Desde que os primeiros documentários sobre vida animal começaram a aparecer nas televisões e a BBC fundou a unidade de História Natural, em 1957, nunca houve uma série dedicada a sociedades matriarcais. Animais liderados pelas fêmeas e não pelos machos? Nicho, desinteressante, nada para ver… Chega esta semana a série que vai mudar tudo isso e que espera, pelo caminho, formar uma nova geração de mulheres atrás das câmaras. Chama-se Rainhas do Reino Animal e estreia-se a 10 de março no National Geographic Wild, estando também disponível no serviço Disney+.

“Estive na BBC 25 anos. Era um clube de rapazes”, apontou Vanessa Berlowitz, produtora executiva da série e cofundadora da Wildstar Films, numa mesa redonda em Los Angeles. “Os cineastas gravitavam para a ciência dominada por homens, que também se focava nos machos das espécies animais”, frisou a veterana da indústria, que teve a ideia da série.

Berlowitz recordou uma produção com chimpanzés que ilustrou a falta de interesse na componente feminina. “Eles tinham dado nomes a todos os machos, mas não a qualquer das fêmeas”, lembrou.

“Assumiam que as fêmeas eram só para a maternidade, não para liderança ou domínio.”

A nova série da NatGeo, que tem narração e produção executiva da atriz Angela Bassett, vira essa assunção de pernas para o ar. O primeiro episódio estilhaça qualquer ideia de submissão feminina, focando-se em matriarcas rivais na cratera Ngorongoro, Tanzânia: hienas e leoas.

A ideia surgiu quando Vanessa Berlowitz estava a fazer outro documentário. “Fiquei impressionada com o poder das matriarcas elefantes e pensei que seria muito interessante olhar para outras, especificamente leoas e hienas na cratera”, explicou. Justine Evans e Sophie Darlington, cinematógrafas veteranas focadas em cada uma destas espécies, foram convidadas a entrar e aceitaram de imediato.

A Wildstar Films propôs a ideia à National Geographic e a executiva em causa, também mulher, elevou o projeto de um documentário avulso para uma série completa. E acrescentaram outro aspeto que nunca tinha sido feito: porque não usar “Rainhas” para mostrar talento feminino por trás da câmara? Foi aí que perceberam que não havia operadoras de câmara e cinematógrafas suficientes para uma produção desta dimensão.

“Percebemos que seria necessário preencher uma grande lacuna e tínhamos de orientar e treinar mulheres para essas posições”, partilhou Berlowitz. O que se seguiu está a desencadear uma mini-revolução na indústria.

Uma nova geração de cineastas
Há apenas alguns anos, não havia maneira de Faith Musembi trabalhar em documentários de história natural no seu país, o Quénia, apesar de este ser um cenário constante destes programas. “Se eu quisesse um emprego nesta área, tinha de me mudar para Bristol, ser contratada lá e, depois, ir ao Quénia filmar, vinda de fora”, explicou. Bristol é o epicentro da indústria, onde a BBC criou a unidade de História Natural há quase 70 anos e onde David Attenborough se tornou uma referência.

Durante todo este tempo, os magníficos cenários africanos dos documentários foram filmados de fora para dentro. Com pouca ou nenhuma participação de pessoas locais – as que vivem lado a lado com a vida selvagem retratada – e muito menos usando línguas nativas. “Tradicionalmente, estes documentários de vida selvagem são feitos por homens vindos de Inglaterra, porque foi assim que se montou a indústria”, disse Faith Musembi. “Foi assim que funcionou até Rainhas. As equipas caíam de paraquedas no Quénia, porque somos abençoados com incríveis áreas selvagens, filmavam e iam-se embora.”

A série encabeçada por Vanessa Berlowitz e Chloe Sarosh, que demorou quatro anos a fazer, mudou tudo isto. Faith Musembi começou por ser treinada pelas veteranas Justine Evans e Sophie Darlington e acabou como produtora e realizadora do sétimo episódio, uma viagem sobre as mulheres por trás da série. “Sou a primeira queniana a produzir um episódio de história natural”, frisou Musembi. “Estou superorgulhosa de tudo o que conseguimos.”

A máquina montada para esta série partiu o molde de todas as outras. As cineastas veteranas foram emparelhadas com jovens operadoras de câmara com pouca experiência e ainda menos oportunidades, tornando-se mentoras. A equipa foi buscar produtoras cujas carreiras se tinham despenhado quando ficaram grávidas, montando uma partilha de operações que é pouco comum na indústria. Homens experientes do sector aliaram-se ao projeto para auxiliarem e darem formação a uma nova geração de cineastas. Equipas locais foram treinadas e trazidas para as histórias como parte integral do processo. Faith Musembi trouxe ao de cima o conhecimento e experiência das mulheres locais, falando-lhes na sua própria língua.

“A Faith trouxe esta riqueza e estas camadas que nos tinham escapado até este ponto”, sublinhou a diretora de fotografia Sophie Darlington, uma das mulheres mais experientes na indústria. “Tínhamos ido a estes países contar as suas histórias por eles. É tão arrogante, quando se olha para trás. Faz todo o sentido que tenha mudado.”

Como mentora, Darlington trabalhou com Faith Musembi, Erica Rugabandana, Tania Escobar e Erin Ranney, cujos percursos e dedicação são mostrados no último episódio da série.

“Um dos problemas é a representação”, apontou Erin Ranney, que se licenciou em Ciência de Ecologia da Vida Selvagem e tem a tatuagem de um urso no braço esquerdo, o animal que a motivou a perseguir a carreira dos seus sonhos. “Se não vemos pessoas como nós no emprego que queremos fazer, parece menos possível e não temos confiança suficiente para tentar”, continuou. Para ela, Justine Evans e Sophie Darlington eram as exceções num campo dominado por homens. “Quando não temos aquela confiança, somos vistos pelos executivos como um risco.” O material é extremamente caro, as produções são morosas e complexas e os líderes procuram pessoas com experiência – que só se ganha quando aparecem precisamente essas oportunidades. “Há também a questão da camaradagem. Se são todos operadores de câmara homens, tornam-se camaradas e partilham conhecimento e informação. A experiência é passada nos mesmos grupos.”

A diretora de fotografia Justine Evans, que tem décadas de experiência e é uma das mentoras da série, frisou que o campo se tornou muito tecnológico, mas não há uma estrutura para fazer formação na indústria. “Podemos ficar para trás em seis meses, totalmente obsoletas”, indicou. Rainhas, salientou a veterana, foi montada de forma inovadora desde o início, envolvendo muito mais as diretoras de fotografia do que uma produção tradicional deste género televisivo. “Isto contrariou as tendências em todas as direções”, descreveu, mencionando o impacto de contratar pessoas locais. “Nestas viagens eram sempre cinco ou seis homens e eu a única mulher. E agora tem sido diferente.”

A nova geração de cineastas, a quem a série Rainhas deu uma oportunidade que antes não existia, está a tentar dar continuidade e empurrar as fronteiras que lhes foram fechadas anteriormente. “Isto já acendeu um fogo. Só saber que foi feito mostra que as vozes das mulheres são importantes e devem ser ouvidas”, frisou Erin Ranney. “Agora temos uma comunidade de mulheres que querem continuar o progresso.” É a organização Girls Who Click, que dá treino e mentoria a aspirantes femininas entre os 13 e os 30 anos para que possam entrar num campo dominado por homens e contribuir para os esforços de conservação em todo o mundo.

Drama, perigo e esperança
A experiência de ver Rainhas do Reino Animal é bastante diferente dos programas de história natural a que estamos habituados. Aqui há música de Sia, Santigold e M.I.A. O trailer transporta a audiência para cenários incríveis ao som de You Should See Me in a Crown, de Billie Eilish. A banda sonora original, composta por Morgan Kibby, é fresca e o tema principal, da autoria de Alewya, é tão vibrante quanto as cores da floresta tropical do Congo onde vivem os chimpanzés-pigmeus do segundo episódio.

“Normalmente temos um compositor, mas com a incrível supervisora Sarah Bridge e com Morgan Kibby, a música que se ouve aqui torna óbvio que não estamos a ver o programa de um velho homem branco”, apontou Sophie Darlington. “Adoramos David Attenborough, mas Angela Bassett é o caminho a seguir.”

Os ângulos, o ritmo da história e a narrativa, contada num tom majestoso e provocador por Bassett, tornam Rainhas uma série à parte. São histórias dramáticas, quase uma novela do mundo selvagem. As personalidades dos animais são realçadas, há perigos constantes e uma apreciação clara pela estratégia das fêmeas que lideram os seus grupos – e das que querem liderar.

“As hienas vão fazer explodir as vossas cabeças”, apontou Sophie Darlington. “A testosterona numa hiena torna-a enorme e poderosa”, continuou. “Ninguém vai ter relações com uma hiena a não ser que ela queira.”

Darlington considerou também que os chimpanzés-pigmeus e as suas rainhas vão tocar as pessoas. “Ver como elas mantêm o grupo unido vai surpreender muita gente”, afirmou. “O que procuramos são subtilezas porque, muitas vezes, a liderança feminina é subtil”, salientou. “Os machos lutam, mas como lidera uma matriarca elefante? Como se capta a liderança de uma loba alfa da Etiópia?”, questionou. “É algo que não tem sido suficientemente celebrado na vida selvagem. São os pequenos momentos que muita gente não vê e que têm muito peso.”

O buzz em torno da série tem sido tal que já há outras produtoras a quererem fazer coisas similares e incluir novas vozes. “O que estamos a dizer é que há diferentes formas de liderar e que não se devem engavetar fêmeas – e mulheres – como tendo apenas soft skills”, apontou Vanessa Berlowitz. “Eu queria mesmo ter um modelo de produção completamente diferente, coletivo”, reiterou. “As grandes séries não são feitas por líderes individuais do patriarcado.”

Artigo publicado na edição do NOVO de sábado, dia 9 de março

Ana Rita Guerra, em Los Angeles