Rui Nabeiro: em Campo Maior chamavam-lhe “comendador” mas insistia que o tratassem por “senhor Rui”

Quem conheceu bem o seu percurso dizia: “Só se percebe a vida de Rui Nabeiro se se entender como era o mundo na zona raiana na época em que ele nasceu”. Este artigo sobre o empresário, que faleceu este domingo aos 91 anos, foi publicado no Jornal Económico em Outubro de 2020, inserido na escolha de 30 personalidades que tinham marcado, até essa altura, os últimos 25 anos do país.

Chamam-lhe “o comendador” em Campo Maior, mas insiste que o tratem por “senhor Rui”. Tem 89 anos e a 4.ª classe, e é o “rei do café”. Militou no PS e sempre se considerou um homem de esquerda. Muito se tem escrito sobre Rui Nabeiro, em biografias oficiais, entrevistas e histórias de vida. Quem conheceu bem o seu percurso dizia: “Só se percebe a vida de Rui Nabeiro se se entender como era o mundo na zona raiana na época em que ele nasceu.”

A questão do desenvolvimento da região raiana não é apenas incontornável para entender a vida e obra de Rui Nabeiro: é pertinente para vários milhões de portugueses e espanhóis. Foi, aliás, o centro dos trabalhos realizados na 31.ª Cimeira Luso-Espanhola, realizada ontem – a 10 de Outubro de 2020 –, na Guarda, onde os governos de Portugal e Espanha, respectivamente liderados por António Costa e Pedro Sánchez, chegaram a acordo sobre a ECDT – Estratégia Comum de Desenvolvimento Transfronteiriço para os próximos anos.

Esta estratégia visa o futuro de mais de 5 milhões de pessoas que – tal como Rui Nabeiro – vivem ao longo daquela que é considerada uma das maiores fronteiras da Europa. Entre os benefícios agora previstos para os habitantes da raia contam-se o estatuto do trabalhador transfronteiriço, um cartão de saúde que permite o acesso a tratamentos dos dois lados da fronteira ou a cooperação entre serviços públicos como o 112, numa estratégia que abrange 1.551 freguesias portuguesas, ou 62% do território português, onde vivem mais de 1,6 milhões de portugueses. No lado espanhol estão 1.231 municípios e 3,3 milhões de espanhóis que vivem em Badajoz, Cáceres, Huelva, Ourense, Pontevedra, Salamanca e Zamora, ou seja, em 17% da superfície espanhola.

É neste universo territorial que se centrou, na década de 30 do século passado, o arranque da actividade empresarial de Rui Nabeiro. Voltando à questão inicial: como era então a vida raiana na época em que “o comendador” – o “senhor Rui” – nasceu?

Mundo duro da zona raiana nos anos 30

Vamos por partes. Primeiro, é preciso entender o mundo duro de quem nasceu na zona raiana, em Portugal, nos anos 30, quando a economia mundial sofreu os constrangimentos da Grande Depressão norte-americana, iniciada em 1929 e, de certa forma, de quem também tenha vivido os racionamentos e a tensão política e social decorrentes da Segunda Guerra Mundial, entre 1939 e 1945 – em que Portugal não participou, ao abrigo de um estatuto de neutralidade. As pessoas nascidas nessa década de 30 terão acompanhado, enquanto jovens adultos – como aconteceu com Rui Nabeiro –, o posterior desenvolvimento do Programa de Recuperação Europeia que decorreu do aprofundamento da doutrina económica do Presidente Harry Truman, sucessor de Franklin Roosevelt.

Portugal, entre as décadas de 30 e 50 do anterior século, foi um país que viveu particularmente centrado no mundo português, designando as ex-colónias como territórios ultramarinos – uma conjuntura que fez com que o país tivesse vivido quase à margem do principal plano que os EUA prepararam para apoiar a reconstrução dos seus aliados europeus, económica e socialmente devastados no pós-guerra, beneficiários da conhecida iniciativa de revitalização económica que recebera o nome do secretário de Estado dos EUA George Marshall.

Depois de Abril de 1948, o Plano Marshall passou a substituir, durante uma fase inicial de quatro anos (até 1952), o anterior plano, que tinha sido baptizado com o nome do secretário de Estado do Tesouro dos EUA Henry Morgenthau, destinado a controlar o crescimento da Alemanha – depois de ter retalhado o país em várias zonas, uma internacional, outra a norte, outra a sul, e as restantes anexadas pela URSS, pela Polónia e pela França, com o objectivo político fixado pelos EUA de inviabilizar a reconstituição do Estado nazi na Alemanha.

Assim, os EUA avançaram com uma ajuda, em 1948, de 14 mil milhões de dólares, o que corresponderá, em 2020, a cerca de mais de 120 mil milhões de dólares, entregues aos países europeus que integraram a OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico.

Os EUA pretendiam desenvolver Estados europeus democráticos, com dinâmicas economias de mercado (em sentido inverso à economia planificada da ex-URSS), com indústrias modernas, sem barreiras comerciais, captando investidores internacionais e promovendo a criação de sindicatos fortes (à semelhança dos labor e trade unions norte-americanos promovidos pela US Labor Law de 1935, o designado National Labor Relations Act), para fazer prosperar a Europa e travar o crescimento do bloco de países comunistas, que seguiam as orientações soviéticas.

Entre o Estado Novo de Salazar e a Espanha de Franco

É neste enquadramento europeu que, em Portugal, surgiu e se desenvolveu a economia corporativa do Estado Novo de Salazar, duplamente condicionado pelas tensões do nacional-socialismo alemão e pelas tensões ibéricas criadas pela Falange de José António Primo de Rivera (representante do fascismo espanhol) até à Guerra Civil de Espanha (entre 1936 e 1939), que se saldou na vitória dos nacionalistas espanhóis, consolidando Francisco Franco como generalíssimo e caudilho de Espanha.

É também neste enquadramento que toda a região fronteiriça portuguesa tentou desenvolver actividades económicas que assegurassem o sustento de famílias praticamente acantonadas num interior distante de Lisboa e do Porto, onde não existia o actual conceito de economia transfronteiriça e as actividades que abrangiam os dois lados da linha de fronteira eram essencialmente catalogadas como contrabando.

Ou seja: foi neste tempo de racionamento de manteiga, açúcar, arroz e bacalhau que nasceu Manuel Rui Azinhais Nabeiro (Campo Maior – 28 de Março de 1931), o maior empresário português de café na zona raiana, hoje tratado pelos conterrâneos como “o comendador”, ou melhor, por “senhor Rui”. A experiência de vida de Rui Nabeiro é vasta e a sua capacidade de iniciativa empresarial ficou comprovada desde tenra idade – aos 12 anos, quando começou a trabalhar –, mas, sobretudo, a partir de 1961, data em que fundou a empresa Delta Cafés, que dispensa apresentação para o comum dos portugueses.

Delta, marca com maior índice reputacional

Note-se que a Delta Cafés nunca parou de crescer até aos dias de hoje, sendo a marca com maior índice reputacional no mercado português, segundo o estudo “Global RepScore Pulse”, da responsabilidade da consultora OnStrategy, em parceria com a Corporate Excellence Foundation, granjeando o estatuto de líder na excelência, atendendo a que a Delta teve a classificação de 86,70 pontos num máximo de 100, colocando-se, assim, à frente da Google e da Olá.

Recuamos novamente aos anos 40 do século passado – quando Rui Nabeiro fez 12 anos, a altura em que começou a trabalhar, ajudando a família. À mãe, Rui Nabeiro deu apoio na pequena mercearia da sua família, chamada “Alimentação e Salsicharia Sra. Maria Azinhais”. Ao pai, Manuel Nabeiro, e aos tios, Joaquim dos Santos Nabeiro (também conhecido como Joaquim d’Olaia) e Vitorino Silveira, auxiliou no processo da torra do café, transportando com um carrinho de mão, de cada vez, quatro sacos de 20 quilos de café verde, entre a estação dos caminhos-de-ferro e a torrefacção.

Na altura sentiam-se em Campo Maior os tempos particularmente difíceis vividos no pós-Guerra Civil Espanhola, agravados pelas restrições da Segunda Guerra Mundial. Na sua biografia “O Homem: Uma Obra, a de Rui Nabeiro”, publicada em 2002, desabafou: “Quase não tive infância. Não fiz outra coisa senão trabalhar.”

Quando o pai morreu, Rui Nabeiro tinha 17 anos. Apesar de ser ainda muito jovem, foi chamado a assumir a orientação da torrefacção familiar um ano depois de o pai ter falecido. Como o mercado local era excessivamente pequeno, procurou dinamizar as vendas de café em Espanha, primeiro com a marca Cubana e, depois, com a Torrefacção Camelo – inspirada na marca de tabaco Camel –, uma sociedade que fez com os seus tios, em que foi gerente.

O mercado espanhol foi imprescindível para manter a actividade no sector do café, porque os clientes espanhóis chegaram a representar a quase totalidade das vendas que então conseguiam concretizar. O percurso de Rui Nabeiro mudou em 1961, quando criou, com a sua mulher e os filhos, a firma Manuel Rui Azinhais Nabeiro, Lda., que lançou a Delta Cafés, montada com apoio de uma torrefacção de café e de um armazém destinado a fornecer mercearias.

Primeira contratação: três militares reformados

Foi o verdadeiro início do seu império. No arranque da Delta Cafés contratou três militares reformados, que pouco ou nada percebiam de café, e instalou-se num armazém com 50 metros quadrados, utilizando duas máquinas de torra.

O mais complicado foi vender café, pelo preço do produto – porque os portugueses procuravam produtos ainda mais baratos, o que levou Rui Nabeiro a comercializar cevadas – e porque a concorrência fazia marcações cerradas a quem entrava no mercado, sendo as marcas mais “ferozes” a Sical, a Nicola e a Chave d’Ouro. Afinada a oferta adequada ao comprador português, o negócio da Delta Cafés não parou de crescer nos anos 70.

A rede de distribuição da Delta rapidamente ganha cobertura nacional e, em 1963, abre o primeiro entreposto em Lisboa, seguindo-se outro no Porto, em 1964. O crescimento da empresa prosseguiu, abrindo mais 22 instalações locais, de Mirandela a Faro, sem esquecer os Açores e a Madeira.

A sua influência local também cresceu em proporção directa com a evolução do negócio, sendo nomeado três vezes presidente da Câmara Municipal de Campo Maior, em 1962, em 1972 e em 1977.

Na primeira vez incompatibilizou-se rapidamente com a equipa autárquica. E, na segunda vez, deixou o cargo na sequência de um confronto com o então governador civil de Portalegre, embora ainda tenha realizado trabalho autárquico e recebido na câmara municipal figuras do regime, entre as quais Baltasar Rebelo de Sousa – pai de Marcelo Rebelo de Sousa –, que então era ministro das Corporações de Marcello Caetano. Mas, na terceira, eleito pelo Partido Socialista, em 1977, acabou por ser reeleito duas vezes, pelo que só deixou o cargo em 1986.

Da Novadelta à Nabeirogest

Entretanto, em 1982 criou a Novadelta e, em 1984, investiu numa nova torrefacção, que foi então a maior a nível ibérico. Quatro anos depois constituiu a holding Nabeirogest, que ainda hoje controla os investimentos realizados na agricultura e no vitivinícola, na distribuição alimentar, no sector das bebidas, no retalho automóvel, no comércio imobiliário e na hotelaria.

Em diversas entrevistas que deu, Rui Nabeiro nunca escondeu o orgulho por ter conseguido manter um grupo 100% familiar, reconhecendo, com o passar dos anos, que teve de delegar responsabilidades de gestão nos filhos e nos netos, que assim dão continuidade aos vários negócios que criou.

Em 1995, Mário Soares atribuiu-lhe o grau de comendador da Ordem Civil do Mérito Agrícola, Industrial e Comercial Classe Industrial, e, em 2006, Jorge Sampaio distinguiu-o como comendador da Ordem do Infante D. Henrique.

2007 foi o ano em que inaugurou o Centro Educativo Alice Nabeiro, respondendo assim às necessidades extra-escolares sentidas pelas crianças de Campo Maior. Patrocinada pela Delta, a Universidade de Évora criou em 2009 a Cátedra Rui Nabeiro, consagrada à investigação, ensino e divulgação científica da biodiversidade.

Filho de Manuel dos Santos Nabeiro e de Maria de Jesus Azinhais, é casado com Alice do Carmo Gonçalves Nabeiro – que conheceu na escola – e é pai de Helena Maria Gonçalves Nabeiro Tenório e de João Manuel Gonçalves Nabeiro.

Desde 1961, Rui Nabeiro é presidente do Grupo Nabeiro e da Delta Cafés. Foi nomeado presidente honorário do Sporting Clube Campomaiorense, que contou com a Delta Cafés como patrocinador, presidido pelo seu filho, João Nabeiro.

Passagem de testemunho

No Grupo Nabeiro, Rui Nabeiro é o presidente. Como administradores tem a mulher, Alice Nabeiro, os dois filhos, João Manuel e Helena (casada com o cavaleiro tauromáquico Joaquim Bastinhas – já falecido –, pai de Marcos Nabeiro Tenório, que começou a montar a cavalo aos cinco anos e começou a tourear aos 11, estreando-se na praça de Elvas aos 14 anos), e três dos quatro netos, Ivan, Rui Miguel e Rita.

Marcos, o neto mais novo de Rui Nabeiro, não seguiu os negócios da família, dedicando a vida ao toureio, com actuações em Portugal, Espanha e América do Sul. Em 2015, Marcos casou-se com Dália Madruga, antiga apresentadora de televisão, em Elvas. Dália trata da comunicação e marketing do Centro de Ciência do Café desde 2013.

O neto mais velho, Rui Miguel, é responsável pela área de inovação da Delta Cafés. Promotor da criação da “Delta Q” em resposta à Nespresso, foi igualmente quem apostou na plataforma electrónica Alibaba para colocar o seu café nos mercados asiáticos. Ivan, filho mais velho de Helena, especializou-se na área financeira e na responsabilidade social. E Rita centrou a sua atenção na vitivinicultura, gerindo a Adega Mayor desde 2012.