João de Deus, presidente da Federação Europeia de Médicos Assalariados (FEMS), não tem dúvidas. Em conversa com o NOVO, o oftalmologista considera que se não houver uma maior valorização em termos salariais dos médicos em Portugal, “o Serviço Nacional de Saúde vai implodir”.

“Tenho sempre esperança de que as coisas se modifiquem, que possamos entrar num caminho mais consentâneo com aquilo que são, digamos assim, as responsabilidades dos médicos e as condições de trabalho, nomeadamente em termos salariais”, começa por dizer João de Deus.

O clínico considera que a solução não está na proposta apresentada pelo (ainda) primeiro-ministro, António Costa, e que passava “por aumentar as vagas na Faculdade de Medicina”. Mesmo que tal acontecesse, o problema mantinha-se. “Estaríamos apenas a formar mais médicos para os outros países aproveitarem”, refere.

“Nós temos a melhor formação de especialidade na Europa. Mas de longe. Porque somos o único país que tem tudo certinho em decreto-lei – o que cada interno tem de fazer no 1.º ano, no 2.º ano, no 3.º ano, no 4.º ano, e temos isto controlado de uma forma altamente rigorosa pela Ordem dos Médicos. Temos a melhor formação médica especializada e são os outros países que o dizem, não somos nós. Por algum motivo somos muito requisitados. Isto é um bocadinho como o futebol: temos uma excelente formação, aguentamo-los um ano ou dois e, depois, sai tudo. Formamos os Ronaldos e perdemo-los”, diz, com lamento, para em seguida dar um exemplo concreto: “Antes da pandemia estava a formar um jovem especialista na minha área, que exige destreza cirúrgica acima da média, e ele disse-me que ia para França. Ganhava cá em Portugal 1.200 euros. Quando me disse que ia ganhar 10 mil euros, só pude responder que já devia ter ido ontem.”

Malta e Roménia
João de Deus, especialista em oftalmologia no Hospital Egas Moniz, em Lisboa, estabeleceu, na longa conversa que manteve com o NOVO, comparações que ajudam a perceber a luta dos médicos em Portugal.

“Malta tem um nível de vida abaixo do nosso, mas o salário dos médicos é três vezes superior ao nosso. Porquê? Porque havia muitos médicos a emigrar para o Reino Unido, porque têm uma conexão forte com o Reino Unido. Cerca de 50% dos médicos que se formavam e tiravam especialidades estavam a deixar o país. E eles conseguiram um acordo há uns anos e aumentaram, basicamente, três vezes o salário, e a emigração baixou drasticamente”, conta.

Na Roménia passou-se um fenómeno parecido. “Tiveram de duplicar o vencimento aos médicos, pois perceberam que tinham de parar com a emigração, sobretudo para França. Em comparação connosco, o ordenado bruto deles é inferior, mas com a correção por paridade do poder de compra estão quase no cimo da tabela”, relata.

Por estes casos, João de Deus é taxativo: “A única possibilidade de mitigarmos esta vaga de emigração e da ida para os privados é fazermos algo parecido. O próximo governo terá de pensar seriamente nisto porque, se por um lado formarmos mais médicos, vamos estar a exportá-los; se os quisermos reter no SNS, vai ser impossível, porque as pessoas, pura e simplesmente, não querem ficar.”
E continua, agora com um exemplo do seu quotidiano. “No meu serviço tenho mais de 20 médicos. Tenho apenas um a tempo completo; todos os outros estão a tempo parcial, com redução de horário, porque, obviamente, precisam de fazer o privado para compor o ordenado”, sublinha, antes de dar o seu próprio exemplo: “Ninguém acredita nisto, mas eu posso mostrar os recibos. Sou graduado sénior, topo da carreira: se estivesse a 35 horas, como estive até há bem pouco tempo, eu levava para casa 1.620 euros limpos. No topo de carreira. Agora, como estou a 18 horas, levo para casa 850 euros limpos. Não é possível alguém no topo da carreira médica ter esse salário líquido”, enfatiza.

João de Deus, no âmbito da liderança da FEMS, esclarece que, “na Europa, todos os países têm falta de médicos; a exceção são os Países Baixos”.

Os países preferidos dos médicos portugueses são “a França e o Reino Unido, pois são os países com maior poder de compra”. Junta a Alemanha, mas esclarece que “existe o problema da língua” e, naquele país, “exige-se que se fale o idioma”. Por isso, “ou a pessoa sabe alemão, ou está ali uns meses a estudar a língua”.

Sem estar no topo das preferências, a Suíça é, segundo João de Deus, um destino também “muito interessante”. E adianta que um médico português que vá fazer o internato de psiquiatria “recebe 6.600 euros líquidos”, devendo-se isso também “aos baixos impostos” naquele país. Isto sem falar nos Emirados Árabes Unidos, “que é outro patamar”, onde João de Deus tem colegas a auferir “qualquer coisa como 45 mil euros/mês”.

Mudança de paradigma
Para João de Deus, há uma “mudança de paradigma” própria das novas gerações. “Os mais velhos, como eu, estão um bocadinho exaustos e os mais novos querem ter também tempo para outras coisas, não querem trabalhar aquelas horas todas extraordinárias malucas. Querem ter vida. Posso dizer-lhe que na Áustria estão com um problema grave, porque a grande maioria dos jovens especialistas estão a pedir tempo parcial, querem trabalhar só três dias, no máximo quatro por semana. E eles conseguem ter um bom vencimento fazendo só esse horário”, revela, antes de fazer mais uma comparação: “As pessoas estão saturadas, já não querem fazer mais horas extraordinárias, estão exaustas, não são reconhecidas. Em França, durante a pandemia, foi dado à cabeça um subsídio a todos os médicos de 700 euros. Cá, zero.”

João de Deus esclarece qual é o sonho do médico português. “O objetivo de qualquer médico é poder trabalhar só no serviço público a tempo inteiro com horário completo, ter um ordenado compatível para os gastos do quotidiano – casa, carro e alimentação. Mas isso não é possível em Portugal, infelizmente. Enquanto nos outros países é possível fazer isso e eles têm uma qualidade de vida incomparavelmente melhor que a nossa, nós temos de fazer público mais privado, muitas horas por dia, com pouco tempo para a família. Pouco tempo para a família. Eu passei um bocadinho ao lado do crescimento dos meus filhos porque saía de casa às 7h00/7h15 e chegava por volta das 21h00/22h00. As novas gerações já não querem isso”, reitera.
As outras profissões

Convidado a dizer se um aumento salarial do agrado dos médicos não pode provocar alguma revolta de outras profissões do sector público, João de Deus coloca as coisas na balança: “Nós estamos muito abaixo do valor que os juízes têm, que os professores universitários têm. Agora deixei de dar aulas na Escola Superior de Tecnologia da Saúde, onde era professor, mas eu, com 18 horas no hospital, levo 850 euros para casa, e, como professor na escola, fazia seis horas, um terço das que fazia no hospital, e levava para casa mais de 900 euros. É evidente que as outras profissões também estão mal pagas, mas os médicos têm de lutar pelas suas reivindicações. Mesmo assim, comparados com outras profissões da função pública – professores universitários, juízes, etc. -, estamos muito, muito abaixo.”

E, por isso, termina como começou: “Se não tomarem medidas, o SNS corre o risco de implodir. E a situação não se resolve a importar médicos cubanos. Isso é tudo conversa fiada. Seriam precisos milhares e, depois, a qualidade não é aquela a que estamos habituados.”