Vela: Quatro portugueses vão à conquista do Mundo

Um projecto levado a cabo antes da pandemia culminou no campeonato mundial da classe SB20. O propósito foi pensado por Henrique e Bernardo. Luís e Rafael foram escolhidos pelo CV e não só.

O encontro estava marcado para o final da tarde de sexta-feira, 27 de Agosto, nas instalações do Clube Naval de Cascais (CNC), localizado na marina daquela vila costeira, parte integrante da denominada “Riviera portuguesa”.

No mesmo local, em doca seca, coabitavam velas enroladas, espalhadas um pouco por todo o lado, mas não de forma anárquica, barcos empilhados em atrelados, contentores com material à vista, um deles em destaque por ter direito a fotografia da tripulação (Mirpuri Foundation Racing Team – Racing for the Planet).

A azáfama era grande, entre velejadores de ambos os sexos, de todas as idades e nacionalidades, olímpicos, profissionais e outros em puro lazer competitivo. Homens e mulheres da vela desdobravam-se entre a correria da saída das embarcações e o ameno e são convívio debaixo de uma tenda transparente montada aos pés do race office, escritório localizado no 1.º andar das instalações do CNC e onde se regulamenta e fiscaliza o funcionamento das regatas já realizadas ou a decorrer.

O vento soprava fraco, para inquietação da organização. Os mesmos responsáveis suspiravam de alívio, ao mesmo tempo, pela esperada chegada de ventos do quadrante oeste entre 8 e 10 nós de intensidade. A música unia a Babel náutica saída da água.

Quatro jovens velejadores no meio de atletas olímpicos

Duas competições confluíam no mesmo espaço, dia e campo de regatas: o Cascais Vela 2021, destinado à vela ligeira e vela de cruzeiro, que terminou no passado dia 29 e cujo vencedor foi o VO65 Racing for the Planet (Frederico Melo, Bernardo Freitas, Mariana Lobato e António Fontes), no exacto dia de arranque do Cascais SB20 World Championship 2021, mundial destinado aos SB20, classe não olímpica, competição que termina hoje, dia 3.

Na tarde da última sexta-feira, os primeiros, classes ORC e NHC, disputavam o primeiro dia do Troféu Quebramar, enquanto para os segundos, os SB20, a prova – Desafio Mitsubishi – em véspera de fim-de-semana serviu de teste para o Campeonato do Mundo que decorreria dois dias depois.

Bernardo Pêgo, Henrique Brites, Luís Pinheiro e Rafael Rodrigues, quatro jovens velejadores da Youth Team Portugal SB20, pertença deste último evento, foram a razão da presença do NOVO em Cascais.

Apesar de a vela nos levar até aos próprios, a partilha de palavras e estados de alma não se cingiu a uma conversa sobre vela, competição e preparação para um projecto que levou dois anos até culminar no Mundial SB20, como veremos ao longo destas páginas.

Falou-se de vacinação para fazer face à pandemia, educação, escolhas de vida, timings de acontecimentos, de estar na hora certa no local certo para se ser escolhido por uma tripulação estrangeira para competir. Esta esperança é comungada e a espera é aceite por todos, apesar de, em uníssono, não pensarem na exclusividade da profissionalização. Escolheram outras opções de vida.

A tripulação preparava-se para, finalmente, competir entre 66 embarcações, 36 das quais portuguesas. A prova reuniu cinco atletas que estiveram nos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020, nas classes 49er, 470 e Laser Radial: Jorge Lima e José Costa (Sargo), velejadores galardoados com um diploma olímpico (7.º lugar), os irmãos Pedro Costa (Quebramar) e Diogo Costa (SportsWorld Boat) e Carolina João, aos comandos do Ladies First – Naturea Sailing Team, equipa 100% feminina (também elas alvo de reportagem do NOVO na edição do passado dia 6 de Agosto).

Os campeões olímpicos Nuno Barreto (medalha de bronze nos Jogos de Atlanta em 1996), Luke Patience (prata em Londres em 2012) e Toniu Toniste (prata nos Jogos Olímpicos de Barcelona em 1992, e bronze em Seul em 1988), para além dos russos Timur Sabirzianov (Vis Sailing Team) e Vasily Gregoriev (vencedor das Cascais SB20 Winter Series em 2019), duas referências mundiais dos SB20, eram outros dos nomes sonantes inscritos na competição organizada pelo Clube Naval de Cascais.

A vacinação a bordo entre jovens dos 19 aos 23

A informação foi prestada por Sebastião Osório de Castro, sports manager do CN Cascais. Foi o nosso primeiro interlocutor. À hora combinada, 18h30, sentámo-nos ao lado do cicerone dos eventos náuticos que partem e chegam à baía.

Chamada para o telemóvel de Bernardo Pêgo. Não atende. Segue-se segunda tentativa (desligado), seguida de uma mensagem. “Estou no race office”, escrevemos. Sebastião, entre o liga e desliga, informa que estão ainda na água, a competir no Cascais Vela.

Esperámos. No espaço dedicado à organização das regatas, um objecto prende a atenção. Uma balança. Daquelas que vemos aquando, por exemplo, dos preparativos para os combates de boxe.

Quarenta e cinco minutos depois escutámos o som de alguém a dar um salto para o degrau que ditará os quilos e gramas que transporta no corpo. Nos instantes imediatos, ouvimos: “Está ali sentado.”

Henrique Brites, campeão nacional de SB20 em 2020, apresenta-se. Pede desculpa pelo atraso e informa que os restantes três velejadores que compõem a tripulação estão a terminar “umas lavagens” e, num curto espaço de tempo, se juntarão à conversa combinada.

Tal foi prometido, assim foi cumprido. A biblioteca do CN Cascais deu palco à equipa composta por Bernardo Pêgo, Henrique Brites, Luís Pinheiro e Rafael Rodrigues, quatro velejadores da Youth Team Portugal SB20. Um a um, apresentam-se em contraluz, com a transparência de uma estrutura envidraçada a permitir à vista alcançar muito para lá da baía de Cascais. A tripulação oscila entre os 19 (Bernardo) e os 23 anos (Henrique); Luís tem 21 e Rafael, 20.

Nos dias que correm e porque estão em competição, o tema dominante dos últimos quase 18 meses é quase obrigatório no guião. Foi o primeiro a ser colocado em cima da mesa.

Estão todos vacinados contra a covid-19, excepção feita a Bernardo Pêgo. Não porque rejeite a vacina, ou não acredite na mesma, mas sim porque um recente episódio e a necessária concentração para o Campeonato do Mundo SB20 em Cascais lhe trocou as voltas. “Comecei a pensar no auto-agendamento, mas, há um mês, sofri um acidente, tive uma lesão no ombro e têm sido dias de exames, fisioterapia e recuperação”, relata o também campeão nacional SB20 e antigo campeão europeu da classe Dragão. “Estive focado nisso e no Mundial SB20”, reforça.

Henrique, Rafael e Luís já têm o certificado digital de vacinação. A decisão foi tomada conscientemente e sem hesitações. Luís Pinheiro vai mais longe e diz acreditar na solução de vacinação de toda a população. “Para termos a vacinação total, nós, jovens, temos de ser vacinados. Não acredito que me faça mal futuramente”, assumiu o campeão nacional SB20.

Um projecto pensado AC (Antes da Covid) por Bernardo e Henrique. Luís e Rafael enviaram CV

Os quatro juntaram-se há dois anos com o propósito de competir na prova dos SB20. O desiderato foi colocado à frente das respectivas vidas.

Bernardo e Henrique foram os impulsionadores. “Começámos com o barco do meu pai, o Bernardo tinha um barco e decidimos que íamos juntar uma equipa com os melhores velejadores juniores do país”, recorda Henrique, antigo campeão nacional de Laser e Snipe. “Vimos currículos e percebemos que o Luís e o Rafa (como é tratado o Rafael) não só tinham o melhor currículo, como eram, e são, os que melhor se adaptam ao projecto”, acrescenta.

A história desta união a quatro recua dois anos. É pré-pandemia, este novo género de definição temporal que parece substituir o calendário gregoriano (ocidental) do Antes de Cristo (AC) e Depois de Cristo (DC). Por agora, muitos são os temas que passam a ser situados Antes da Covid (AC) ou Depois da Covid (DC). No durante, “foi duro para todos e para nós. Foi difícil para todos estar em casa. Ainda para mais, estamos habituados a estar a andar à vela”, reconheceu Rafael Rodrigues, 11.º no europeu 420, o aparentemente mais tímido e, factualmente, o menos conversador da tripulação.

Henrique olha para a outra metade do copo. “A pandemia ajudou-nos. Tivemos menos tempo de paragem e a SailCascais, a seguir à pandemia, começou a desenvolver estágios e juntámo-nos. Temos feito programas intensivos”, informa.

A disciplina individual intromete-se nos treinos conjuntos. O peso é um tema com o qual se preocupam dia após dia. “Estamos em dieta. Estabelecemos os pesos que cada um deve ter. É assim desde há dois anos”, assegura. “Se nos distraímos… Fomos ajustando a ver onde podíamos chegar, um quilo a mais aqui e ali”, recorda Henrique Brites. “Não podemos ultrapassar os 270 quilos (limite)”, explica. “Custa-me mais perder peso do que ao Rafa, que é mais pesado. Eu demoro 15 dias, ele perde em sete. Cada um tem de se adaptar àquilo que tem de fazer”, detalha.

No que toca ao peso, Luís encara o tema com mais parcimónia. Foi ele que se pesou no início do artigo, descobrimos a meio da conversa. “Pratico muay thai. É mais fácil perder peso”, sorri ao mencionar um desporto secundário e no qual não compete. “O primeiro desporto é a vela”, remata.

Empurrados para dentro de água pelos pais

Henrique Brites trabalha no estaleiro da Petticrows, fábrica dos barcos da classe Dragão recentemente deslocada para Cascais depois de mais de 30 anos baseada em Burnham on Crouch, Essex, no Leste de Inglaterra. “Depois da licenciatura em Gestão, juntei-me ao Pedro Rebelo de Andrade e faço a parte da gestão interna e vendas da empresa”, conta.

Rafael (engenharia mecânica) e Luís (engenharia aeroespacial) estudam no Instituto Superior Técnico. “O meu explicador está aqui”, aponta Luís para Rafael, fazendo questão de reconhecer a ajuda do parceiro de tripulação.

Bernardo destoa um pouco. “Estou no 2.º ano de Direito. É, se calhar, o curso com menos relação com a vela”, sorri. “Vou andar à vela a vida toda, mas não ambiciono ser profissional a vida toda”, garante.

“Na vela, os portugueses têm de estar no sítio certo à hora certa para começarem a trabalhar para os estrangeiros”, afirma, sem hesitar, Luís Pinheiro. A tese é reforçada pela boca de Bernardo Brites. “Ao nível em que andamos, mesmo que não sejamos profissionais, é um pouco mais do que um hobby”, reforça. “Temos ambições, apesar de sermos amadores. Não somos profissionais, mas quase”, acrescenta.

A conversa camba para os trajectos de cada qual dentro de água. Reconhecem o empurrão dado por familiares ligados à vela. “Comecei em 2011 e tenho um percurso sui generis. Comecei logo em barcos grandes e em Dragão e estive menos tempo em Optimist e Laser”, explica Bernardo Pêgo, entrado no mundo náutico por influência de José Bello (padrasto).

“Comecei aos 12 anos na rampa de Cascais empurrado pelo meu pai (Rui Brites, treinador de vela). Tinha um Optimist e decidiu pôr-me a andar à vela. Não gostei tanto como o meu irmão, mas como era competitivo, aqui estou”, relata Henrique. “Num percurso mais individualista, a seguir aos dois anos em Optimist, passei para Laser, onde fui campeão nacional 47 e Laser Radial”, continua.

“Sou baixo e percebi que não conseguia andar mais de Radial. O meu pai ajudou-me na decisão pragmática e comecei na classe Moth”, desvenda, classe onde se sagraria campeão em 2019.

“É importante perceber se temos ou não capacidade para fazer as coisas. Percebi que também há coisas que não dependem só de nós e decidi virar-me para o caminho dos estudos e andar de Moth, que dá prazer e me permite fazer regatas no estrangeiro”, admite.

Unidos nas engenharias, Luís e Rafael tiveram um caminho um tanto ou quanto semelhante na água. Luís começou aos 7 anos. “Nos primeiros três anos foi por influência do meu pai, Luís Pinheiro [veleiro]. Era o meu pai a insistir e eu não adorava. Mas depois ficou o bicho. E desde então não parei”, solta a confidência. “Passei para os 420 [5 anos]”, classe na qual inscreveu o nome como campeão nacional em 2018.

Os cursos de vela de Verão foram a porta de entrada de Rafael Rodrigues. “Aos 9 anos fiz o primeiro. Nos anos seguintes, fiz mais cursos e fui para a competição”, narra. Nesta vida de competição não entrou o sonho olímpico. “Não ambiciono a vida olímpica. Mesmo se correr bem e for aos Jogos, regresso e nada muda”, admite. “Uma carreira de sucesso é uma carreira particular, é ser contratado para competir. Tal como o Luís disse, é estar na hora e local certos e ter um bom currículo”, atira.

Se chegar um armador e quiser levar um?

“Olá mundo, estamos aqui prontos para ser recrutados”, poderia ser um slogan soletrado por todos. “É difícil ter os dois focos, o profissional e o do curso”, assume Rafa, estudante de engenharia em vias de ganhar asas através do programa Erasmus, na Alemanha, de Abril a Agosto de 2022. “Vai apanhar os nacionais”, diz, em forma de lamento.

O pragmatismo não larga Henrique. Findo o Mundial SB20, competição à qual dedicaram dois anos, “de certeza que teremos projectos. Tentamos ser o mais objectivos possível. É a parte do pragmatismo a funcionar”, reconhece. “Decidimos que íamos atacar este mundial e não pensámos para a frente. É manter o foco. É assim há dois anos. Era e é o grande objectivo desta equipa SB20”, garante.

Abertos, no entanto, a uma futura recruta, à pergunta “Se chegar um armador e quiser levar um?”, as respostas não são homogéneas. “Não sei se teria sorte. Sempre fiz de leme e não andaria sem ser a leme. Já fiz vela grande, como o meu pai. Têm de pagar bem”, sorri Henrique Brites, cuja mão assenta no leme na tripulação a quatro.

Rafael, colocado no Estai e no Spi, acrescenta. “Dependia do projecto”. O Erasmus é também uma experiência que quer fazer. “Quero sair de casa e ir para outro país. Quando acabar o curso vejo por onde posso sair. Quero trabalhar nas energias renováveis”, perspectiva.

Bernardo, vela grande, eleva a discussão. “O futuro a Deus pertence”, atira, rectificando, de imediato, a frase de crença e subserviência divina. “Não sou católico”, esclarece. “O futuro é uma incógnita e o que terá de ser, será”. Puxa de algo mais filosófico em que acredita piamente: “Nem tudo acontece por um acaso, as coisas têm um timing e um motivo”, atesta. “Não acredito em coincidências”, remata.

Andar à vela, sim, mas no imediato Bernardo quer acabar a licenciatura em Direito e, depois, talvez, deixar-se levar pela carreira diplomática, puxando dos galões de ser quase bilingue em português e inglês e fluente em francês.

“Tenho uma veia artística, vem do lado da minha mãe, artística plástica. O meu pai (Jorge Pêgo) está ligado aos média”, anuncia.

Gosta de escrever e ler livros. Folheia, neste momento, “12 Lições para o Século XXI”, de Yuval Noah Harari, e considera ser importante “saber falar bem”. Por essa razão tem um banco de palavras (mais de 200) onde anota as que foi aprendendo e descobrindo ao longo da vida e cujo significado desconhecia. A última é “prolixo”, responde, já por SMS, depois da consulta no computador. Significa “palavroso”.