Angola vive, pelo segundo ano consecutivo, uma crise humanitária relevante, que afeta mais de um milhão de pessoas, mas que foi a menos noticiada no mundo, segundo o último relatório da organização não governamental (ONG) humanitária CARE International sobre as crises esquecidas, relativo a 2023.
Há oito anos que esta organização, fundada em 1945, nos Estados Unidos, para responder à devastação e à escassez de bens essenciais provocadas pela Segunda Guerra Mundial na Europa, lista as dez mais relevantes crises humanitárias que ficam na sombra, globalmente, por serem menos noticiadas, o que tem reflexos na captação de apoios.
De acordo com os dados da Organização das Nações Unidas (ONU), 299 milhões de pessoas em todo o mundo necessitarão de ajuda humanitária este ano, mas as agências internacionais estão confrontadas com uma quebra das doações. Segundo o Gabinete das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários, UNOCHA, apenas pouco mais de um terço dos 57 mil milhões de dólares (cerca de 53 mil milhões de euros) necessários para cumprir os planos de ajuda foram financiados no ano passado.
Esta situação levou a UNOCHA a reduzir os objetivos de financiamento para este ano, para 46,4 mil milhões de dólares (cerca de 43,1 mil milhões de euros), e a rever em baixa o número das pessoas ajudadas, para cerca de 180 milhões, o que quer dizer que cerca de 40% das pessoas identificadas ficarão sem resposta.
De todo o dinheiro que será necessário angariar este ano, cerca de 19 mil milhões de dólares (cerca de 17,6 mil milhões de euros), a maior fatia, destinam-se à África subsariana.
“As crises com maior cobertura mediática recebem frequentemente maiores quantias de financiamento e assistência humanitária”, diz ao NOVO Dorothy Sang, responsável pelo departamento de Advocacia e Política da CARE International UK. O contrário também é verdade.
Em Angola, a CARE aponta que cerca de 7,3 milhões de pessoas necessitam de ajuda humanitária e que o país enfrenta a fome e se debate com a ameaça de mais de um milhão de minas terrestres instaladas durante a guerra civil, o que o torna “um dos países mais afetados por minas”, segundo os dados da ONG germânica Demira. No ano passado registava-se a maior seca em 40 anos que atingiu a região sul angolana e para os desalojados, muitos dos quais a fugir da fome. “Angola está entre os quatro países com os maiores aumentos de preços de alimentos como cereais e óleo de cozinha, agravados pela guerra na Ucrânia. Muitas pessoas já não conseguem ter recursos para alimentos básicos”, avisavam os autores do relatório.
“A falta de chuvas no sul e centro do país levou a um declínio significativo na agricultura de produção, que é a principal fonte de alimentos para as famílias rurais. Como resultado da seca prolongada, mais de 2 milhões de crianças necessitam de cuidados de assistência humanitária”, acrescentavam, no último documento.
No entanto, no ano passado, a crise humanitária foi reportada em apenas 1.049 artigos, nos primeiros três trimestres de 2023. Em 2022 tinham sido 1.847 artigos.
Como termo de comparação, a ONG aponta que, em igual período do ano passado, o livro autobiográfico do príncipe britânico Harry, Na Sombra, motivou a publicação de 215.084 artigos na internet, e o novo telemóvel iPhone, da Apple, 273.421, duas centenas de vezes mais. No ano anterior, nos mesmos três trimestres,
a bofetada de Will Smith a Chris Rock, durante a cerimónia de apresentação dos Óscares, gerou 217.529 artigos online, enquanto a compra da rede social Twitter (agora X) por Elon Musk chegou aos 248.132.
Preocupação africana
Para formar o ranking foram analisados mais de 5 milhões de artigos sobre 48 crises humanitárias, com recurso ao serviço de monitorização de media online Meltwater, em alemão, árabe, espanhol, francês e inglês.
“Pelo segundo ano consecutivo, todas as dez crises mais subnoticiadas ocorrem em África”, refere a CARE. A seguir a Angola surge a Zâmbia, onde as cheias e secas severas são um desafio e 1,35 milhões de pessoas passam fome, e sobre isto foram publicados 1.371 artigos online.
Em todas as crises humanitárias enumeradas destacam-se as consequências das alterações climáticas, assim como a fome, que é também um efeito, muitas vezes, da crise climática.
No Burundi salienta-se a preocupação com o número de refugiados de desastres naturais e a fome, com 5,6 milhões de crianças sinalizadas por malnutrição crónica, enquanto no Senegal volta a ser referida a fome, em consequência das alterações no clima e das subidas de preços. No primeiro caso contabilizaram-se 3.939 notícias e, no segundo, 5.469.
O relatório conta que, no caso do Burundi, o país esteve em destaque no verão de 2023, quando dez jovens jogadores da sua seleção de andebol desapareceram de Rijeka, na Croácia, onde disputavam o campeonato do Mundo de sub-19, reaparecendo na Bélgica, onde pediram asilo. Voltou, depois disto, a mergulhar no esquecimento.
“O Burundi tem uma longa história de convulsões políticas e conflitos étnicos. Tem o menor PIB [produto interno bruto] per capita estimado do mundo e está classificado em 187.º lugar entre 191 países no Índice de Desenvolvimento Humano da ONU”, diz a CARE.
Seguem-se a Mauritânia, onde a crise se deve às alterações climáticas e à instabilidade gerada por refugiados de países limítrofes (que foi objeto de 7.764 notícias); a República Centro-Africana, onde a violência e a pobreza estão na base da crise humanitária (8.274 notícias); os Camarões, onde 4,7 milhões de pessoas necessitam de ajuda (10.801); e o Burkina Faso, que viveu um golpe de Estado em 2020 e onde a violência levou ao deslocamento de milhões de habitantes (11.323).
Uganda e Zimbabué completam a lista, com crises humanitárias derivadas das alterações climáticas e da pobreza, no primeiro caso, em que foram identificadas 12.632 notícias, e pela fome e pela doença, no segundo, com 14.440 registos.
“Todos os dez principais países destacados no relatório com crises subnotificadas enfrentam desafios humanitários de longo prazo. Estas crises de evolução lenta atraem, normalmente, menos atenção dos meios de comunicação social do que as emergências de início súbito causadas por conflitos ou fenómenos meteorológicos extremos”, aponta Dorothy Sang.
A guerra provocada pela invasão russa da Ucrânia tem monopolizado a atenção da comunicação social – substituída, depois, por outro conflito em larga escala, no Médio Oriente –, mas também teve um impacto negativo em regiões que estavam já numa situação difícil. “Pessoas de todo o mundo sofreram as consequências do conflito devido à falta de exportações de cereais e ao aumento dos preços globais, mas em nenhum lugar isto é mais evidente do que em África”, considera Sang. “A combinação de aumentos de preços e as consequências cada vez mais óbvias das alterações climáticas é uma combinação perigosa que exacerba crises existentes e cria novas”, acrescenta.
“Num mundo onde os ciclos de notícias estão a tornar-se cada vez mais efémeros, é mais importante do que nunca que nos lembremos coletivamente de que cada crise, esquecida ou não, traz consigo um custo humano”, refere a CARE no relatório de 2023.
Leia o artigo na íntegra na edição do NOVO que está, este sábado, dia 2 de março, nas bancas