Já ninguém duvida de que as eleições legislativas no dia 10 de março vão abrir uma fase nova na vida democrática do país. Haverá um antes do 10 de março de 2024 – provavelmente, desde a revisão constitucional de 1982 – e um depois do 10 de março. As eleições nos Açores do próximo domingo serão a sua antecipação.

Em curso não está propriamente a fragmentação do sistema partidário, mas a substituição de uma relativa fragmentação, com o predomínio de dois partidos (PS e PSD), pela concorrência de três partidos, condenando todos os restantes a uma crescente insignificância.

É verdade que haverá aqui uma assimetria. A direita divide-se em dois partidos (PSD e Chega) e o PS vai concentrando o que resta da extrema-esquerda, tanto na versão paleoestalinista como na versão comunista pós-moderna. A julgar pela experiência de outros países europeus, podemos antever uma relação difícil, porque inerentemente conflituosa; e instável, porque insustentável, forjada na disputa paritária pela primazia do espaço do centro-direita.

A fasquia da supremacia é sempre elevada e, por isso, antes de haver entendimentos entre os partidos, haverá hostilidade e desconfiança mútua. E uma relação paritária é insustentável precisamente porque impede que seja um a ditar ao outro os termos de possíveis entendimentos. Um não aceita a liderança do outro.

A experiência europeia mostra que há várias possibilidades: o partido histórico mantém a sua supremacia, como o PP em Espanha; o partido histórico estatela-se num novo estatuto irreversível de pequenez, irrelevância e tumulto político, como em Itália ou em França. Seja qual for a situação concreta, para constituírem soluções de governo, um precisa pelo menos do consentimento do outro.

Do outro lado, o PS vai absorvendo o que resta da extrema-esquerda e impedindo que algo de novo renasça na esfera política da esquerda. Isto é inédito na Europa, pelo menos desde 2010. Talvez por se ter convertido num partido hegemónico, colonizador do Estado e da sociedade civil e preponderante na comunicação social, o PS mantém um controlo apertado sobre todo o espaço de inovação política naquela esfera, mesmo sem ter resultados positivos de governação, mesmo sem renovar o pessoal político, como ficou bem patente com as listas de candidatos a deputados apresentadas por Pedro Nuno Santos, repetindo o mesmo do costismo, sem rasgo nem visão.

Tendo amarrada a si uma parte substancial do eleitorado pensionista, decisivo num país aceleradamente envelhecido, o PS desistiu de recrutar a juventude ou de reformar o país, duas coisas intimamente ligadas. O resultado é, apesar de todos os desastres governativos, desde as troikas chamadas nas condições da maior humilhação política a demissões por suspeitas de corrupção e de compadrio de ministros e do próprio primeiro-ministro, o PS cativar, com Sócrates e com Pedro Nuno Santos (neste caso, tendo por base as recentes sondagens), mínimos de 27-29%.

O PS constituiu-se, assim, como uma potência impotente que ameaça o país com uma estagnação económica e social perpétua e com o bloqueamento do sistema político – porquanto um sistema democrático incapaz de se renovar e de proporcionar alternativas políticas se declara a si mesmo bloqueado. Mas o seu seguro de vida é, e será, a força do Chega.

Obcecado menos com governar do que com ocupar o poder e sacudindo as suas responsabilidades na estabilidade do sistema político, António Costa fomentou diariamente o Chega, escolhendo-o para coprotagonizar a vida política segundo o modelo maniqueísta de “os bons contra o fascismo”, modelo que Ventura, pelas suas próprias razões, aceitou de bom grado. Costa pode distribuir como quiser as mais mirabolantes e histriónicas acusações pelo protagonismo do Chega, desde o frenesim dos jornalistas até à “ambivalência” imaginária do PSD. Mas não se livrará do julgamento histórico inexorável a que o seu arquétipo, François Mitterrand, também não escapou. 

E o PSD? Ninguém pode hoje de boa-fé dizer que não foi avisado. Os anos da liderança de Rui Rio foram marcados pela sua recusa obstinada, primeiro, em perceber o que estava a acontecer e, segundo, da estratégia óbvia para o evitar. Com adopção das famosas “linhas vermelhas”, ou sem ela, qualquer estratégia eficaz pressupunha que se escutasse o eleitorado, em particular o que revelava inclinação para votar num partido de puro protesto, sem estratégia programática nem coerência discursiva de qualquer espécie, e se se dirigisse a ele nos termos dos valores democráticos e europeus do partido, sendo criativo nessas respostas, mas sem eleger como prioridade encetar esse diálogo nos termos ditados pela esquerda.

O PSD teve uma derradeira oportunidade de voltar a ser uma federação das direitas, pautada pelo programa moderado, de negociação permanente entre as várias famílias que as constituem (liberais, conservadores, democratas-cristãos, liberais-sociais, sociais-democratas que se reveem numa economia social de mercado), seguindo a disciplina própria da responsabilidade da governação.

Até 10 de março e depois disso, continuará a ser essa a vocação natural do PSD, se quiser continuar a ser um grande partido nacional, chamado à governação para ser uma alternativa, e não uma continuação, muito menos um suporte, da política socialista. 

Antigo deputado

Artigo publicado na edição do NOVO de 3 de fevereiro