Nas análises às eleições europeias, vários comentadores tentaram perceber os resultados sob uma perspetiva de transferência de votos, especialmente sobre o destino dos votos do Chega. Esta análise padece de um problema: quase todos os partidos perderam votos em relação às legislativas.
Nem PS nem AD nem CDU nem Livre podem afirmar com grande certeza terem recebido votos oriundos de eleitores de outros partidos, apesar do aumento do resultado percentual nestas europeias em relação às legislativas. No limite, estes partidos podem não ter ganho um único voto, tendo simplesmente perdido menos votos para a abstenção do que os restantes. Numas eleições sempre marcadas pela forte abstenção, o sucesso eleitoral está muito dependente da capacidade de mobilização do eleitorado. Para o conseguir, é preciso um eleitorado convicto que saia de casa mesmo quando as eleições são mais dadas a abstenção.
É o caso, por exemplo, da CDU, que já perdeu quase todo o eleitorado flutuante que tinha a perder, ficando agora exposto apenas às perdas do seu eleitorado convicto por causas naturais. Entre as legislativas e as europeias, a CDU segurou 80% do seu eleitorado.
No extremo oposto deste grau de convicção está o Chega. Enquanto que entre os outros partidos, excepto a Iniciativa Liberal, a retenção de eleitorado variou entre os 60% do Bloco de Esquerda e os 80% da CDU – tendo sido de 70% para o PS e 66% para a AD –, no caso do Chega, a retenção foi de apenas 33%. Terá certamente contribuído para isso a escolha errada de cabeça de lista. Mais do que isso, o Chega está a pagar ter crescido depressa à custa de um eleitorado volátil de abstencionistas que, demonstrado o seu descontentamento nas últimas legislativas, voltou ao seu estado original. O efeito do regresso em massa do eleitorado do Chega à abstenção criou um efeito de redução de base eleitoral que ajudou a que quase todos os outros partidos crescessem percentualmente, apesar da redução transversal no número de votos.
O único partido que pode falar com absoluta certeza de que foi buscar votos a outros partidos é a Iniciativa Liberal. Mesmo assim, estamos a falar de um aumento de cerca de 39 mil votos relação às Legislativas (ainda faltam alguns consulados que não alterarão substancialmente este valor). Com este número de votos, a Iniciativa Liberal teria tido 5,5% nas legislativas, elegendo 9 deputados.
Como é evidente, é ingénuo pensar que nenhum dos eleitores da Iniciativa Liberal das legislativas se absteve desta vez por desinteresse como aconteceu com todos os outros partidos. No entanto, parece-me hoje que a grande força da Iniciativa Liberal nestas eleições esteve numa característica específica do seu eleitorado: é um eleitorado convicto que vota sempre Iniciativa Liberal, independentemente das circunstâncias. Pode ser um eleitorado ainda relativamente pequeno, mas é resistente. Foi a força desse eleitorado convicto que fez com que a Iniciativa Liberal resistisse a uma situação interna complicada, criando a base eleitoral sólida para aumentar 57 mil votos entre as Legislativas de 2022 e 2024. E foi esse eleitorado convicto que serviu novamente de base para aumentar o número de votos num ambiente de alta abstenção, gerando um aumento substancial da percentagem de votos.
O leitor poderá sempre contra-argumentar que o eleitorado Iniciativa Liberal é igual aos outros em termos de convicção. Pode argumentar que, na verdade, o eleitorado das Legislativas da Iniciativa Liberal se absteve na mesma proporção de todos os outros, mas que a Iniciativa Liberal conseguiu ir buscar muito eleitorado a outros partidos que mais do que compensou essa perda. Não duvido que esse efeito exista, até pela diferença de qualidade do cabeça de lista em relação aos restantes, mas não me parece que seja o efeito mais importante.
O maior teste de convicção do eleitorado vem dos eleitores emigrantes. Nas legislativas foi fácil para um emigrante votar: bastava enviar o voto por correio com a identificação. Nas europeias é muito mais complicado: é preciso deslocar-se ao consulado, muitas vezes distante da residência. Só um eleitor muito convicto é que se dá a esse trabalho. Este é o verdadeiro teste de convicção de voto.
Vejamos então como se safaram os diferentes partidos neste teste de convicção no círculo da Europa. Na altura em que escrevo o texto já só falta contabilizar um consulado, mas os números de retenção de eleitorado em relação às legislativas são genericamente baixos: a AD reteve apenas 10% do seu eleitorado na Europa, o PS 9% e o Chega apenas 5%. A Iniberaliciativa L, pelo contrário, reteve 60% do seu eleitorado na Europa em relação às legislativas.
Graças a esta capacidade de retenção de eleitorado, a Iniciativa Liberal cresceu de 2,4% dos votos no círculo da Europa nas últimas legislativas para, até agora, 18,7%, estando, à hora a que escrevo, a disputar com a AD a vitória nesse círculo. O Chega, que ganhou o círculo nas Legislativas, está em quinto atrás do Livre. O círculo da Europa foi mesmo, de longe, o círculo onde a Iniciativa Liberal mais cresceu: de 2,44% e quinto lugar nas Legislativas para 18,60% nas Europeias, estando ainda a disputar o primeiro lugar.
O exemplo do círculo da Europa é ainda mais importante de analisar porque o cabeça de lista deste círculo nas legislativas já tinha sido João Cotrim Figueiredo. Sendo verdade que, em eleições legislativas, o cabeça de lista do círculo não é tão importante para a decisão de voto como o cabeça de lista em europeias, ainda assim esta diferença de resultados com o mesmo cabeça de lista é indicativa de que a explicação para o aumento substancial da percentagem de votação está na capacidade de mobilização do partido, ou seja, no nível de convicção do eleitorado. Se no círculo da Europa, onde o voto era muito mais difícil do que nas Legislativas e onde apenas votaram menos de 10% dos eleitores em relação às legislativas, a Iniciativa Liberal conseguiu reter 60% do eleitorado, não é difícil de imaginar que no país, onde o voto até foi mais facilitado e a retenção de eleitorado total foi seis vezes superior, a retenção do partido esteve muito acima, provavelmente próxima de 100%. A convicção na marca Iniciativa Liberal provou valer mais do que muitos, incluindo eu, pensavam.
É indesmentível que João Cotrim Figueiredo tem um conjunto de características únicas que fazem dele um grande ativo eleitoral. É indesmentível que a Iniciativa Liberal fez uma campanha mais tradicional, mais focada no cabeça de lista do que no partido ou nas suas ideias, alavancando essas características única.
No entanto, tudo indica que uma parte importante deste sucesso eleitoral deveu-se à capacidade que o partido tem hoje de manter um eleitorado fiel e convicto que vota na Iniciativa Liberal e nas suas ideias, independentemente das circunstâncias. Um eleitorado que tem tido um crescimento mais lento do que desejável, mas que, ao contrário de outros, está bem sedimentado. Um eleitorado que votou Iniciativa Liberal mesmo com uma liderança recente com desafios de afirmação num ambiente interno complicado. Um eleitorado que saiu de casa para votar Iniciativa Liberal numas Europeias em que tantos ficam em casa por desinteresse. Um eleitorado convicto para lá das pessoas e das circunstâncias.
Um partido de ideias precisa sempre de bons porta-vozes capazes de as transmitir de forma eloquente e convincente. Sem porta-vozes eloquentes e convincentes, como João Cotrim Figueiredo, o crescimento desta base eleitoral convicta teria sido ainda mais lento. Mas a cola que diferencia um eleitorado flutuante de um eleitorado fiel está na adesão às ideias que conseguem reter o eleitorado para além dos candidatos e das circunstâncias.
As pessoas e as circunstâncias importam e nunca pesaram tanto para a Iniciativa Liberal como nestas eleições europeias, mas as notícias da morte do partido das ideias foram manifestamente exageradas.