No oitavo círculo de nove que o Inferno tem, Dante reconheceu uma das figuras que sofriam os tormentos eternos. Era um homem chamado Sínon que, tal como o nome pressagiava, era capaz de trocar o sim pelo não e o não pelo sim, conforme a sua maligna conveniência. Sínon era a personagem da Eneida de Virgílio que levara os ingénuos troianos a recolherem para dentro das muralhas o famoso cavalo de madeira deixado pelos aqueus. Foi Sínon quem, enganando toda a gente, levou os troianos a destruírem-se a eles mesmos.
Espanha prepara-se para ter, uma vez mais, Pedro Sánchez como chefe do governo. No seu primeiro mandato, Sánchez provou à saciedade que interpreta a ação política como uma luta de terra queimada onde a primeira coisa a arder são os escrúpulos democráticos. Mas nesta fase prepara-se para sacrificar o pouco que restava à pura obstinação por poder pessoal e partidário. Após perder as eleições por uma ampla margem, conseguiu evitar que a direita política obtivesse maioria absoluta no parlamento. Como o PS português mostrou em 2015, para quem não quer observar as regras não escritas da conservação da política moderada democrática – e uma delas é certamente “não te coligas com partidos que perfilham ideologias totalitárias” -, vencer as eleições deixa de ser indispensável desde que se evite a maioria absoluta de uma coligação contrária e desde que se falsifique o património político do próprio partido e das instituições. Se Sánchez, há quatro anos, dissera que não conseguiria “dormir tranquilo” com o Podemos no poder para imediatamente a seguir liderar um governo de ministros do Podemos, agora dispõe-se a aceitar as condições de partidos terroristas, contraconstitucionais e separatistas.
Sánchez jurou inúmeras vezes que jamais faria tal coisa. Desde logo, o património político do seu próprio partido estava lá para, com semblante grave, não admitir sequer tamanha veleidade. Figuras históricas do PSOE, como Felipe González e o ex-presidente da Extremadura Rodríguez Ibarra, têm-no recordado nos últimos dias com clareza. E muito menos autorizaria uma manobra deste tipo o sentido das instituições políticas da Espanha democrática, produto de um delicado e precioso pacto político na transição de regime, na segunda metade da década de 70, e que o próprio Sánchez deveria representar. Para Sánchez, nada importa: nem a ordem da legalidade, nem as instituições democráticas espanholas, nem a Constituição, nem a unidade do país, que é seu dever ajudar a preservar. Sánchez quer levar a cabo o que partidos com assassinos terroristas nas suas listas lhe exigem. Quer declarar uma amnistia, isto é, um esquecimento e anulação de quaisquer responsabilidades judiciais e políticas, para promover os que perpetraram crimes contra o Estado espanhol. Anuncia que está disponível, como um Sínon e com “entusiasmo”, para comprometer irreversivelmente o equilíbrio político e institucional de Espanha, que fez dela até hoje uma bela democracia.
Sánchez faz tudo isto sem ter resultados positivos da sua governação de quatro anos para mostrar. Em alternativa, carrega em todos os botões da mitologia romântica esquerdista. São as eternas “lutas” pelo triunfo do “simbólico” contra as “trevas” que sempre comoveram o coração das esquerdas. A preferência por proclamações estéreis em prejuízo da ponderação realista das consequências das decisões; por propósitos contraditórios ao invés da melhoria das condições concretas da vida das pessoas. Apresenta-se como um vanguardista da “civilização” e promete protagonizar “avanços progressistas” no contexto de uma luta sem tréguas contra o “fascismo” que o próprio encena.
E o que nos importam os males de Espanha a nós, portugueses, a braços com gravíssimos problemas? Espanha não é, para Portugal, um país qualquer. O destino democrático do país está indissoluvelmente ligado ao espanhol no plano económico-financeiro, bem como no plano político. Aliás, desde as invasões napoleónicas, e apesar das diferenças das suas respetivas sociedades e fraturas coletivas, a história de ambos os países tem seguido um caminho quase idêntico e compassado pela mesma cronologia: da queda de monarquias seculares para as convulsões liberais; das experiências republicanas falhadas para regimes autocrático-militares repressivos; das transições democráticas até à integração no projeto político europeu.
Hoje, o grande aliado europeu de António Costa é Sánchez e vice-versa. Não é mera coincidência. São políticos de um certo tempo. Partilham propósitos e métodos. As consequências do governo Sánchez serão sentidas em Portugal. E com dor. Em política, cada um é responsável pelas decisões que toma – e pelas daqueles que tão incondicionalmente apoia
Artigo publicado na edição impressa do NOVO, dia 7 de outubro
Antigo deputado