Nunca em democracia a liberdade de expressão esteve tão ameaçada como nos dias actuais. Diariamente, abrimos as redes sociais e somos confrontados com “avisos” de que poderemos estar a ler uma informação falsa, obedecendo ao “Código de Conduta sobre Desinformação”, que nada mais é do que uma directriz europeia elaborada por “peritos” para combater a informação comprovadamente falsa ou enganadora. A alínea b) do documento esclarece que isso inclui informação que “é susceptível de causar um prejuízo público”, entendido como “ameaças aos processos políticos democráticos e aos processos de elaboração de políticas, bem como a bens públicos, tais como a protecção da saúde dos cidadãos da UE, o ambiente ou a segurança”.

Isso suscita dúvidas pelo carácter subjectivo e até autoritário do que significa “informação falsa ou enganadora”. Isso é assumir que há verdades dogmáticas, que o que está estabelecido como correcto não pode mudar, não pode ser questionado e a existência desse questionamento pode, segundo um avaliador “perito”, “representar um prejuízo público”.

Os dogmas são os maiores inimigos do progresso, da ciência e da liberdade; tudo deve ser questionado, tudo deve ser debatido. Galileu Galilei foi encarcerado por toda a vida por defender a teoria heliocêntrica. Se existissem os códigos de conduta por “desinformação” naqueles dias, certamente as teorias de Darwin e o evolucionismo, Mendel e a genética, Wegener e a deriva continental teriam sido etiquetados desta forma por “peritos”. Qualquer uma dessas teorias era desafiante para os poderes, fossem políticos ou religiosos.

Não cabe ao poder político, certamente não cabe ao Estado, definir o que é a “desinformação” e até “o discurso de ódio”, o que me leva ao próximo ponto: qual o limite para a liberdade de expressão?

Se considerarmos os direitos inalienáveis à vida, à liberdade e à propriedade, o limite para a liberdade de expressão está quando existir discurso que ameace a vida, a liberdade e a propriedade do outro. Quando há um protesto em que são erguidos cartazes de protesto político, não é suposto o visado apreciar os cartazes. Pode sentir-se ofendido. Não pode sugerir a supressão da expressão por se sentir ofendido.

Desconfiem quando um político se sentir ofendido, sobretudo se esse é o momento em que os seus seguidores e determinados sectores da sociedade civil começam a debater a supressão da vossa expressão. Considerando o contexto histórico português, se o tema de debate é a polidez com que devem expressar o vosso descontentamento e não o conteúdo da vossa mensagem, as memórias levam-nos aos tempos da censura.

Em 1926, na época da ditadura militar, houve a criação de um decreto que proibia cartazes e desenhos que ultrajassem o Presidente. Aos dias de hoje, por “ultraje”, leia-se “discurso de ódio”. Em 1933, já durante o Estado Novo, foram proibidas as “publicações não periódicas de carácter político e social”. Mais tarde, Marcello Caetano referia-se à censura como “exame prévio”. Aos dias de hoje seria “regulamentação”, e é um tema cada vez mais falado, cada vez mais considerado nos sectores mais poderosos da sociedade civil como “necessário”.

Temos o direito de falar e, como liberdade exige responsabilidade, somos sempre responsáveis por aquilo que dizemos. Também nos podemos sentir ofendidos e podemos não ouvir, não ler, não patrocinar e até responder de volta. Mas não incentivar à supressão do discurso, precisamente porque a sua liberdade termina onde começa a minha.

E de um país com a memória histórica do lápis azul, por vezes parece que há quem tenha optado por receber e aceitar como lição não a luta pela liberdade, mas sim a cultura do “respeitinho”.

A liberdade não se tira de uma vez. Tira-se às colheres.