Hoje é frequente associar IA a chatbots e aos aumentos de produtividade que trazem em ambiente de trabalho de secretária, afetando dezenas de profissões, de assistentes de escritório a advogados. Mas o trabalho que a Covariant está a desenvolver mostra toda uma outra dimensão de IA, uma dimensão já muito mais próxima do imaginário que décadas da melhor ficção científica nos foram oferecendo, em que a IA em chão de fábrica das empresas industriais mais desenvolvidas não é senão um pequeno aperitivo.

É frequente trocarmos impressões com líderes de empresas de base industrial e questioná-los sobre as maiores preocupações que têm para o futuro. Há dois anos, era raro que o investimento em IA no chão de fábrica surgisse como uma dessas preocupações, mas, hoje, o panorama é completamente diferente. É frequente encontrar quem já tenha sistemas a funcionar e é opinião unânime que é, de longe, a área com mais investimento a curto e médio prazo, sem retorno comparável. Ou seja, mais do que ChatGPT no backoffice, a IA em chão de fábrica está a dominar o modelo de negócio das empresas industriais em Portugal.

Esta situação é ainda mais evidente nas economias mais desenvolvidas, marcadas pela presença das maiores e mais sofisticadas unidades industriais, sobretudo a maioria que se dedica a produtos com altos níveis de exigência, como a automóvel, os aparelhos industriais ou domésticos, a instrumentação ou microprecisão. O estado de implementação de IA nestas unidades está mais avançado e permite à indústria nacional aceder a soluções testadas numa larga gama de necessidades.

Um dos desafios mais interessantes neste contexto é a aplicação da IoT inteligente. O conceito de Internet of things, ligação online dos vários elementos do chão de fábrica duma unidade, tem décadas de desenvolvimento, mas os resultados nunca foram o que a teoria prometia. Agora, com a incorporação de IA no modelo, a evolução é radical.

A imprensa norte americana tem vindo a dedicar atenção crescente a este tema e procurar detetar tendências emergentes falando com startups. Um dos melhores exemplos vem do estudo do The New York Times sobre a Covariant, startup de robótica que está a desenvolver tecnologia para robôs em modo machine learning, ou seja, que aprendem com a sua própria experiência – tal como acontece com a aplicação de IA vulgarizada em chatbots. Ao combinar dados sensoriais e de câmara com as enormes quantidades de texto usadas para treinar chatbots como o ChatGPT, a Covariant desenvolveu tecnologia de IA que oferece aos robôs industriais uma compreensão muito mais ampla do que se passa à sua volta. Por outras palavras, a velha promessa da IoT acaba por ser finalmente cumprida.

Os chatbots, os geradores de imagem e outros instrumentos de inteligência artificial que operam no mundo digital são hoje de conhecimento comum e com uma utilização vulgarizada nos consumidores em geral, como é o caso da aplicação ChatGPT, que tantos de nós descarregaram para o seu telemóvel ou laptop. Por essa razão, empresas recentes como a OpenAI ou a Midjourney ganharam tanta notoriedade e valor (à data de hoje, 80 e 10 bi USD, respetivamente).

Agora, a Covariant dá um novo passo transportando esta tecnologia para robôs industriais, permitindo que possam pegar, mover e classificar peças enquanto são transportadas por armazéns e centros de distribuição. Mas o objetivo da empresa é mais ambicioso: ajudar os robôs a compreenderem o que se passa à sua volta e a decidirem o que devem fazer a seguir, em processo de aprendizagem contínuo. A tecnologia da Covariant oferece ainda aos robôs uma ampla compreensão da língua inglesa, permitindo que um operário possa dialogar com eles como se estivesse a conversar com o ChatGPT. São menos polidos nas maneiras, não são dourados nem têm forma humana, mas são, na essência, o 3-CPO que George Lucas nos ofereceu há tantas décadas na série Star Wars.

Apesar do entusiasmo, há que ter em atenção que a tecnologia está em desenvolvimento, não é perfeita. Mas é um sinal claro de que os sistemas de IA que impulsionam chatbots online e geradores de imagem também alimentarão máquinas em armazéns, estradas ou edifícios. A Covariant, apoiada por US$ 222 milhões em financiamento (de facto, ainda uma startup face à escala das tecnológicas de maior sucesso de hoje), especializou-se no desenvolvimento de software para robôs industriais e está a trabalhar na implementação da tecnologia em robôs de armazém, o seu core business. A base da tecnologia pode levar a empresa a ter, no futuro, uma palavra séria a dizer em aplicações mais sofisticadas como, por exemplo, viaturas sem condutor.

Os sistemas de IA que impulsionam chatbots e geradores de imagem, denominados redes neurais, identificam padrões em grandes quantidades de dados e, a partir daí, podem aprender a reconhecer palavras, sons e imagens – ou até mesmo gerá-los por sua própria iniciativa. Foi assim que a OpenAI construiu o ChatGPT, dando-lhe o poder de responder instantaneamente a perguntas, escrever artigos, responder a emails ou programar.

Estão a ser desenvolvidos novos sistemas que podem aprender com diferentes tipos de dados ao mesmo tempo. Ao analisar uma coleção de fotos e as legendas que descrevem essas fotos, por exemplo, um sistema pode compreender as relações entre as duas. A OpenAI usou esse sistema para construir o Sora, o seu novo gerador de vídeo, e a Covariant usa técnicas semelhantes no seu sistema de robôs de triagem espalhados por armazéns em todo o mundo. Passou anos a recolher dados – de câmaras e outros sensores – que mostram como os robôs funcionam e que os ajudam a entender o mundo físico à sua volta e a interagir com ele.

A tecnologia, denominada RFM ou Robotics Foundational Model, não está livre de cometer erros similares aos cometidos pelos chatbots. Embora o robô compreenda muitas vezes o que as pessoas lhe pedem, há sempre a possibilidade de não o fazer – por exemplo, soltar objetos de forma imprevista de vez em quando. Considera-se que a tecnologia pode ser útil em armazéns e outras situações em que os erros são aceitáveis, mas é, naturalmente, mais difícil e arriscado correr estes riscos em fábricas e noutras situações potencialmente perigosas. À medida que as empresas aperfeiçoam este tipo de sistema com bases de dados cada vez mais ricas, é legítimo esperar que a tecnologia melhore exponencialmente, as probabilidades de erro diminuam e o sistema se torne mais fiável.

É muito interessante notar como esta aplicação de IA à programação de robôs se compara com o passado. Normalmente, os robôs eram programados por engenheiros para tarefas básicas e repetitivas, como executar o mesmo movimento preciso – pegar numa caixa de determinado tamanho ou fixar um rebite num ponto específico do para-choques traseiro de um automóvel. Uma função importante, mas limitada; os robôs não estavam preparados para lidar com situações inesperadas ou aleatórias.

Ao aprender com informação digital – centenas de milhares de exemplos do que acontece no mundo físico real -, os robôs podem começar a ter capacidade para lidar com o inesperado. E quando esses exemplos são emparelhados com a linguagem, os robôs também podem responder a comandos ou comentários de texto ou voz, exatamente como faria um chatbot. Neste contexto, teremos acesso, num futuro próximo, a robôs com a agilidade e versatilidade que já nos oferecem chatbots ou geradores de imagens. E que conversam connosco.

Como dizia o presidente de uma empresa industrial portuguesa posicionada no top-3 mundial na sua área: “A inteligência artificial em IoT é uma revolução muito maior do que esperávamos. Ainda não vislumbramos as soluções e os benefícios que vai aportar. Estamos conscientes de que exige um enorme investimento em tempo e dinheiro, mas com o nosso posicionamento mundial temos de estar na linha da frente desta revolução – não temos alternativa, mas estamos seguros de que vai trazer um bom retorno financeiro.”

Empresário, gestor e consultor

Artigo publicado na edição do NOVO de sábado, dia 16 de março