Com áreas fundamentais como a saúde, a educação e a justiça paralisadas ou em estado de sítio e a quase certeza de que das legislativas antecipadas que ocorrerão a 10 de março não sairá uma maioria absoluta, torna-se mais premente a necessidade de encontrar caminhos que permitam dar seguimento a reformas urgentes e sucessivamente adiadas. Razão pela qual cada vez mais vozes de diferentes áreas se têm juntado ao coro que pede entendimentos entre os maiores partidos, de forma que se estabeleçam compromissos que permitam avançar sem soluços nem recuos, num tempo de instabilidade governativa.
“Há muitas coisas que estão a falhar”, apesar do maior orçamento de sempre e do maior número de quadros na saúde. “As coisas não funcionam, porque é preciso modernizar, fazer reformas”, defende Miguel Guimarães. Com o SNS a viver anos de caos, o ex-bastonário dos Médicos, que foi figura de proa na apresentação da nova AD (que leva juntos a votos PSD, CDS e PPM) como independente, aponta a necessidade de “um acordo de regime para a saúde”, sobretudo com dois objetivos firmados: “O primeiro é apostar na promoção da saúde, com um instituto público independente (até economicamente) que invista em literacia em saúde e criação de hábitos sociais e alimentares saudáveis – algo que só tem efeitos a médio prazo mas que será determinante para sermos mais saudáveis, termos melhor qualidade de vida sobretudo após os 60 (em que somos dos piores) e até ajudar à sustentabilidade do SNS. O segundo é modernizar o SNS.”
O alerta tem eco noutras áreas de políticas públicas, da justiça à educação. “O que temos hoje é uma inexistência do Ministério da Justiça, naquele que é um pilar essencial da democracia e que tem de ser prioridade. É preciso reformas profundas para avançar com mudanças em questões estruturais e em matérias de alteração cirúrgica de leis, com criação de grupos de trabalho vocacionados e até abrindo o debate regular à sociedade civil”, defende ao NOVO Guilherme Figueiredo. “Mas sem um apoio alargado aos dois maiores partidos não se consegue nada”, diz o antigo bastonário dos Advogados.
Para a educação, depois de uma década de políticas desastrosas – cujos resultados se veem nos protestos dos professores mas também nas classificações de Portugal nas avaliações internacionais -, também se pedem mudanças urgentes. “Os resultados do PISA 2022 são muito preocupantes e alertam-nos para os grandes problemas que existem na Europa e noutras áreas do mundo e, muito em particular, em Portugal”, refere Nuno Crato.
Em declarações ao NOVO, o antigo ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior lembra que “a queda do país nos estudos internacionais começou em 2016 com o PIRLS (literacia em leitura), prosseguiu com o PISA de 2018 (competências em leitura, matemáticas e ciências) e o TIMSS (matemática e ciências) de 2019”. Tudo isto antes da pandemia. “A situação agravou-se com a pandemia, como o PISA 2022 veio a revelar. E agravou-se mais no nosso país do que em países que tiveram fechos de escola semelhantes. Isto deve fazer-nos pensar”, recomenda Nuno Crato, apontando reformas essenciais para retomar o sucesso do ensino.
Com consensos alargados nas políticas para a educação? Sem as haver formais, elas existiram de certo modo nos sucessivos governos, entre 2003 e 2015. Os caminhos, ainda que distintos, assentavam sobre uma base comum: “a importância de melhorar currículos e avaliação.”
Os resultados da interrupção desse modelo, na era de Costa e das portas abertas aos desígnios da extrema-esquerda, estão à vista naqueles estudos internacionais – sem que os socialistas tivessem sequer sido bem-sucedidos na resposta às exigências sindicais.
Ensino fraco e falta de saúde
Se os problemas são chagas em carne viva, que remédios podem ser-lhes aplicados, nessas reformas endossadas por um compromisso que sobreviva a eleições e ideologias partidárias? O professor Nuno Crato traz a resposta na ponta da língua. “As chaves da melhoria de um sistema de ensino são sempre duas: um currículo bem estruturado, ambicioso e claro, por um lado, e por outro uma avaliação sistemática, regular, válida, que nos permita comparar os resultados de ano para ano.” Naturalmente, há mais componentes decisivos, “nomeadamente um corpo docente dedicado, experiente e conhecedor das matérias”, mas, defende ao NOVO o antigo governante, “com um currículo ambicioso e avaliação nacional bem feita, os professores são ajudados no esforço de ensino; enquanto com um currículo vago e sem avaliação externa nacional, são desajudados”.
Também Miguel Guimarães vê como possíveis e vantajosos acordos alargados no espaço político e temporal, que permitam realizar a mudança que se exige na saúde. “Há áreas em que é preciso consensos, nomeadamente dos partidos que têm governado”, diz, exemplificando com a prevenção das doenças para explicar que era útil alargar rastreios em certas áreas de doença (muita dela oncológica) e juntar toda a sociedade civil – com ênfase nas escolas, autarquias, até comunicação – no esforço de promoção efetiva de melhores hábitos. “As reformas fazem-se no longo prazo e são fundamentais para evoluirmos, mas isto não dá votos”, diz, defendendo por isso esse entendimento alargado.
Acima de tudo, o médico lembra que é urgente modernizar um serviço que funciona com as mesmas regras de gestão há mais de 40 anos. “O SNS tem de se adaptar às patologias atuais, às necessidades dos cidadãos, e de ganhar um modelo de funcionamento que faça sentido, aproveitando melhor a colaboração entre público, privado e sector social e colocando o doente no centro, garantindo-lhe verdadeiro acesso à saúde no tempo clinicamente aceitável.” E isso passa ainda por atender as “justas reivindicações” dos profissionais de saúde, que não são apenas os médicos, e em relação aos quais pouco ou nada se fez: “modernizar e adaptar as carreiras e rever a forma de funcionar do serviço de saúde, com base na ciência e na auscultação do sector”, resume, lamentando que as alterações agora em curso, com o CEO do SNS, não tenham sido desenhadas nesses pressupostos.
O mesmo se verifica para um sistema educativo a viver grandes dificuldades, intensificadas e agravadas pela pandemia. “Em primeiro lugar, é preciso saber o estado do ensino – e as más avaliações, sem critérios claros e comparáveis, ou a falta delas, não nos permitem conhecer os problemas. Por isso ficámos como que surpreendidos com o PISA de 2022… até então parecia que tudo corria bem”, diz Nuno Crato. “Segundo, é necessário um plano curricular de recuperação e intervenção com tutorias, em grupos ou individuais, dedicadas à aprendizagem. Tutorias socioemocionais, apenas, não vão ao fundo dos problemas”, vinca ainda o ex-governante, concluindo que “a solução passa sempre pelo currículo e pela avaliação”, mas recuperar da destruição provocada pela pandemia implica “esforços adicionais, sobretudo junto dos alunos que estão com mais dificuldades.”
Justiça falha
Tudo isto leva tempo a atingir resultados e exige, portanto, um compromisso sério e alargado, que não esteja preso a ciclos eleitorais e sujeito a guinadas político-ideológicas. E isso é ainda mais necessário na reforma que há que operar na justiça, vinca, num contexto de quase institucionalização de casos e casinhos, em que se instalou a perceção de que a atuação do Ministério Público é motivada por oportunismo político.
O que é urgente mudar? Quase tudo, das carreiras e organização à modernização do sector, com dotação de inteligência artificial – por exemplo, para procurar leis e jurisprudência – e meios tecnológicos que alarguem a gravação de audiências a vídeo e normalizem o depoimento remoto, até à accountability, preparação prática dos juízes, melhor comunicação, etc.
“É fundamental um novo estatuto dos funcionários judiciais, com menos categorias, mais admissões e um novo modelo de progressões/remunerações”, diz ao NOVO, defendendo que essa reforma devia alargar-se aos guardas prisionais e que é urgente “devolver as polícias de investigação à sua vocação, libertando-as do trabalho administrativo a que estão amarradas”. O preço da justiça é outro tema realçado pelo advogado, que diz que as atuais custas impedem muitos portugueses de lhe aceder. “Num caso laboral já não há isenção e numa disputa de família não se paga a taxa inicial mas paga-se tudo no fim… e os apoios judiciários são só para os miseráveis”, vinca, considerando “incompreensível” que seja a regra do valor da ação a ditar os termos dos recursos. Também a jurisdição autónoma administrativa e fiscal merecia ponderação. “Já não há questões de mero contencioso administrativo, mas o sistema mantém-se – um ato médico ilícito tem regras e sede de resolução diferente se tiver sido cometido no privado (tribunal judicial) ou num hospital público (administrativo), e às vezes até se delibera em sentido oposto”, exemplifica.
Para Guilherme Figueiredo, era ainda essencial rever o papel do Constitucional e decidir se deve continuar limitado à mera análise da norma ou ter competências alargadas ao que fere direitos fundamentais. “É uma questão que tem motivado discussão, mas faria sentido um Recurso de Amparo, como o alemão, que permitisse aos cidadãos reagir contra atos e decisões que estão em desconformidade com a salvaguarda dos direitos fundamentais. Há constitucionalistas, como Jorge Miranda, que defendem essa capacidade de resposta a um défice de proteção.” O enriquecimento ilícito é outro tema que devia voltar a ser debatido (“sem inversão do ónus de prova”), bem como uma “delação premiada não contratualizada”.
Um manifesto pela criação de riqueza
Porque o país não pode “ter mais duas décadas perdidas”, a Associação Business Roundtable Portugal lançou nesta semana o manifesto Por um Portugal mais justo, mais próspero e mais sustentável, para lançar já o debate do que é preciso mudar nas políticas públicas de forma a atrair investimento e criar riqueza.
“Desafiamos políticos, decisores, media e todos os portugueses a termos mais ambição, mais exigência e sentido de urgência para a transformação de Portugal”, explicou Pedro Ginjeira Nascimento.
Em foco estão temas como a burocracia e a lentidão da justiça, impostos penalizadores do trabalho e da criação de riqueza e atrasos na chegada dos fundos, que a ABRP considera urgente mudar para o país crescer os 3,8% de que precisa para apanhar o comboio europeu e dar saúde à economia nacional.
Artigo publicado na edição do NOVO de sábado, dia 13 de janeiro