Nestes dias que antecedem as eleições, muitos de nós sopram o pó à cópia do clássico do grande Eça de Queiroz e releem os episódios e as anedotas desta genial caricatura de Portugal no fim do século XIX. Vamos vendo que algo naturalmente mudou nestes 125 anos, somos afinal uma república democrática inserida na UE. Mas na sua essência, entre sorrisos e angústias, reconhecemos que afinal não mudámos assim tanto. Os personagens, as motivações, a retórica, as muitas batalhas de discursos inflamados com pouco ou nenhum conteúdo e o sentimento de que tudo é uma feira que não vai quebrar os paradigmas do atraso nacional – tudo isto está na mesma. De facto, se Eça estivesse hoje entre nós, de pena na mão a preparar um remake da sua obra, apesar do que se evolui, falhámos no básico e o resultado na essência não seria diferente.

Boa parte desta situação deriva de um modelo de eleições em democracia que, apesar de interrompido pela ditaduras do séc. XX, pouco ou nada evoluiu. A tecnologia pode trazer um modelo melhor mas pode ser uma força de falsidade e desinformação terrível. Por enquanto, remeto-me a partilhar a minha perspetiva sobre a campanha eleitoral em curso estruturada em cinco pontos e na companhia do protagonista Eça, como se regressasse hoje aos nossos dias. Um caveat: milito num partido de que sou simpatizante há décadas mas procurei muito que isso não influenciasse esta peça.

Os programas eleitorais
Para começar a entender o que estaria em jogo nesta campanha e interessado em perceber as ideias em confronto para a nova obra, Eça de Queiroz recolheu e estudou os programas dos partidos políticos. Calhamaços com 90 até mais de 200 páginas, com estruturas e atratividade visual muito heterogéneas e poucas medidas práticas visíveis, a maior parte sem prova de exequibilidade. Eça achou que só podia haver uma explicação: os partidos acham que só uma pequena minoria de eleitores liga aos programas e por isso não se investiu neles. Talvez seja, pensa, mas, homessa, que estranho – sem um tronco forte uma árvore não vai dar os frutos esperados.

Os líderes e as suas equipas
O escritor comprou jornais, folheou-os e sentou-se no foyer do hotel a assistir na televisão aos jornais da noite (Eça já tinha aprendido a apreciar o zapping) para vislumbrar as pessoas dos partidos e o que diziam nas entrevistas. Concluiu que havia grande heterogeneidade no perfil dos líderes em clareza de discurso, seriedade e maturidade, mas chocou-o um ponto comum: não viu nenhuma personalidade que se destacasse pelo seu carisma e pela sua força de liderança. Talvez haja receio em assumir publicamente o carisma quando ele existe, mas não creio que seja o caso aqui, pensou. E recordou-se de que, ao contrário do que alguns estudiosos europeus advogam, não há correlação entre carisma e liderança duma força “populista” (i.e., disruptora, antiestabelecimento) -, e a evolução da imagem de líderes como Marine Le Pen, Georgia Meloni ou Mette Frederiksen (assumidamente social-democrata, diga-se) tornou-os líderes carismáticos acima da definição de populismo. Bom, pensou Eça, mas se não há líderes desses na campanha, a diferença vai estar na qualidade das equipas – e, de facto, parece ser o caso.

Há partidos históricos com equipa de quadros de elevada craveira profissional, outros com equipa de currículos mais políticos e académicos, sem experiência comprovada no terreno. E, nos partidos mais recentes, a visibilidade da equipa é tão nebulosa que uma pessoa se questiona se há ou não uma equipa capaz de entregar as promessas do líder. Era tão importante passar isto para o eleitor, pensou Eça. Não é fácil, mas pode afetar muito o resultado.

A comunicação dos partidos
No dia seguinte, Eça de Queiroz saiu de manhã e foi passear. Ficou pasmado com os cartazes, com ações-comício por todo o país, as arruadas (imagine-se uma arruada de plastron, sobrecasaca e chapéu alto na Rua do Carmo em 1890) e a pressão inexorável nas redes sociais de cada vez que, através do monóculo, consultava o smartphone. Mas, para aqueles que andam há quase 50 anos nisto, o que mudou? Foi perguntando pelas lojas, pelos cafés… e a resposta, sempre a mesma: “Oh, não mudou nada.” Percebeu que face a 1999, por exemplo, havia menos cartazes e mais aposta nas redes sociais, mas, de resto, é mais do mesmo.

Mas isto é um deserto de inovação e imaginação que não deixou ninguém de fora, pensou Eça, e quando fazem todos o mesmo anulam-se uns aos outros e a soma do esforço é zero. Bom, se um partido falta a este carrossel vai sofrer nas urnas; por isso, não há opção. Mas, pensou ele, esta lei eleitoral deixa de certeza espaço para ir mais longe, que pena a oportunidade perdida… Eça chegou ao Campo Pequeno, olhou para os cartazes e para o smartphone e pensou: “O eleitor tem canais para receber informação e dialogar, mas não será a qualidade da comunicação que vai decidir o seu voto. É tudo igual, uma feira.”

Sondagens e meio académico
O quê, mas falar nas batalhas das empresas de sondagens e misturar com as torres de marfim do meio académico que o país venera e coloca acima de qualquer suspeita? Eça estava chocado com a ligação. E mais ainda quando percebeu três coisas: a intensidade de publicação de sondagens, a heterogeneidade da sua qualidade técnica em termos de dimensão e estrutura de amostra, por exemplo, e a enorme disparidade de resultados, às vezes no mesmo dia. E não quis acreditar que todo o movimento eleitoral navegava ao sabor dos ventos cruzados das sondagens – toda a gente lia, partilhava e comentava dizendo bem quando os favorecia e mal quando era o contrário.

“Não havia nada disto no meu tempo”, pensou, “e que raio de falta fazem estas linhas e barras coloridas todas? O que interessa é ganhar as eleições. Perder energia no que não leve à vitória não tem sentido. Ah, mas que belo material para o meu livro, esta coisa das sondagens! E com as universidades metidas no meio… Se eu contar isto ao Antero e ao Ramalho, vão cair de rabo!”

Os media e os comentadores
Nisto, o bravo Eça já tinha tido a sua justa dose de exposição aos media – nos jornais, na televisão e pelo seu smartphone. Senta-se à secretária. É boa altura para tomar notas sobre isto, porque é a faceta mais nova face a 1890 e o que ele está convencido de que mais influencia os eleitores.

Ficou impressionado com o número de jornais e canais de TV num país pequeno, questionou-se como conseguiam ter receitas e percebeu que, para isso, nada melhor do que uma campanha eleitoral. Os canais de notícias, achou-os todos iguais – as mesmas notícias, o mesmo género de apresentadores, igual a mesma agressividade na rua e debates.

Eça de Queiroz deliciou-se com os debates entre líderes. Especialmente o dos dois putativos candidatos à vitória. Comprovou tudo o que já achava, mas espantou-se por nenhum se levantar e dar um par de tabefes para a coisa animar, como no seu tempo. Depois esfregou as mãos, aí vinha a sua parte preferida: os comentadores! Ficou chocado com a postura arrogante, a darem pontos como se fossem deuses do Olimpo e opiniões vazias, mas assertivas. Alguns eram independentes, outros notava-se que defendiam um partido, o que Eça achou vergonhoso. “Será que estes comentadores são pagos”, pensou? Sim, senão não estariam ali. E não há melhor gente para a função? Deve haver, mas não se querem misturar com pobres de espírito ou são mais reservados. E ganham mais noutro sítio.

Eça não aguentou mais. Quando chegou o dia, foi votar e, depois, foi-se embora.

O dia 10 de março amanheceu chuvoso e frio, chegava a altura de partir para Sintra, depois, Paris. De malas feitas na véspera e regressado da sua mesa de voto, o nosso Eça contemplou a sua secretária pejada de notas, manuscritos e canetas esferográficas (sua nova paixão) e, num ápice, arrumou tudo na pasta. Estava contente, tinha material para uma grande obra que lhe ia dar muito gozo escrever. Desceu à rua, saltou para o táxi que o espe- rava e pensou na primeira página da Campanha Alegre original…

“O país perdeu a inteligência e a consciência moral. Não há princípio que não seja desmentido nem instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Já não se crê na honestidade dos homens públicos. A classe média abate-se na imbecilidade e na inércia. Os serviços públicos vão abandonados. Vivemos ao acaso. O tédio invadiu as almas.”

Isto mudou pouco. Lançou um último olhar ao seu Chiado e preparou-se para a viagem até ao Hotel Lawrence – podia ser Seteais, mas este estava saturado de modernices e há coisas que se tenta mudar, sem sorte, mas outras que preferimos manter como sempre estiveram.

Empresário, gestor e consultor

Artigo publicado na edição do NOVO de sábado, dia 2 de março