“Era outra coisa que precisava de saber, e saber o mais depressa possível, se era um piolho, como todos, ou se era um homem. Conseguiria transpor o limiar ou não conseguiria? Ousaria abaixar-me e apanhar, ou não? Seria eu uma criatura tremente, ou teria o direito…”
– Crime e Castigo, Fiódor Dostoiévsky
Das muitas ilações que se pode tirar deste livro, a que me tem prendido é sobre a angústia existencial de Raskólnikov e por isso comecei a ficcionar em que se traduziria o seu crime, no clima espiritual de agora.
Rodion Românovitch Raskólnikov, personagem principal do livro Crime e Castigo, cai num delírio intelectual e moral em que se convence que a diferença essencial entre ser “piolho” e “Napoleão” reside na indiferença total perante o eixo moral e social, quando se é confrontado com a grandeza de intentos egoístas. Esta teoria parte, claro, da angústia que a personagem sofre por não saber se faz parte da classe dos “piolhos” ou do Napoleão, mas parece-lhe que, num exercício de integridade filosófica, o mais acertado seria acertar contas com o destino e resolver de uma vez por todas a questão que o estava a levar a um delírio obsessivo. Em vez de esticar a corda da sua integridade moral até descobrir onde quebra, Raskólnikov decide, portanto, parti-la e ver se aguenta as consequências: cometer um crime de homicídio. Não consegue. Tem escrúpulos e isso destrói-o. Não é um Napoleão. O que lhe resta?
O espírito humano reside inalterado, quer narrado no século XIX quer na contemporaneidade. Continuamos a ser atormentados pela questão de saber se estamos destinados a deixar alguma marca na História: “Quero estabelecer o princípio de que a natureza divide os homens em duas classes: uma inferior, a dos ordinários, espécie de matéria, tendo por única missão reproduzir-se; a outra superior, compreendendo os homens que têm o dever de lançar no seu meio uma palavra nova.”
Dostoiévsky percebeu o exemplo perfeito com que confrontar o leitor com as escolhas que cada um estaria disposto a fazer para entender-se (finalmente) enquanto piolho ou Napoleão: um homicídio. No século XXI igualmente o vemos, mas não num exercício tão preto no branco de flexibilidade moral. Mas vemo-lo. Os mais espertos percebem que, na sociedade contemporânea, isto é atingido através da persona que assumimos perante os nossos pares: se convencermos os outros de que não somos um piolho, antes um Napoleão, talvez iremos dar alento à angústia espiritual que nos atormenta a todos. E o exercício espiritual que motivou toda a nossa jornada intelectual ou social acaba por realmente não importar. Não importa a 99%, que se perdem pelo caminho, anestesiados pela persona que criam.
O ponto principal é que a persona não alimenta o espírito, mas alimenta o reconhecimento pelos pares. Há um consenso subentendido de que, se formos bem sucedidos no método fake it until you make it, não importa realmente se estamos ou temos o mérito de fazer parte do discurso ou de sermos reconhecidos como autoridade. Nas palavras de Dostoiévsky, de “lançar no seu meio uma palavra nova“.
Apesar de fazê-lo de uma forma simplória (tendo em conta que me coloco em diálogo com um dos maiores autores da História da Humanidade), a ideia que tento recuperar é que ser uma “figura de autoridade” social e ter reconhecimento mediático é um caminho de auto-destruição do intento pela forma. Numa ânsia assustadora de se “ser alguém”, a fome espiritual sentida quando se começa essa jornada pela grandeza vai-se perdendo, anestesiados pela bajulação, anestesiados pelas flashing lights.
Fazendo uma última referência a Dostoiévsky, “Your worst sin is that you have destroyed and betrayed yourself for nothing”. A última questão que coloco, e que deixo no ar, é se já não temos exemplos suficientes na sociedade – na política, no ativismo, na cultura – da ânsia de grandeza como um fim em si mesmo. Se levantássemos mais vezes a cortina sobre este assunto, talvez fosse mais fácil distinguir esperteza de mediocridade.
Estudante de Direito na Faculdade de Direito da Universidade do Porto