Separa-nos o corpo, não nos separa o amor.
O amor viaja pelo tempo,
só o amor permanece na eternidade.
– Cuca Roseta

Quem de nós nunca participou numa cerimónia fúnebre ou exéquias? É algo que faz parte da vida custosa e menos boa, mas uma realidade por que todos, um dia, viveremos – já do lado de lá –, visto que, fisicamente, não somos nem seremos sempre desta terra dos vivos. O que partilho aqui, de seguida e somente na primeira parte, é fruto da reflexão homilética que escutei numa das muitas exéquias em que estive e que julgo ser pertinente termos em nós presente. Não apenas nas exéquias que enfrentamos na nossa vida, não apenas em cada dia comemorativo – ao ano – dos fiéis defuntos (2 de novembro), mas em cada instante da nossa jornada diária. Pensar em tudo isto, nos fará sentir vivos e inquietar-nos. Potenciará em nós o querer viver bem, o melhor possível.

A liturgia da morte é uma síntese de toda a vida cristã. Celebra-se a dor e a vida humana, que aqui se congrega. Celebramos o nosso batismo e todo o nosso percurso, desde então. As exéquias são a última celebração do cristão neste mundo, vividas com simplicidade. É um momento de ação de graças – louvar pela dádiva da vida vivida –, mas também de arrependimento. Por que é necessário? Porque nos transporta e transforma, no âmbito de nos libertarmos dessa emoção negativa da transgressão pela emoção positiva do perdão. As exéquias são a fronteira da vida, que marca irremediável e inevitavelmente a fronteira entre crença e descrença. As exéquias são a celebração da esperança, contra qualquer desesperança.

Ao contemplarmos este horizonte de largueza da vida lembramos Jesus naquela cruz, traduzida nas nossas cruzes quotidianas e mundanas. A vida é para ser fácil (no sentido de descomplicada), fluída e não sofrida, apesar do sofrimento fazer parte da vida. O cristão é chamado a viver por exigência da morte de Cristo e tem de esperar a Sua ressurreição. Essa é a Sua justiça e verdade fundamentais, como o é em cada um/a de nós.

Ao vivermos a vida compreendemos a morte pela fé. A morte é uma expressão visível do amor fraterno. Se isto não existir, é vã a nossa fé. Este é um momento de fraternidade, porque há um momento de separação. Vivendo este momento, aprofundaremos mais, na oração, a primazia da caridade.

“Deixemos cair e calar todos os nossos juízos humanos, porque só conta o juízo de Deus, que é um juízo de misericórdia”.

David Le Breton escreveu, a propósito: “a humanidade do cadáver permanece, mobiliza o respeito. Continua assim o diálogo com o defunto, falam com ele, interiormente ou em voz baixa, recordam com ele momentos especiais, lamentam-se os mal entendidos, as ocasiões perdidas, os momentos em que se esteve em falta com ele. Despedem-se simbolicamente dele, numa conversa que não foi interrompida, mas que tem muitas vezes relação com uma interioridade ou um segredo”.

A ação da cessação pela reação da oração

Uma das formas de podermos suportar a enorme dor que nos provoca a morte física de alguém querido, que amamos e nos é próximo, é através da oração interior. Para orarmos temos que entrar num combate, o bom combate da fé: essa é a arma do amor. E este é o único combate diferente de todos os outros. Nos outros, estamos sujeitos a morrer se não nos defendermos, se não nos escondermos. Enquanto neste combate, o verdadeiro combate, passa-se exatamente o contrário: para vencê-lo temos que nos unir a Jesus Cristo, ao outro lado da cruz, despojando-nos de nós mesmos, despindo-nos dos nossos preconceitos e vagas ideias (que nos fazem vaguear mentalmente e deambular), desobrigando-nos dos nossos desânimos e nossas dores.

A nossa “espada” é a nossa entrega desmedida ao Criador, a nossa força é nosso sim incondicional ao Seu amor. Porque, como refere uma expressão de S. Paulo, “quando nos sentimos fracos, então é que somos fortes”, embora nem sempre consigamos praticar isto mesmo, pela vulnerabilidade da nossa condição humana. Essa força vem da oração – seja como ação primeira, seja como reação –, que nos ajuda e ajudará a caminhar mais e mais. Aplicando isto na nossa vida, reconhecemos que há uma grande necessidade de morrer para o pecado e viver para o Alto.

A nossa falta de visão de reconhecer o enorme amor divino por cada pessoa impede-nos a uma maior intimidade espiritual. Há que reconhecer, também, não querermos continuar mais a ser escravos do pecado nem a crucificarmos os outros – o outro Jesus Cristo – com as nossas egoístas paixões.

O peso da cruz que outrora aguentámos, o peso dos nossos pecados e dos nossos medos, tornou-se em leve sustento com a coroa de glória que o Salvador fez triunfar sobre a morte. Esta é a nova vida, a vida vitoriosa da nova Páscoa, a festa do triunfo e do prémio da vida! Há que desejá-la (a vida nova), abertos aos pequenos sinais, na metamorfose do que constitui o nosso ser e o que somos naquilo que fazemos, regularmente, em rompimento com a vida rotineira e aceitando as nossas limitações.

Palavras simples e sábias dimanam de uma obra que me tocou particularmente – o livro e filme A menina que roubava livros: “Vamos morrer. Apesar de todos os esforços, ninguém vive para sempre. Quando chegar o momento, não entre em pânico. Parece que não resulta nada”.

Ou da canção No teu poema, do fadista Carlos do Carmo, por nos afirmar que: “Existe a esperança acesa atrás do muro/Existe tudo o mais que ainda escapa/E um verso em branco à espera de futuro”.

Ou, ainda, um motivo de confiança, uma fiança motivadora, por sabermos que “a vida é breve, mas cabe nela muito mais do que somos capazes de viver” (José Saramago). Tendo sempre a consciência de que “a morte não é a maior perda da vida”, mas sim “o que morre dentro de nós enquanto vivemos” (Pablo Picasso).