo, nunca aceitou ter crédito à habitação nos bancos em que trabalhava. “O que foi novo foi deixar funções executivas e não voltar” – e resistir aos convites que continuam a assediá-lo da energia, do sector civil e até, diz-se, da TAP.

Ousadia, coragem, esforço, trabalho e ambição são expressões que se lhe colam à pele e resolver problemas entusiasma-o ainda – “fiquei um bocado conhecido como o bombeiro de serviço, chamado a assumir os desafios mais difíceis”, ri-se. O primeiro, assumiu-o logo no Banco Pinto e Sotto Mayor, de que aceitou ser administrador quando ninguém ali queria tocar: tinha falhado a privatização e era o patinho feio do sistema. Um ano depois estava a comprar o Totta. Foi nesse tempo que conheceu o mentor Champalimaud, a quem traça os mais rasgados elogios, e que percebeu que é preciso entender “a nossa maior capacidade distintiva, do ponto de vista das competências”. “A minha são as soft skills. Optei sempre por situações difíceis e tive sorte.” A sorte dos audazes, a que dá trabalho e que pôde assumir, não se cansa de repetir, graças a uma mulher que sempre foi uma companheira incrível, que se lhe substituiu nas ausências – “nunca esqueci quando as minhas filhas disseram que tinham pai 50 minutos por semana (os 10m/dia de as levar à escola)” -, pôs a carreira académica em espera e garantiu que a família se mantinha próxima. “Tenho as duas filhas e os cinco netos em Portugal, passamos férias, juntamo-nos ao fim de semana. E nunca acabei uma comissão de inquérito ou vivi um momento mais difícil que não fosse recebido pelas filhas lá em casa, iam sempre esperar-me.”

Aos 63 anos acha que já chega. “Eu anunciei em fevereiro que ia embora, saí em agosto e em setembro voltei à escola para fazer um high performance board no IMD de Lausanne, para me preparar para ser não executivo. Meti isso na cabeça, embrenhei-me, fui bom aluno e fiz bem esse phase out.” Não é só com os outros que é exigente. E se faz parte de uma geração chamada a responsabilidades executivas muito cedo, também acredita que o momento de devolver à sociedade a experiência que ganhou deve beneficiar de pelo menos tanto empenho e qualidade quanto o tempo anterior

80 km de bicicleta
Filho de um banqueiro e de uma matemática, António Ramalho viveu sempre por Benfica – exceto quando se casou e o dinheiro só permitia uma casa em Tires, junto ao Aeródromo. Cresceu em Benfica e ali fez a vida de bairro, “era quase uma vila na cidade”, recorda, contando com orgulho que até aos 17 anos fez parte do “Agrupamento 57 dos escuteiros, que era o maior de Lisboa”. “Fui guia da Patrulha Javali com 13 ou 14 anos, sei os nós todos – cabeça de cotovia, marinheiro, direitos -, fazia slide e rappel…”

A Fundação Aljubarrota é um ponto de contacto com esse tempo – “Nuno Álvares Pereira é patrono dos escuteiros”, sublinha – e também o liga a Champalimaud, por ter sido projeto dele, mas também aos valores que representam “uma dinastia anormalmente bem sucedida e que estão um pouco esquecidos hoje, em Portugal”. Mas os escuteiros eram sobretudo “uma estrutura de grande solidariedade e disciplina, promovida pelo padre Álvaro Proença que liderou a paróquia 42 anos e fez uma obra social notável”, descreve, rematando com a justa homenagem feita ao pároco, cujo nome foi dado a uma rua do bairro.

Pais das matemáticas, irmão engenheiro, foi contra a vontade sobretudo da mãe que optou por fazer Direito, na Católica, desenvolvendo as tais soft skills mas nunca perdendo os números que lhe marcam o ADN, o que o levaria a um Mestrado em Obrigações Convertíveis e logo depois, através da Associação Portuguesa de Bancos, ao Instituto de Formação Bancária. O primeiro emprego, teve-o ainda na faculdade, passando os últimos três anos a correr da faculdade para os bairros sociais onde, todas as noites, ajudava à alfabetização de jovens. “O meu pai odiava a ideia. Ele era um homem que via o trabalho como um valor e tinha tirado o curso a trabalhar, por isso gostaria que eu me concentrasse nos estudos. Então cortou-me a mesada: se eu queria ser profissional, tinha de ser independente”, ri-se.

Foi também em Benfica que conheceu a mulher – “os nossos pais eram amigos do bairro e ela visitou-me quando eu nasci, na barriga da mãe”, conta. Reencontrou Maria do Rosário na faculdade, onde ela se fez jurista e aos 23 anos sua mulher, depois mãe das filhas (“eu teria tido muita pena se não tivesse tido ao menos uma rapariga; a casa em que cresci era uma casa de homens”, confessa), Maria Leonor, arquiteta e designer, e Maria Inês, jurista e vice-presidente do PSD.

Também ele se deixou, em tempos, seduzir pela política – participou desde as origens na JSD, mas depois desiludiu-se – e até se arrepende, porque vê agora em Cavaco Silva um homem admirável e que deixou um legado incrível ao país. Mas o partido nesse tempo “aproximou-se de novo daquela ideia de Estado-salvador, divergiu dos princípios de Sá Carneiro e dos fundadores para uma visão social-democrata mais intervencionista”. Ele era liberal, acreditava que, sobretudo após anos de regime autoritário, era importante autonomizar as pessoas – “ainda sofremos dessa falta de ensejo em comandarmos a nossa vida; infelizmente só quando saímos de zona de conforto é que abraçamos o arrojo que temos e acho que isso tem que ver com essa mentalidade protecionista.

Fala com paixão. Pergunto-lhe se estaria hoje disponível para um cargo político. “A minha mulher não autoriza.” Ri-se, e nem mais uma palavra.

Pedimos cafés e eles vêm tentar-nos com Bolo de Mel e vinho Madeira, enquanto António me conta o prazer da vida muito estável que leva, das férias no Vale do Garrão e no Brasil ou enquanto acompanhante nas conferência que a mulher dá. Rói as unhas desde criança – “tinha de ter algum ponto de fuga”, ri-se – e faz ginásio todos os dias, em casa. Mas o seu maior prazer é a bicicleta, os 80 km regulares, os passeios dados “em alcateia” todas as semanas. “Ao sábado planeio o percurso e mando por sms ao grupo, ao domingo vamos de transportes e andamos pela praia ou pelo campo”, descreve com gosto. E depois, em gargalhada: “Há um que fazemos de São João da Caparica até à Fonte da Telha, passando a Apostiça e até Coina. Chamamos-lhe o circuito da troika, porque nessa altura vingavamo-nos com ele – isto nunca vão ter!”

Com os segundos cafés, confessa como também se vinga nos netos – António, Madalena e Tomás, de 4, 3 e 2 anos – do que não gozou com as filhas. E confessa um sonho: “Gostava de escrever, com a minha filha a ilustrar, uma história que lhes contava em crianças.”