Três semanas após os 50 anos do 25 de Abril, vai ser revelada a 14 de maio a importância – até hoje quase desconhecida – de uma organização clandestina de oficiais da Marinha na preparação do golpe militar que pôs fim ao Estado Novo, bem como na direção política que lhe é imprimida desde o primeiro dia. Os seus dirigentes eram Martins Guerreiro, Almada Contreiras e Miguel Judas. A organização clandestina era constituída por jovens oficiais que, nos meses anteriores à revolução, conviviam socialmente no Clube Militar Naval, enquanto também organizavam atividades clandestinas, semilegais e mesmo legais de oposição à ditadura.

Foram estes jovens oficiais que prepararam, juntamente com Melo Antunes e outros oficiais do Exército, a versão inicial do Programa do Movimento das Forças Armadas – MFA publicada pelo jornal República numa edição especial do próprio dia 25 de abril de 1974. Foi de um deles, Almada Contreiras, que veio a ideia de um sinal sonoro para a saída simultânea de todas as forças militares revoltosas, inspirada numa medida prevista pouco tempo antes para defender o governo de Salvador Allende no Chile contra um golpe que se avizinhava (e que Pinochet, de facto, concretizou). Foi também Almada Contreiras, alentejano que conhecia Zeca Afonso, quem escolheu, para sinal, a canção “Grândola”.

Foram igualmente estes oficiais da Marinha que, depois de terem tentado sem sucesso incluir a tomada da sede da PIDE/DGS na Ordem de Operações preparada por Otelo Saraiva de Carvalho, tomaram iniciativas ao longo dos dias 25 e 26 de abril para que tal sucedesse.

Tudo isto é contado e analisado pela historiadora Luísa Tiago de Oliveira, investigadora e docente no Iscte – Instituto Universitário de Lisboa, em “A Caminho do 25 de Abril – Uma Organização Clandestina de Oficiais da Armada”, um livro das Edições 70. O seu lançamento terá lugar no Iscte, a partir das 18h00 de 14 de maio. A apresentação do livro estará a cargo dos historiadores Sérgio Campos Matos, da Faculdade de Letras da Universidade de lisboa, e de Irene Pimentel, do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa.

O relativo desconhecimento até hoje do papel da organização clandestina de oficiais da Marinha na preparação do 25 de Abril, radica, segundo Luísa Tiago de Oliveira, “no facto dos textos adotarem a perspetiva, em grande medida correta, da conspiração e do golpe do 25 de Abril terem assentado no MFA do Exército e de se dedicar pouca atenção aos contributos dos outros ramos das forças armadas e aos seus ‘MFA’s’ próprios”. A descrição e o silêncio dos próprios oficiais da Marinha é outra das explicações para o desconhecimento.

 

 

“Organização” e “pendor à esquerda”

A forma como, desde o início, os oficiais desenvolveram as suas atividades subversivas foi tão eficaz que não foram apanhados. O Clube Militar Naval funcionou como o espaço perfeito para os oficiais ouvirem e conviverem com personalidades críticas do regime como Bénard da Costa, Urbano Tavares Rodrigues ou Maria Lamas. Para promoverem colóquios sobre a “A Situação da Mulher” ou “Marx e a Crise do Estruturalismo” e incentivarem iniciativas como a ida ao teatro de intervenção ou a uma exposição de pintura de Vieira da Silva na Gulbenkian, originando debates.

“A politização dos oficiais que conviviam no Clube Militar Naval no início dos anos 70 fez-se em diversos níveis”, afirma Luísa Tiago de Oliveira. “Com atuações a nível clandestino, como a projeção de filmes proibidos como o Couraçado Potemkin ou a tradução de textos anticoloniais; a nível semilegal, com Comissões de Curso [de oficiais da Escola Naval] que editavam boletins com reivindicações de tipo sindical; e com atuações legais, como os debates no Clube Militar Naval ou as aulas dadas a marinheiros, onde também se verificava alguma politização de certas matérias ministradas aos alunos”.

Como já indiciava o trabalho de Sánchez Cervelló, o primeiro historiador a tratar da organização clandestina da Marinha, a atividade da Organização foi decisiva para que o papel dos oficiais da Armada tenha sido relevante após o 25 de Abril, como foi para o bom sucesso da operação militar que desencadeou o golpe. “Das participações de alguns oficiais da organização clandestina da Armada em reuniões de conspiradores do Exército, como observadores, saem duas grandes preocupações”, sublinha Luísa Tiago de Oliveira. “A de que o golpe que se estava a preparar fosse bem organizado e não resultasse num pronunciamento derrotado, preocupação que o Golpe das Caldas a 16 de março agravou”, afirma, “e que o movimento militar tivesse um programa político consistente, democrático, contra a guerra colonial e com pendor de esquerda – e a menção explícita a ‘políticas anti-monopolistas ao serviço das classes trabalhadoras’”.

Nos meses iniciais do ano de 1974 os oficiais da Marinha concentraram-se em preparar um Programa para o MFA. Em especial Manuel Martins Guerreiro e Carlos Almada Contreiras reúnem com Melo Antunes e preparam um texto que vai sendo discutido em várias reuniões com outros oficiais; Vítor Alves assume um papel mediador, pois tem a visão estratégica da importância do Programa. Embora aceite por António de Spínola, o Programa tem diferenças importantes face às ideias spinolistas: a defesa de um regime democrático com eleições livres e universais, a defesa da autodeterminação das colónias e uma política económica anti-monopolista.

“Apesar da inesperada resistência do general Spínola ao programa que mais uma vez lhe é apresentado na noite de 25 para 26 de abril, na primeira reunião da Junta de Salvação Nacional no Posto de Comando do MFA na Pontinha, e de algumas mudanças relevantes, no essencial o programa que é lido para as câmaras de televisão na manhã de 26 de abril é o documento preparado por Melo Antunes e pela organização clandestina da Armada”, afirma a autora do livro. “Este pendor de esquerda que os oficiais da Marinha imprimem com Melo Antunes ao Programa do MFA, assim como o fim da PIDE/DGS e a libertação de todos os presos políticos, irá marcar o início do regime democrático”

 

A autora

Luísa Tiago de Oliveira define como objetivo do seu livro “fazer uma história oral do MFA da Marinha”. Para tal recolheu 134 horas de gravações com vários protagonistas vivos, a que se somaram muitas conversas de esclarecimento em vários suportes, para além de pesquisas arquivísticas.