A crise política veio baralhar a já difícil e prolongada negociação entre sindicatos médicos e governo, mas a questão central mantém-se: sem uma “resolução urgente”, que passe pelas mãos do governo que se mantém em funções, pode estar à vista o “fim do Serviço Nacional de Saúde” (SNS).
O aviso é feito por Carla Meira, do movimento Médicos em Luta. Em declarações ao NOVO, a médica diz que novembro “já está a ser catastrófico” e teme que dezembro possa vir a ser pior, tendo em conta que continuam a ser entregues escusas ao trabalho extraordinário para lá das 150 horas anuais, o que pode agravar as dificuldades nos serviços de urgência de todo o país.
O problema pode acentuar-se também porque o último mês do ano é um período em que os profissionais de saúde costumam tirar férias, especialmente na última quinzena, fase em que tipicamente há maior procura das urgências.
Conhecida a decisão do Presidente da República de convocar eleições antecipadas para 10 de março de 2024 e de manter António Costa em funções até essa altura, o movimento Médicos em Luta mantém o protesto, com a certeza de que o “SNS não aguenta esperar por eleições”, e apela à retoma urgente das negociações entre os sindicatos e o Ministério da Saúde – porque “não é possível começar tudo do zero” com um novo governo que, no melhor cenário, tomará posse em abril de 2024. “Estamos muito unidos. Continuamos indisponíveis para fazer mais horas extra. A situação, do meu ponto de vista, já é catastrófica. As dificuldades no acesso a cuidados de saúde e o número de urgências fechadas já são inaceitáveis num país europeu”, queixa-se a médica.
Sendo certo que um acordo entre sindicatos e governo não funcionará como uma varinha mágica para os problemas do SNS, o movimento Médicos em Luta espera que parte dos mais de 2.500 profissionais que estão agora indisponíveis para fazerem mais horas extraordinárias poderá rever essa decisão.
“Se houver perspectivas de mudança sérias, se houver um plano bem estruturado de mudanças a curto prazo das condições de trabalho, inclusive o salário, acredito que muitos vão fazer o esforço de fazer mais algumas horas extra para garantir o acesso à saúde à população”, afirma Carla Meira, médica do hospital de Viana do Castelo, unidade que tem os serviços de urgência de cirurgia geral e de medicina interna encerrados aos fins de semana. “Toda a gente sabe que as mudanças não são imediatas mas, se não abrirem portas, não podemos fazer nada”, acrescenta, recordando que os profissionais não estão em greve, estão apenas a cumprir o seu horário.
Acordo não fará magia
Já Xavier Barreto, presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares (APAH), duvida que um acordo entre médicos e sindicatos resolva o problema das dificuldades que existem em completar escalas nos hospitais. “Mesmo com um acordo, é possível que parte significativa mantenha a recusa em realizar mais do que 150 horas extraordinárias”, diz ao NOVO, clarificando que “não vamos ter horas suficientes de médicos para assegurar as urgências todas que tínhamos abertas antes de este conflito se instalar”.
De qualquer forma, adverte, é preciso ter um “plano de contingência para o pior cenário”. No entender de Xavier Barreto, é tempo de avançar para uma solução mais estrutural: “Faria todo o sentido que se começasse, desde já, a pensar numa reformulação das urgências, que poderá implicar a concentração de profissionais e de respostas nalgumas regiões.”
Xavier Barreto reconhece que novembro está, de facto, a ser “muito difícil” e ainda que o conceito usado pelo diretor-executivo do SNS, Fernando Araújo, há umas semanas depende da interpretação de cada um, admitindo que ter mais de 40 hospitais com problemas nos serviços de urgência é um cenário “dramático”.
“Não sei se é o pior mês do SNS ou um dos piores, não faço ideia. Sei que está a ser muito difícil. Temos praticamente todos os hospitais com dificuldades. Aqueles que ainda mantêm a resposta mantêm-na a muito custo, com um esforço tremendo dos profissionais de saúde que não entregaram a declaração de recusa”, afirma o presidente da APAH.
SNS vive período crítico
Questionada na última sexta-feira pelo NOVO sobre se estaria delineado um plano de contingência para as urgências até ao final do ano, tendo em conta as dificuldades em completar escalas decorrentes da recusa dos médicos em trabalhar além das 150 horas extra, a direção executiva do SNS avançava que estaria para breve os mapas de funcionamento dos blocos de partos e dos serviços de urgência de ginecologia/obstetrícia e de pediatria, assim como “outras orientações clínicas de gestão da rede do SNS”, deverão ser publicados nos próximos dias. O que seria possível por existir a “expectativa de alguma estabilização na previsão da capacidade de resposta de cada instituição aos diversos contextos do serviço de urgência”.
O CEO do SNS lembrava que todos os dias têm dado entrada, em várias instituições hospitalares, recusas às horas extra além das 150, razão pela qual a gestão do sistema tem sido feita diariamente em coordenação com os hospitais e com o INEM, de modo a serem definidos “os trajetos e as referenciações que assegurem proximidade e segurança para os doentes”.
Esta gestão tem envolvido “um trabalho intenso, de elevada complexidade, com articulação a diversos níveis com o CODU”. reconhece o organismo, notando que, apesar das restrições de acesso em múltiplos hospitais, “a rede do SNS [tem] respondido sem falhas” e sem “registos de atrasos de assistência a doentes graves”.
Um dia depois da resposta ao NOVO, a direção executiva emitia um comunicado admitindo que o SNS atravessa “um período crítico da sua existência” e dava conta dos mapas com os serviços de urgência que funcionam com limitações (30 em todo o país), e as respetivas alternativas, durante esta semana. Na deliberação assinada por Fernando Araújo é novamente reforçado que os doentes devem, em caso de doença aguda e sempre que possível, ligar previamente para a linha de Saúde 24 (808 24 24 24) e seguir as orientações recebidas. Em caso de urgência ou emergência, devem ligar o 112, que encaminhará a chamada para o INEM.