Ensaio. Novas censuras: tudo é tabu
Hoje, em grande parte do mundo ocidental, há menos liberdade e menos democracia do que existia nas décadas de 1970 a 90. Vivemos cercados de novos tabus e proibições de todo o género em nome de dogmas identitários.
Em 1970, o filósofo e politólogo francês Jean-François Revel observou: “A grande batalha do final do século XX, aquela da qual depende o resultado de todas as outras, é a batalha contra a censura.” Num livro provocatório e muito popular à época, intitulado “Nem Marx Nem Jesus”.
Palavras premonitórias, que podem aplicar-se ao século em que vivemos.
Hoje, em grande parte do mundo ocidental, há menos liberdade e menos democracia do que existia nas décadas de 1970 a 90. Vivemos cercados de novos tabus e proibições de todo o género em nome de dogmas identitários. Como o recente caso da interdição total de caricaturas no The New York Times – que costumava ser um dos faróis mundiais da liberdade de imprensa – bem demonstra.
A todo o momento temos gente a policiar os nossos gestos, os nossos olhares, as nossas palavras, as nossas expressões de escárnio ou enfado, os nossos hábitos alimentares.
Os diáconos da correcção política vigiam comportamentos, incentivados pelo chamado jornalismo de cidadania em curso nas redes sociais, que tem conduzido à supressão das liberdades – desde logo, a liberdade de lermos os livros que quisermos e de vermos os filmes que nos apetecer.
Cada corrente de “indignação”, muitas vezes sem sustentação em factos, traz implícita a palavra proibição, invertendo, meio século depois, o lema do Maio de 68: “É proibido proibir.”
Veio para ficar a moda de derrubar estátuas e mudar os nomes a ruas, praças e estabelecimentos universitários. Sempre em nome de uma leitura contemporânea e unidimensional de acontecimentos pertencentes a um passado já secular. Dando honras de panteão ao anacronismo e ao revisionismo histórico. Fomentando a ignorância.
Devemos falar como eles falam, comer o que eles comem, desfraldar as mesmas bandeiras, idolatrar os mesmos ídolos. Só assim receberemos atestados de idoneidade que nos salvaguardem do banimento cívico. Tudo quanto não cabe nos novos cânones é riscado do mapa. Como se nunca tivesse existido.
Censura de livros
Escolas do estado da Virgínia, nos EUA, baniram dos programas escolares o célebre romance “Mataram a Cotovia” (“To Kill a Mockingbird”, no original), de Harper Lee, galardoado em 1961 com o Prémio Pulitzer e considerado uma obra-prima da literatura anti-racista. Na origem da decisão esteve a denúncia de uma encarregada de educação, ofendida com a utilização do termo “preto” (nigger) e de expressões coloquiais conotadas com a segregação racial em diversos trechos desta obra.
Em 2011, também nos EUA, surgiu uma nova edição do clássico “As Aventuras de Huckleberry Finn”, de Mark Twain, onde o substantivo “preto”, ali utilizado 219 vezes, é substituído por “escravo”. Como se fossem sinónimos. Justificação, segundo o académico Alan Gribben, mentor da ideia: tornar o romance “mais adequado às salas de aula” e poder assim “exprimir melhor as ideias de Twain no século XXI”, omitindo-se que o escritor viveu entre 1835 e 1910 e que aquele livro data de 1884, reflectindo a realidade da sua época. Já houve bibliotecas norte-americanas a banir outro clássico de Twain, “Tom Sawyer” (1876), por conter “calão racista”.
Censura de histórias infantis
Várias escolas públicas de Barcelona anunciaram em 2019 que iriam excluir das suas bibliotecas livros com alegado “conteúdo sexista”, incluindo clássicas histórias para crianças como “O Capuchinho Vermelho”, “A Gata Borralheira” ou “Branca de Neve e os Sete Anões”. Os responsáveis por estes estabelecimentos escolares consideram “tóxicos” estes contos infantis que se têm perpetuado de geração em geração. Cerca de 200 livros acabaram por ser retirados.
A banda desenhada “Tintim no Congo”, surgida em 1931, não teve melhor sorte. Em 2007, a Comissão Britânica para a Igualdade das Raças exigiu a retirada de circulação deste álbum de Hergé por “conter desígnios racistas”. O grupo editorial Little Brown anunciou que não voltaria a editá-lo e a Biblioteca Municipal de Brooklyn (EUA) removeu-o das estantes devido às reclamações de vários cidadãos nova-iorquinos.
Já este mês, duas feministas radicais norte-americanas tornaram-se notícia ao contestarem o beijo do Príncipe à Branca de Neve, no final do filme homónimo produzido em 1937 por Walt Disney, alegando que o beijo “não foi consentido”, pois Branca de Neve estava adormecida naquele momento. As activistas exigem que qualquer alusão a esta cena seja proibida nos parques tematicos da Disney nos EUA.
Censura de palavras
J. K. Rowling, criadora da saga Harry Potter, começou a ser duramente criticada nas redes sociais por ter contestado a supressão de palavras como “homem” e “mulher” na designação dos géneros, num momento em que transexualidade é o vocábulo da moda. Tudo começou quando a escritora britânica se insurgiu, em 2020, contra um artigo surgido na plataforma Devex intitulado “Criar um mundo mais justo, pós-covid-19, para pessoas que menstruam”. A romancista reagiu com ironia no Twitter: “Tenho a certeza de que costumava haver uma palavra para essas pessoas. Ajudem-me.” E demarcou-se da actual tendência de diluir o sexo em género: “Se o sexo não é real, a realidade vivida pelas mulheres de todo o mundo é apagada.” Mas não vivemos tempos propícios a ironias nem a transgressões: Rowling acabou fulminada por centenas de vozes críticas que a acusaram de ser “transfóbica”. E vive desde então com esse rótulo.
Metade das universidades norte-americanas têm “códigos de expressão” muito restritivos, impondo a proibição total de centenas de palavras. Moda que chegou a Portugal: a mera hipótese de ser inaugurado um Museu das Descobertas gerou, em 2018, reacções indignadas de parte da comunidade académica.
“Para os não europeus, a ideia de que foram ‘descobertos’ é problemática”, escreveram mais de cem historiadores e cientistas sociais em carta aberta ao presidente da Câmara de Lisboa, Fernando Medina.
Censura de quadros
John William Waterhouse (1849-1917), pintor da Inglaterra vitoriana, nunca terá imaginado que um óleo da sua autoria, pintado em 1896, viria a causar celeuma 122 anos depois. “Hilas e as Ninfas” conheceu em 2018 súbita celebridade graças ao ímpeto censório de Clare Canneway, conservadora da Galeria de Arte de Manchester – museu público instalado numa cidade de sólidas tradições liberais. Foi ordenada a remoção do quadro, que mostra sete jovens com seios nus. Motivo: promoveria a “coisificação do corpo da mulher”.
Não foi caso único. Em 2019, um quadro intitulado “A Venda Avícola”, de pintor anónimo da escola flamenga do século XVII, foi retirado de uma cantina da Universidade de Cambridge. Grupos de vegetarianos britânicos diziam que a tela “feria as sensibilidades” de muitos estudantes que a frequentavam. Acabou por ser removida.
Censura de estátuas
Têm sido derrubadas várias – de generais confederados dos EUA ao descobridor da América, Cristóvão Colombo. Não apenas em território norte-americano: também em Barcelona, cidade dominada pelo monumento que celebra o navegador genovês, surgem movimentos que apelam à sua remoção, entre acusações de “genocídio” a Colombo. Em 2020, a estátua de Winston Churchill em Londres foi vandalizada, forçando a câmara da capital britânica a ocultá-la dos olhares públicos, tapando-a para impedir novos protestos.
Também uma estátua de Voltaire em Paris foi atacada, alegando-se que o filósofo iluminista do século XVIII esteve associado à Companhia das Índias francesa, que promovia tráfico de escravos. E desde 2016 proliferam movimentos em África e na América do Norte apelando ao derrube de estátuas de Gandhi, símbolo máximo do pacifismo à escala mundial, por ter “contemporizado com o colonialismo”.
Algo semelhante aconteceu com a estátua do Padre António Vieira, em Lisboa, vandalizada em 2020 sob idêntico pretexto.
Censura de imagens
Fotografias de um simples e suculento cozido galego – muito semelhante ao português, mas com grão – foram banidas em 2019 do Instagram, por decisão de um anónimo comité censório dessa rede social. Alegação: aquelas imagens de enchidos mesclados com vegetais “infringem as normas comunitárias”, pois contêm suposta “violência gráfica e linguagem [visual] que estimulam o assédio ou nudez e a actividade sexual”.
Um galego de Vigo, que publicou estas imagens em homenagem ao “primeiro cozido da temporada” em casa da mãe, alegou ter-se limitado a fotografar os alimentos tal como estavam na travessa. Em vão: a “violência gráfica” do chouriço e do repolho escandalizava alguns devotos das religiões vegetariana e vegana.
Também aqui há patrulhas atentas: quando se confunde apetite com perversão, acaba-se a ver pecado numa vulgar travessa com comida.
Censura de comida
Em 2019, a reitoria da Universidade de Coimbra anunciou a intenção de eliminar o consumo de carne de vaca nas 14 cantinas a seu cargo, para se tornar a “primeira universidade portuguesa neutra em carbono”. O reitor, Amílcar Falcão, justificou assim tal decisão: “Vivemos um tempo de emergência climática e temos de colocar travão nesta catástrofe ambiental anunciada.” Merecendo o aplauso imediato do ministro do Ambiente, Matos Fernandes: “Parece-me relevante que uma universidade tudo faça com o objectivo de ser neutra em carbono em 2030.”
Palavras com requintes de terror milenarista, dignas de qualquer televangelista anunciando pragas bíblicas contra quem ceda à tentação da carne. Velhos tabus alimentares de inspiração religiosa – como acontece com hindus, proibidos de comer vaca, ou com muçulmanos e judeus ortodoxos, impedidos de tocar em carne de porco – instalam-se nas nossas sociedades laicas. À semelhança dos puritanos antibebida que há cem anos impuseram a Lei Seca nos Estados Unidos. A diferença é pouca. Ou nenhuma.
Censura na publicidade
O presidente da Câmara Municipal de Londres, Sadiq Khan, decretou em 2016 a proibição total na rede de transportes públicos da cidade de qualquer anúncio destinado a “promover expectativas irrealistas em relação ao corpo” – traduzindo, mulheres bonitas em biquíni ou fato de banho.
Idêntico argumento já havia sido utilizado pelos responsáveis do metro londrino para banir nas plataformas das estações todos os cartazes com nu feminino de Lucas Cranach, o Velho (1472-1553), anunciando uma exposição na Royal Academy dedicada ao pintor renascentista alemão.
Censura no futebol
Bernardo Silva e Benjamin Mendy são grandes jogadores. Actuam num dos principais clubes europeus de futebol, o Manchester City. Antes haviam sido colegas de equipa no Mónaco. Além de colegas, são grandes amigos. Jovens e bem-humorados, costumavam trocar graçolas nas redes sociais. Mas Bernardo (branco) lembrou-se em 2019 de associar o colega francês (negro) à Conguitos, marca de chocolates. Mendy respondeu-lhe com bonequinhos a substituir palavras: três a sorrir, outro a bater palmas.
Logo o internacional português começou a ser alvo de duríssimas críticas nos comentários digitais pelo suposto carácter racista do que havia publicado. Uma organização denominada Kick It Out exigiu aos órgãos federativos ingleses a adopção imediata de medidas punitivas contra o “comportamento ofensivo” de Bernardo Silva.
E assim foi: mesmo tendo apagado a mensagem, o português foi sancionado com 58 mil euros de multa e um jogo de suspensão. A brincadeira ficou-lhe cara. E confirmou como são cada vez mais drásticos os limites à liberdade de expressão.
Censura no Facebook
Almas muito sensíveis nas redes sociais – com destaque para o Facebook – passam o tempo a policiar conteúdos, reclamando sempre novas interdições. Os exemplos são incontáveis. Ficam dois, qualquer deles emblemático.
Em 2018, o icónico quadro “A Liberdade Guiando o Povo”, de Eugène Delacroix (1798-1863), foi banido da galáxia de Mark Zuckerberg porque a figura central exibe um seio nu – símbolo da República Francesa. O “culpado” foi Jocelyn Fiorina, director da peça teatral “Coups de Feu”, que usou aquela imagem para promover online um espectáculo que iria estrear-se em Paris.
Quinze minutos depois do lançamento do anúncio, a administração da rede social bloqueou a divulgação alegando que a reprodução de nus está ali proibida. Já tinha sucedido o mesmo à “Vénus de Willendorf”, estatueta de calcário com 11 centímetros de altura e 25 mil anos de idade.
A culpa, dizem, é do algoritmo. O censor anónimo do nosso tempo. Sem nome nem rosto. Sintoma do admirável mundo novo em que vivemos.
Artigo integralmente publicado na edição de 21 de Maio de 2021.