Assim que começou a circular o relatório da IGF, surgiu o título bombástico em linha com o que já tinha sido veiculado há mais de um ano na discussão pública: a TAP teria sido comprada com o seu próprio dinheiro. Independentemente de outras considerações sobre o processo de privatização, esta afirmação não encontram suporte nos factos.
É fácil de perceber porque é que a TAP não poderia ter financiado a sua própria compra. Por três ordens de razão:
- A TAP não tinha dinheiro nem para as suas despesas correntes, quanto mais para financiar a sua própria compra;
- O montante que se diz ser da própria TAP nunca existiria se não tivesse havido processo de compra; e
- Esse montante não foi usado para pagar o preço de compra da TAP, mas para injetar diretamente na TAP, para que pudesse responder aos seus compromissos.
De onde surgiu esta narrativa então? De forma simplificada:
- Em 2015, a TAP estava com grandes dificuldades financeiras. O seu valor era próximo de zero (provavelmente negativo) e no processo de venda não apareceram muitos compradores;
- O principal fornecedor a quem a TAP tinha dificuldades em pagar era a Airbus, a quem tinha feito uma encomenda de aviões dez anos antes;
- Em 2015, foi feito o acordo de venda de 61% da TAP a David Neeleman, pelo valor de 10 milhões de euros, tendo este assumido o compromisso de injetar mais 217 milhões de euros na transportadora, para que pudesse continuar a pagar salários e aos fornecedores. Ou seja, a TAP foi vendida por 10 milhões de euros. Estes 217 milhões de euros (o montante de que se fala) foi uma injeção feita na própria TAP porque, lá está, a TAP não tinha dinheiro;
- Onde é que David Neeleman foi buscar 217 milhões de euros para injetar na TAP? Neeleman levou o seu projeto para a TAP à Airbus, que tinha, obviamente, interesse que um cliente como a TAP continuasse a funcionar. A Airbus acreditou no projeto e aceitou trocar a encomenda de grandes aviões que tinha na altura por uma encomendas de aviões mais pequenos (parte da estratégia de Neeleman) e ainda disponibilizar imediatamente os tais 217 milhões de euros (os “fundos Airbus”) para viabilizar financeiramente a TAP;
- Estes “fundos Airbus” foram disponibilizados a David Neeleman para que pudesse injetar na TAP e não à TAP diretamente. Ou seja, nunca existiriam se não tivesse havido o processo de compra;
- O interesse da Airbus era, obviamente, que a TAP continuasse a funcionar e a pagar encomendas. A Airbus protegeu-se, colocando como penalização, caso a TAP não pagasse as encomendas no futuro, os tais 217 milhões de euros (os “fundos Airbus”).
- David Neeleman comprou a TAP por 10 milhões e meteu os 217 milhões de “fundos Airbus” na TAP para que a TAP pudesse pagar a fornecedores e trabalhadores.
Ou seja, os 217 milhões de euros que dizem ser “dinheiro da própria TAP” era dinheiro que a TAP não tinha, que não foi usado para comprar as ações da TAP e que entrou na TAP apenas porque Neeleman negociou com a Airbus a sua entrada.
A única ponta de verdade nesta história é que a Airbus só aceitou ceder os 217 milhões de euros porque acreditava que, com Neeleman, a TAP iria ser capaz de pagar as encomendas no futuro, algo que estava em risco em 2015. Ou seja, indiretamente, o dinheiro que a TAP iria gerar no futuro com Neeleman compensaria a tal injeção de 217 milhões de euros.
O máximo que se poderá dizer é que a Airbus aceitou viabilizar a TAP de Neeleman antecipando que a TAP no futuro lhe devolveria esse valor nas compras que fizesse à própria Airbus. Na prática, é isto que fazem todos os investidores: investem numa empresa na perspetiva de que a empresa lhes devolva esse dinheiro sob a forma de dividendos, de juros, ou, no caso de fornecedores, com compras futuras. Quando se investe dinheiro numa empresa, espera-se que a empresa o devolva de alguma forma no futuro, mas isso não faz com que esse dinheiro seja, hoje, da empresa.
Finalmente, a questão legal. O artigo 332.º do Código das Sociedades comerciais, a que se refere o relatório da IGF, diz o seguinte:
1. Uma sociedade não pode conceder empréstimos ou por qualquer forma fornecer fundos ou prestar garantias para que um terceiro subscreva ou por outro meio adquira acções representativas do seu capital.
Saber se a forma de financiamento das prestações acessórias no processo de privatização cumpre o código das sociedades comerciais, ou não, caberá aos tribunais. O relatório do IGF não o afirma, apenas lança essa possibilidade. Do ponto de vista de um leigo, é difícil enquadrar o artigo citado no que aconteceu na privatização da TAP, porque a TAP não fez qualquer financiamento e o financiamento recebido da Airbus não foi para comprar ações, mas sim para injetar na própria empresa através de uma prestação acessória.
É importante relembrar, no entanto, que todos os dados sobre o negócio disponíveis hoje já estavam disponíveis há mais de um ano (o relatório da IGF não traz factos novos) e foram discutidos publicamente em comissão parlamentar, sem que o Ministério Público se tivesse envolvido até hoje. Se o fizerem agora, ficará então esclarecido se é possível financiar a prestação adicional numa empresa com dinheiro de um fornecedor.
O único ponto assente é que aquele dinheiro usado para salvar as finanças da TAP não estava no balanço da TAP nem lhe estaria facilmente acessível (caso contrário, a TAP já o teria ido buscar antes). As dúvidas legais parecem frágeis, mas caberá aos tribunais decidir, se o processo alguma vez avançar.