Bandeiras americanas erguidas bem alto. A palavra “liberdade” ecoou em toda a convenção, acompanhada por apelos ao patriotismo, com militares a desfilar e discursos emotivos sobre a verdadeira condição excecional do país. Esta convenção democrata pareceu ser retirada de um antigo manual republicano, destinada a provocar a ira de Donald Trump, que anteriormente afirmara que os democratas não gostavam de usar a bandeira dos Estados Unidos.

O evento culminou com um discurso de Kamala Harris, que defendeu vigorosamente o excecionalismo americano e a nação indispensável que lidera o mundo livre contra as investidas dos seus adversários. Esta convenção foi, igualmente, um forte apelo aos moderados e independentes, contando com a participação de vários antigos republicanos, numa tentativa de tranquilizar os eleitores de que podem votar confortavelmente no Partido Democrata, sem temerem uma visão radical ou transformadora do país. As estrelas de Hollywood e do mundo do entretenimento, um clássico nas campanhas democratas, marcaram presença em força, destacando-se o discurso de Oprah Winfrey, cuja popularidade ressoa profundamente em importantes segmentos do eleitorado.

Foi também uma semana em que o Partido Democrata demonstrou estar em paz com a sua história, mas igualmente com o seu presente e futuro. Barack Obama e Bill Clinton destacaram-se entre os oradores mais eficazes. Kamala Harris e Tim Walz, a dupla que tentará manter a Casa Branca, cumpriram as suas responsabilidades, mantendo o momentum que se iniciou desde que Joe Biden anunciou a sua retirada.

As novas estrelas do partido desfilaram e geraram entusiasmo, em especial Josh Shapiro e Pete Buttigieg. O ainda presidente Biden também marcou presença em Chicago, embora de forma mais discreta no primeiro dia. O seu afastamento da corrida, forçado pelas elites democratas, deixou marcas num político que esteve mais de 50 anos ativo na vida pública. Ainda é demasiado cedo para que estas feridas sejam saradas.

Esta foi, igualmente, uma semana em que os tradicionalmente mais críticos mantiveram-se sob controlo. Bernie Sanders e Alexandria Ocasio-Cortez atuaram como jogadores de equipa e foram bastante aplaudidos pelos delegados. A única nota dissonante foi a dos apoiantes e manifestantes da causa palestiniana, que não conseguiram ofuscar a convenção, apesar dos protestos e do “circo” montado nas ruas de Chicago, onde não se repetiu o desastre de 1968. Não creio que a defesa de Israel por parte de Kamala Harris irá deixar marcas significativas.

Houve um contraste evidente com a convenção republicana do mês passado, que não contou com nenhuma das grandes figuras do seu passado recente e esteve exclusivamente centrada em Donald Trump e nos seus acólitos mais fiéis. No entanto, esta convenção democrata, conforme ficou explícito no discurso de Kamala Harris, foi também um esforço para centrar esta eleição como um referendo ao antigo presidente republicano. Houve um desfile de acusações sobre a conduta de Donald Trump e tudo o que ele representa, segundo a visão democrata: alguém que não defende o povo americano, centrado em si mesmo e que constitui um perigo para a democracia e seus aliados.

Mais do que discutir as políticas alternativas que democratas e republicanos defendem, esta foi uma convenção que apresentou uma visão otimista de normalidade, bem ao estilo do candidato a vice-presidente, Tim Walz. Em contraste com a convenção republicana, onde não houve um grande esforço para recuperar eleitores desavindos, sendo mais direcionada para a base conservadora, os democratas empenharam-se em captar o voto dos republicanos descontentes e moderados, com tendências conservadoras.

Na noite da consagração de Kamala, Adam Kinzinger, antigo congressista republicano do Illinois, foi uma das estrelas, criticando duramente o seu antigo partido. Além disso, vários republicanos e antigos colaboradores de Trump subiram ao palco para tentar captar este voto. Vão conseguir? Veremos no dia 5 de novembro.

O mês de sonho de Kamala Harris chegou ao fim. Lidera as sondagens, embora não de forma totalmente confortável, e conseguiu mobilizar a base democrata e os seus aliados. Deixou Donald Trump à beira de um ataque de nervos e colocou os republicanos na defensiva. Agora começará a verdadeira campanha, com os debates e atuações fora da redoma democrata. Terá condições para preservar esta dinâmica até ao final? Esse será o grande teste de Kamala.

Especialista em política norte-americana