O ministro com sentido de missão que há quem aponte à liderança do PS

Foi jornalista, três vezes autarca em Baião, deputado, secretário de Estado das Comunidades e adjunto do seu partido. Em cada viagem, como no MAI, foi construindo obra e deixando respeito. E não tem dúvidas: “Sem forças de segurança, não há liberdade”.

Anda a pleno vapor com os afazeres da Jornada Mundial da Juventude, que se somam à muito preenchida agenda de quem tem a cargo as forças de segurança do país, mas consegue mostrar toda a disponibilidade do mundo quando se senta à mesa d’ O Madeirense comigo. Pelo caminho, já cumprimentou o sempre atencioso anfitrião Manuel Fernandes e dirigiu um sorriso meio envergonhado à sala que lhe notou a presença. José Luís Carneiro já foi professor e autarca, chegou a secretário-geral adjunto do PS e a governante, primeiro como secretário de Estado das Comunidades e agora como ministro da Administração Interna. Mas não perde a humildade. Nem a certeza de que exercer um cargo público tem muito mais de entrega, de “sentido de missão”, do que de poder.

Se é preciso legendar o homem que conseguiu, em menos de dois anos de mandato, pacificar as polícias, encontrar solução para o SIRESP e resolver o imbróglio que herdou num Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) com sentença de morte por executar, José Luís Carneiro é sobretudo consensual. É uma pessoa que valoriza mais o ouvir do que o falar, que procura pôr-se nos sapatos alheios e se empenha profundamente em coordenar vontades para chegar a consensos. E é merecidamente respeitado por isso – pelo respeito a que se dá e com que trata aqueles com quem se relaciona, independentemente de estar ou não numa posição de poder.

Nascido em Baião há quase 52 anos, José Luís Carneiro é hoje apontado por um crescente número de pessoas, socialistas incluídos, como um sucessor de eleição para António Costa – aquele que poderia recentrar e descrispar as alas do PS, polarizadas desde que Pedro Nuno Santos começou a fazer sombra ao secretário-geral com a gestão da geringonça que em 2015 lhe segurou a cadeira de primeiro-ministro. Mas essa possibilidade de ascender à liderança do partido em que se filiou quase ao virar do século (1998) não o condiciona. Admite sentir-se honrado por lhe reconhecerem essa capacidade, mas diz que há muitas formas de servir – que é como entende o exercício de um cargo público. “Há muito que aprendi que os valores e os princípios do socialismo democrático, do humanismo, se podem afirmar e defender na vida concreta das pessoas, independentemente da função que, momentaneamente, desempenhamos. Neste momento, faço-o servindo com sentido de missão e do interesse público no MAI.”

Discreto, tranquilo e de sorriso pronto, apesar de já ter umas horas de trabalho – costuma começar às 6.00 da manhã e vai até às 23.00 – e um Conselho de Ministros na agenda dessa manhã, escolhe, como eu, os filetes de peixe espada com banana frita, molho de maracujá, batata e legumes cozidos e nem vê as entradinhas, entusiasmado que está a viajar entre as recordações de outros tempos e os preparativos da Jornada que está prestes a começar. “Está tudo pronto. Vou agora dar uma volta mais discreta, para perceber como está o espírito, falar com as pessoas, ver as condições de alojamento preparadas para receber os 2800 polícias que vão reforçar Lisboa na próxima semana”, conta. É um homem sereno com a tarefa que tem por diante. Tanto quanto com as que cumpriu noutros momentos da vida, como quando foi jornalista n’O Independente ou autarca em Baião, ou até quando por duas vezes prescindiu do sonho da cooperação em Moçambique, em troca de missões nacionais.

Filho e neto de pequenos proprietários rurais, diz que cresceu “com muito afeto e muita felicidade, foi uma infância muito livre”, vinca, viajando pela escola na freguesia de Campelo, cuja professora Anunciação Batista ainda recorda.

Vai sempre nomeando as pessoas que lhe marcaram a vida, reconhecendo-lhes o papel e a importância, partilhando créditos pelas conquistas: os amigos Francisco Assis e Luís Patrão, Eduardo Cabrita e Ana Paula Vitorino, Maria de Lurdes Rodrigues, o muito admirado António Guterres. Prossegue o relato na vizinha Chavães, onde fez o quinto e sexto anos, até vir inaugurar a nova escola de Baião (que mais tarde rejuvenesceu e fez agrupamento, enquanto autarca). Daí seguiu para Marco de Canaveses, para o secundário: “Às 7.00 já estávamos no autocarro, fazíamos transbordo em Cinfães e chegávamos à escola às 8.30; só voltávamos a casa pela hora de jantar e na altura de estudar para os exames (ao som do Oceano Pacífico), dormíamos muito pouco”, recorda.

É por isso que uma das conquistas que mais preza nos seus mandatos de presidente da câmara de Baião (venceu três eleições, em 2005 com 50,88% dos votos; em 2009 com 66,84% e em 2013 com 71,41% e não esconde o orgulho desses “expressivos resultados”) é a reforma que trouxe ao sistema educativo, que permitiu instalar o elevador social na região. “Eu tenho 52 anos e da minha turma só três pessoas seguiram para a faculdade”, vinca. “Isto demonstra o atraso social, as assimetrias e a desigualdade que existia há não muito tempo. E a cultura daquelas famílias, que valorizavam mais o trabalho jovem do que a prossecução de estudos – perderam-se miúdos inteligentíssimos.”

“Perder, nem a feijões!”
Quanto a José Luís, quando jovem e contra vontade dos pais, que previram as lesões que viria a ter, passava horas a jogar futebol – “era médio, sou muito de trabalho em equipa, e gosto de me sentir útil entre os outros”. Mas também praticava atletismo – o que o ajudou a conhecer os seus limites e a aprender a superá-los –, jogava e ganhou torneios de bilhar e ainda hoje ganha ao filho em pingue-pongue. “Sou muito competitivo… Perder, nem a feijões”, ri-se, antes de acrescentar à lista de atividades que o fazem interpretar-se como “uma criança muito ativa” a veia musical “de família” que o levou aprender a tocar acordeão (aos 11 anos), órgão, piano. Também recorda com carinho os tempos dos grupos de jovens católicos, de que fez parte desde os 14 anos e liderou a partir dos 16 (“foi onde aprendi o enraizamento social”) e as experiências autárquicas que o conduziram a atividades diversas, da vigilância ambiental ao centro de saúde. Ali se juntava idealismo e autoconhecimento com uma simbólica mas muito valorizada remuneração. “Nas festividades já puxávamos da nossa autonomia”, ri-se.

Foi numa dessas ocasiões que conheceu e se apaixonou por Goreti com quem está a um ano de cumprir as Bodas de Prata e tem dois filhos, Francisco, de 17 anos, e Carolina, 15. “Estava a planear o casamento e a fazer a tese de Mestrado ao mesmo tempo… ainda deu umas discussões”, ri-se. Fala ainda de outra paixão desses tempos de juventude, a BD que devorava, de Zé Carioca a Astérix, mas que também desenhava e com a qual a professora Elisa ainda lhe acenava em jeito de ameaça e brincadeira, quando o encontrava, já deputado. Foi uma dessas histórias desenhadas, O Herói de Molokai, que lhe deu a vontade de ir dar esperança a quem já a perdera, como missionário em África. “Mas a vida dá muitas voltas e acabou por não acontecer.”

Missão de esperança
A vida de missionário, talvez não, mas a missão, cumpriu-a. Por exemplo enquanto assumiu a pasta das Comunidades Portuguesas, esforçando-se sempre por levar um olhar atento a quem mais precisava. Passou “momentos muito duros” nos atentados – recorda ainda como acompanhou um português que perdeu a mãe e a filha numa explosão nas Ramblas –, ao sentir o desespero e abandono das comunidades vitimadas pelo Idaí, em Moçambique, ao confrontar-se com o agradecimento de uma mãe que trazia o filho ao colo e se destacava entre as demais vítimas do furacão Irma, nas Caraíbas. Mas nem hesita em apontar o momento mais impactante que viveu nesses tempos: “Vivi coisas que nunca esquecerei, mas hei de trazer sempre comigo o olhar petrificado e sem esperança de dois jovens que visitei na cadeia, na Venezuela, e que conseguimos libertar.” Fala sempre no plural, partilhando as vitórias com os demais. Gosta de se ver assim, como parte de muitos todos e com uma multiplicidade de papéis que não o prende a uma simplista identificação de “governante” – que foi em diversas vertentes, aprendendo e encarnando cada missão com tanto respeito quanto desempenha hoje funções no MAI,

De todas as atividades, José Luís Carneiro retirou ensinamentos para a vida, foi recolhendo visões – local, regional, nacional, europeia, mundial – que foi somando a que aprendeu na academia, que cumpriu até ao último grau, com licenciatura em Relações Internacionais cumprida na Lusíada do Porto, Mestrado em Estudos Africanos no ISCSP – o que alimentou “o sonho” não cumprido de se juntar à Cooperação para o Desenvolvimento, seduzido pelo embaixador Fernando Reino a preparar com ele os cursos de carreira – e o Doutoramento, que a atividade governamental obrigou a suspender e depois retomou do início, repetindo até as cadeiras já feitas. Na universidade foi aluno e professor, nos jornais estreou-se num local, com um artigo sobre alterações climáticas (ainda nos anos 80), escreveu sobre temas africanos nos sensíveis tempos das guerras civis e quando já não podia fazê-lo passou à opinião.

Da experiência autárquica enumera os melhores tempos, porque vê ainda o resultado do seu trabalho. E o pior momento da sua vida. “Foi a 1 de setembro de 2009, quando uma carrinha de idosos atravessou uma passagem de nível sem guarda e sete pessoas morreram, incluindo um grande amigo. Esse dia ficou-me marcado na alma.” Sabe que fez o possível por evitá-lo – foi ele o responsável por pôr fim a 13 pontos críticos na região, uma iniciativa que arrancara dois anos antes e que depois foi transposta a nível nacional; mas não ultrapassa que não tenha podido evitar a tragédia. “Mal está o presidente de câmara que não viva com intensidade tudo o que se passa no território”, diz.

Agora, garante que se saísse do MAI o faria com noção de dever cumprido, ainda que veja ainda muito trabalho a fazer. Conseguiu resolver as quatro prioridades que traçou à chegada: o concurso internacional do SIRESP, “que estava a ser torpedeado”; a pacificação das polícias; a criação de condições para “um ano que se previa dificílimo” de fogos; e o SEF. “No dia em que tomei posse, demitiu-se o diretor e seis dias depois já eu estava a reunir com os funcionários; acho que consegui garantir uma transição serena, segura e justa, promovendo os direitos dos trabalhadores e a confiança dos atores e da sociedade neles, e pôr as diferentes forças de segurança a cooperar em paz.”

Não é de falsas modéstias, mas também não é vaidade o que o leva a considerar que cumpriu a missão. É a capacidade de escutar as necessidades daqueles com quem se cruza e de tentar dar-lhes a melhor resposta possível. Está por isso atento às próximas batalhas: melhorias salariais e condições e equipamentos sociais de qualidade para polícias e suas famílias. É a preocupação transversal assumida com os que o rodeiam. E um enorme respeito por aqueles que tutela: “Sem forças de segurança, não há liberdade”, resume, antes de brindarmos com bolo de mel e vinho Madeira, o mesmo que selou a independência dos Estados Unidos, recorda, orgulhoso do papel do seu país pelo mundo. “As funções nas Comunidades permitiram-me ter uma noção muito clara do valor estratégico dos portugueses no mundo.”

Artigo originalmente publicado na edição do NOVO de 29 de julho