Talvez por haver mais indecisos, o número de eleitores em mobilidade nas legislativas deste ano (208 mil) seja menor do que em 2022 (315 mil). Esta diferença de mais de 100 mil eleitores não inclui, contudo, o Presidente da República, que decidiu este domingo “votar antecipadamente por se sentir esclarecido relativamente às propostas dos candidatos e por considerar que é um estímulo contra a abstenção”.

Concedo que a possibilidade de votar em duas datas alternativas facilita a organização da vida pessoal para o cumprimento de um direito e dever cívicos, mas a conveniência não deve ser critério para um ato que deve convocar todos, ao mesmo tempo, com o mesmo conhecimento, esclarecimento e informação e com o mesmo contexto.

Os eventuais ganhos em participação perdem-se com a desigualdade em todos os fatores anteriormente mencionados. O Presidente (assim como os outros 208 mil eleitores) pode estar esclarecido quanto às propostas dos candidatos, mas a eleição não sufraga apenas propostas, ela deve ser o culminar de uma campanha eleitoral, que ainda decorre.

E que ainda tem mais cinco dias úteis pela frente e – goste-se ou não – um dia de reflexão. Porque as campanhas e as eleições são também um “ritual de renovação nacional”, que unem eleitores e eleitos, nos quais os primeiros avaliam propostas, mas também pessoas e equipas – o que dizem e não dizem, como dizem, o que mostram e não mostram, a forma como o fazem – julgam a prestação do Governo e dos protagonistas precedentes e, finalmente, dão o seu consentimento a serem governados.

As campanhas não são apenas as propostas, são também o escrutínio que é feito dessas propostas, é a comunicação política das candidaturas, mas também a feita pelo ecossistema mediático, no qual comentadores, analistas e jornalistas desempenham um papel relevante.

Reduzir o voto às propostas, por mais militante que se seja, e convicto que se esteja, a uma semana de um ato eleitoral, é desconsiderar e tornar irrelevante o papel da campanha e comunicação políticas, e do contexto específico que é criado (e que tem tradução nas leis eleitorais e regulamentação conexa) para uma dada eleição.

Quantos jogos de futebol não terminam com reviravoltas no período de compensação? É no apito final que o jogo se decide. Não se ganham jogos por mais tempo de posse de bola ou por mais remates à baliza. Da mesma forma que as sondagens não ganham eleições. São os votos.

Pode o Presidente da República, assim como 208 mil eleitores que este domingo foram às urnas, que representam cerca de 5% dos votantes, garantir que absolutamente nada no decurso da próxima semana os faria mudar o sentido de voto? Na nossa memória coletiva está o episódio da Marinha Grande. Nessas eleições, em 1986, Mário Soares arrancou com 8% nas sondagens. Quão diferente poderia ter sido o desfecho dessa eleição se esse acontecimento tivesse tido lugar na última semana da campanha e uma parte significativa do eleitorado tivesse já votado antecipadamente…

O processo de participação, através do voto, na vida democrática – uma decisão que é coletiva e que deve ser tomada em simultâneo – não deveria admitir senão verdadeiras e inadiáveis exceções na sua antecipação.

Caso contrário, o que estamos a admitir é que a campanha, a comunicação e mobilização eleitorais, e a sua cobertura mediática, todos os gastos e investimentos que ainda vão ser feitos – e tudo o que de imponderável que possa acontecer no prazo de uma semana – para nada contam. Quem já votou este domingo já se desligou desta campanha e desta eleição. Já não pode mudar a sua escolha.

Sim, a abstenção deve preocupar-nos, como sociedade, quando resulta de um desligamento entre eleitores e eleitos. Mas mais importante do que tentar contrariar a abstenção com a possibilidade de votar antecipadamente deve ser a promoção da participação no momento específico para o efeito, e em democracia essa participação deve ser igual para todos, nas exatas e mesmas circunstâncias, incluindo as dadas àqueles que votam em mobilidade que podem escolher o local de voto da sua conveniência. Facilitar a participação é uma questão de vontade, não de custos (que não acrescem) ou de tecnologia (que existe). Generalizar a possibilidade de votar uma semana antes das eleições, enquanto a campanha dura, não é um favor à democracia nem um garante de menor abstenção. É mesmo, aliás, um desvio àquilo que deveria ser uma decisão tomada por todos no mesmo momento.

A generalização do voto antecipado – e quantos mais votantes inscritos pior – é um desvirtuamento da própria ideia de eleição democrática. Que todos votem como quiserem. Mas ao mesmo tempo.