Quem a conheceu recorda uma mulher que sempre debateu o papel e os desafios do Ministério Público de forma apaixonada, que era firme, corajosa e combativa, um exemplo de serviço público, uma defensora dos direitos das mulheres, das crianças e dos mais fracos. Foi aos 56 anos que Joana Marques Vidal se transformou na primeira mulher a ocupar o cargo de Procuradora-Geral da República, cargo que viria a exercer durante seis anos (entre 2012 e 2018) de uma forma consensual e nunca antes vista. A não renovação do seu mandato, aliás, viria a ser altamente contestada precisamente por isto: é que nunca antes um PGR tinha conseguido ser tão consensual dentro do mundo judiciário, entre procuradores, juízes, advogados e funcionários judiciais.

Numa entrevista que deu no final do seu mandato, Joana Marques Vidal mostrava-se orgulhosa de ter posto “a máquina a funcionar” e do caminho “de modernização do Ministério Público”. Estava longe de imaginar que, nos meses que antecederiam a sua morte, no Hospital de São João, no Porto, esta terça-feira, 9 de julho, aquela magistratura estaria a ser alvo de enormes críticas e descrença. “O Ministério Público não voltará atrás, não voltará ao que foi”, disse nessa entrevista em 2018. Recorde-se que coube a esta mulher nascida em Águeda a missão de unir o Ministério Público, que estava completamente partido depois do conturbado mandato de Pinto Monteiro.

A época dourada do fim dos intocáveis

Durante o seu mandato esforçou-se por dotar o Ministério Público de ferramentas informáticas (como a digitalização de processos) e em dar formação aos magistrados na área do combate ao crime económico. Coincidência ao não, foi durante aqueles seis anos do seu mandato que o Ministério Público viveu uma época dourada. E em que a opinião pública começou a olhar para a justiça como uma área em que já não havia intocáveis. Foi durante a sua liderança que brotou a Operação Marquês, um dos processos mais importantes da democracia portuguesa por envolver suspeitas de corrupção contra um ex-primeiro-ministro – e que por sua vez levaria à detenção e prisão preventiva de José Sócrates. Foram também os anos dos processos do Universo Espírito Santo, dos Vistos Gold (que envolveram o ex-ministro Miguel Macedo), da Operação Fizz (com o procurador Orlando Figueira e o famoso “irritante” com Angola), do caso Tancos (que envolveu o ex-ministro da Defesa Azeredo Lopes) ou da Operação Lex contra o então juiz Rui Rangel.

As investigações foram tantas e os indícios sobre políticos e magistrados tão comprometedores que parecia que do sistema não ia sobrar pedra sobre pedra. Talvez por isso tenha dito, na última entrevista que deu ao Expresso e à SIC como Procuradora-Geral da República, que ficou “surpreendida com a dimensão da corrupção em Portugal”: “Somos um país onde o problema da corrupção tem uma dimensão que é urgente atacar. Tem de ser encarada como uma questão essencial do Estado de direito democrático. Penso que politicamente a resposta não é eficaz, tem sido muito superficial. Não há uma estratégia nacional contra a corrupção. Não só na resposta judiciária, estou a falar da dimensão cultural e da rejeição que deveria haver de todos.”

Era favorável, por exemplo, à criminalização do enriquecimento ilícito.

Filha mais velha de seis irmãos, cresceu no meio de juristas. O pai, José Marques Vidal, é juiz conselheiro jubilado e foi diretor geral da Justiça e diretor geral da Polícia Judiciária; um dos irmãos, João Marques Vidal, foi diretor do DIAP de Aveiro e um dos procuradores do Face Oculta – o procurador teve divergências públicas acentuadas com Pinto Monteiro, por não ter permitido uma investigação contra José Sócrates por este alegadamente ter estado envolvido num plano para “controlar” os media.

A jurista ilustre e o respeito dos pares

Cavaco Silva já tinha nomeado José Marques Vidal para diretor geral da Polícia Judiciária e, em outubro de 2012, nomeou a filha Joana Marques Vidal para ser Procuradora-Geral da República. Na hora da despedida da antiga PGR, o ex-Presidente da República recordou “a firmeza” com que “exerceu o mandato, dando uma nova dinâmica à investigação criminal”. Essa firmeza e a maneira “equilibrada como geriu casos de elevada complexidade impressionaram-me muito”, disse Cavaco Silva, que disse ainda que Joana Marques Vidal “prestou serviços muito relevantes a Portugal” e que “a sua partida inesperada, demasiado cedo, priva-nos de uma opinião sóbria, séria e relevante no mundo da justiça”.
Joana Marques Vidal foi operada a um cancro e apanhou uma septicemia na sequência da cirurgia, que a levou a estar em coma induzido durante cerca de um mês. Era solteira e não tinha filhos.
Marcelo Rebelo de Sousa, que a condecorou com a Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo no final do seu mandato à frente do Ministério Público, em 2018, destacou a “jurista ilustre, com profundas preocupações sociais e funções de liderança”, que “granjeou o respeito e o apoio de pares, subordinados e da sociedade em geral, nunca deixando de se dedicar a uma pedagogia democrática, com destaque para a participação cívica e a defesa dos direitos fundamentais, neles avultando o papel da mulher e a defesa dos mais frágeis e discriminados”.
Foram Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa que decidiram que Joana Marques Vidal não deveria ser reconduzida no cargo. Numa entrevista ao Expresso, confessou ter sabido que o seu mandato não iria ser renovado duas horas antes do anúncio da sua sucessora, que seria Lucília Gago, e lamentou que naqueles últimos meses do seu mandato a história da sua recondução se tivesse transformado numa arma política.
O sentido de humor, o inconformismo, a proximidade aos processos mediáticos
Quem esteve à frente de processos mediáticos naquela época confessa que Joana Marques Vidal acompanhava bem de perto esses processos. “Uma PGR não investiga mas ajuda… e a Joana ajudou tanto. Acompanhou sempre muito de perto os processos mais mediáticos, apoiando e responsabilizando quem por eles era diretamente responsável. Vivenciei-o na primeira pessoa”, confessou nas suas redes Filipe Preces, um dos procuradores que estiveram na reta final da investigação da Operação Marquês. “Conforta-me recordar a sua enorme bonomia e o seu apuradíssimo sentido de humor. Tinha uma intrepidez que a mantinha sempre irrequieta e inconformada. Nem a jubilação a sossegou. Que foi uma excelente PGR todos o dizem, todos o sabem. Impôs uma liderança natural, tranquila e sempre muito próxima dos colegas”, acrescentou o procurador.
A propósito da Operação Marquês e da proximidade aos processos mediáticos, mas mantendo a autonomia dos procuradores do Ministério Público, Joana Marques Vidal confessou em entrevista ao Expresso: “Quando Sócrates foi detido, a minha preocupação foi perguntar: analisaram bem, ponderaram bem?”
Já mais tarde, depois da decisão instrutória do juiz Ivo Rosa, que destruía uma grande parte da acusação da Operação Marquês, a ex-PGR lamentou essa decisão, em declarações ao Observador, em 2021, considerando que tinha colocado “em causa o prestígio e o funcionamento do sistema judicial” aos olhos da opinião pública.
Já em 2022, durante o congresso do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, defendeu a necessidade de a justiça aprender a comunicar “com clareza e simplicidade”.
A família e os menores, o exemplo de serviço público e a vontade de mudar o MP 
António Ventinhas, ex-presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, recordou uma profissional que “nunca deixou de querer debater o Ministério Público de forma apaixonada” e que “queria mudar o Ministério Público”. Maria José Morgado, antiga diretora do DIAP de Lisboa, confessou “uma enorme tristeza, uma dor muito grande”: “Foi com ela que conseguimos avanços notáveis em áreas nunca antes alcançadas. Recordo também a sua enorme energia e ativismo.”

A ministra da Justiça Rita Alarcão Júdice falou de “uma magistrada notável” e Dulce Rocha, procuradora e presidente do Instituto de Apoio à Criança destacou uma mulher que “mereceu o respeito dos profissionais do judiciário” e se empenhou “na defesa dos direitos da criança e também na causa dos direitos das mulheres”: “Sempre a conheci com este olhar entusiasta e motivador”, recordou, aludindo a uma fotografia da ex-PGR num evento público.

Joana Marques Vidal trabalhou muitos anos na área do direito da Família e Menores e chegou a dirigir a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV). Em Cascais, foi a primeira presidente da Comissão de Proteção de Menores do município e foi coordenadora dos Magistrados do Ministério Público do Tribunal de Família e Menores de Lisboa, de 1994 a 2002. Foi aliás devido a esse cargo que chegou a ser alvo de um processo disciplinar por suspeitas de eventuais responsabilidades no caso das crianças adoptadas nos anos 90 por casais ligados à Igreja Universal do Reino de Deus. Esse processo seria arquivado em 2019.

Quando foi nomeada para PGR, era auditora jurídica do Representante da República para a Região Autónoma dos Açores e, em acumulação, magistrada do Ministério Público no Tribunal de Contas, na seção regional dos Açores, em Ponta Delgada.

Nasceu em 1955, em Coimbra, e licenciou-se em Direito em 1978, tendo entrado no ano seguinte para a magistratura do Ministério Público, como delegada do Procurador da República nas comarcas de Vila Viçosa, Seixal e Cascais. Foi também vogal do Conselho Superior do Ministério Público e diretora-adjunta do Centro de Estudos Judiciários.

Numa das suas escassas entrevistas, disse que ser mulher nunca havia afetado a sua carreira: “Provavelmente porque como não vejo nenhum poder como sagrado, necessariamente nunca vi assim o poder masculino.” E recordou ainda como nunca se deixou deslumbrar pelo poder: “Sempre vivi com a noção perfeita de que o poder é precário, uma coisa efémera. Hoje está-se num cargo de poder, amanhã não, e não é por aí que devemos reger a nossa vida. Aprendi-o com os meus pais e é uma maneira de estar na vida.”

João Paulo Batalha, presidente da Frente Cívica, foi outra das vozes que se levantou para recordar o exemplo de Joana Marques Vidal: “Foi um exemplo de serviço público – “é” um exemplo, porque os exemplos permanecem. Num período de crise económica, institucional e de confiança, ajudou a estruturar uma justiça democrática num dos momentos em que mais precisávamos dela. Internamente, organizou e deu eficácia ao MP. Externamente, afirmou a autonomia da magistratura e assumiu a responsabilidade pelo seu bom funcionamento. Num país sob resgate, que se afundava em casos de corrupção, deu-nos esperança.”