Reviravolta nos metadados abre porta à libertação de arguidos
Inconstitucionalidade de normas da lei dos metadados lançou o caos no sistema judicial, colocando milhares de processos em risco. No dia em que o acórdão for publicado em Diário da República, arguidos em prisão preventiva podem voltar a sair em liberdade, alerta procurador da República. Constitucionalista teme que lei tenha sido usada em excesso.
O Tribunal Constitucional (TC) considerou em Abril inconstitucionais as normas da chamada lei dos metadados que determinam a conservação dos dados de tráfego e localização das comunicações pelo período de um ano, visando a sua eventual utilização na investigação criminal. A lei é aplicada em Portugal desde 2008, na sequência de uma directiva europeia de 2006, que teve como objectivo fortalecer os meios das autoridades dos Estados-membros no combate ao terrorismo.
Na prática, a decisão do TC impede as forças policiais de acederem aos metadados para fins de investigação criminal, uma vez que entende que guardar estes dados de forma generalizada “restringe de modo desproporcionado os direitos à reserva da intimidade da vida privada e à autodeterminação informativa”. A decisão gerou polémica, com juristas, constitucionalistas e procuradores a alertarem que pode colocar em causa 14 anos de acção penal.
O problema não é de agora. Em 2014, o próprio Tribunal de Justiça da União Europeia determinou que a directiva era inválida por infringir “o direito fundamental ao respeito pela vida privada e à protecção de dados pessoais”. Constitucionalistas e magistrados garantem ter alertado o Ministério da Justiça para o problema, tendo inclusive, em 2019, a provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral, instado Francisca Van Dunem, na altura ministra da Justiça, a mudar a lei.
Mas, afinal, o que são os metadados? São um conjunto de dados que permitem obter determinadas informações, como a identidade do utilizador do telemóvel ou computador, o destino e duração das chamadas e respectiva localização. Não permitem saber o conteúdo das comunicações em si, mas sim o rasto que uma pessoa deixa quando faz comunicações ou utiliza o tráfego dos telemóveis. “Através do acesso aos metadados é possível saber mais sobre a vida de uma pessoa do que acedendo ao conteúdo esporádico de uma conversa telefónica ou um email. Com os metadados, sabe-se onde vai, com quem fala, os hábitos diários. Traçam-lhe o perfil”, explica Teresa Violante, constitucionalista, ao NOVO.
Sem acesso aos metadados há dois problemas que se levantam: todos os crimes julgados desde 2008 até agora com base nos referidos metadados podem cair por terra e acrescem dificuldades na investigação de vários crimes.
“Os dados das comunicações electrónicas são imprescindíveis para vários tipos de crime. Por exemplo, o IP [número que identifica o computador] da origem de uma comunicação, um dos dados aqui em causa, é mesmo imprescindível para tudo o que é crime cometido através da internet. Sem isso não haverá forma de dar os passos seguintes para chegar à identificação do autor do crime”, explica ao NOVO Rui Cardoso, procurador da República e ex-presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público. Mas nem só para a investigação de cibercrimes os metadados são fundamentais. “Há outros tipos de dados que têm uma importância crucial, nomeadamente em crimes de natureza organizada, violenta, terrorismo, roubos organizados, sequestros e alguns tipos de crimes sexuais. São importantíssimos para estabelecer relações entre as pessoas e para determinar onde estavam. Apesar de, teoricamente, não se poder dizer que é impossível chegar à identidade dos autores do crime [sem os metadados], fica muito difícil. Em alguns casos, na prática, o resultado vai ser o mesmo: não se conseguirá determinar quem foi ou não se conseguirá recolher prova suficiente para permitir a acusação e, depois, a condenação dessa pessoa”, alerta.
O procurador esclarece ainda que para aceder a dados de tráfego, ou seja, quem fala com quem, durante quanto tempo ou localização, as autoridades necessitavam da autorização de um juiz.
Perante a decisão do Tribunal Constitucional, a procuradora-geral da República, Lucília Gago, remeteu uma arguição de nulidade da decisão ao TC, mas esta foi arrasada pelos juízes do Palácio Ratton, que consideraram manifestamente improcedentes os argumentos invocados.
Efeitos retroactivos
A questão que agora permanece em aberto é se a decisão do Tribunal Constitucional tem ou não efeitos retroactivos. O primeiro-ministro, António Costa, defendeu na última segunda-feira, no final de uma reunião com o Conselho Superior de Segurança Interna, que não existe a possibilidade de reabrir os casos judiciais das condenações de arguidos baseadas em metadados, mas esse não é o entendimento dos constitucionalistas.
“A decisão tem efeitos retroactivos porque a lei é inconstitucional desde a sua origem. Há dois tipos de inconstitucionalidade: a originária [lei já era inconstitucional quando foi feita] e a superveniente [não era quando foi feita, mas tornou-se]. Neste caso, a lei era inconstitucional desde a origem. Portanto, vai afectar os casos que já transitaram em julgado porque é uma inconstitucionalidade originária”, explica ao NOVO o constitucionalista Jorge Miranda. “Se é tomada uma decisão com base numa lei inconstitucional, essa decisão não pode continuar a produzir efeitos”, realça.
Da mesma opinião é Jorge Bacelar Gouveia que, apesar de considerar a decisão do Constitucional “errada e exagerada”, não tem dúvidas nesta questão. “É verdade que o TC não declarou a restrição dos efeitos da inconstitucionalidade para o futuro mas, mesmo que o fizesse, seria inútil porque se aplica sempre a lei mais favorável aos condenados. Portanto, esse pedido é inútil. A declaração terá sempre efeitos retroactivos”, sustenta o constitucionalista.
Por outro lado, à semelhança do primeiro-ministro, Rui Cardoso considera que os casos julgados, em que há uma decisão definitiva, estão salvaguardados. Mas no que diz respeito aos casos pendentes, ou seja, que carecem ainda de uma decisão final transitada em julgado, a prova recolhida através dos metadados não poderá mais ser utilizada.
“Todos estes dados e toda a prova que estes dados permitiram obter ficam sem efeito”, explica. Nos casos de arguidos em prisão preventiva – que só pode ser aplicada se houver fortes indícios da prática de crime -, se estes deixarem de existir por não ser possível utilizar essa prova, eles “devem ser imediatamente soltos”. “E isso é algo que vai acontecer no dia em que o acórdão for publicado em Diário da República”, esclarece, acrescentando que “há muitos processos que vão deixar de ter fortes indícios, porque ou tinham esta prova ou esta e outra dela dependente.”
Teresa Violante ressalva que, nos casos transitados em julgado, é necessário perceber se a prova que foi produzida com base nas armas declaradas inconstitucionais foi uma prova determinante e absolutamente decisiva para as condenações. “Diria, em abstracto, que a maior parte dessas decisões não estão alicerçadas apenas nos metadados. Agora, a avaliar pelas reacções, que são tão despropositadas face ao enquadramento jurídico da questão, começo a suspeitar que, se calhar, temos uma investigação criminal que está fundamentalmente apoiada em metadados quando estes existem para prevenir e, a título muito excepcional, punir”, critica.
O que se segue?
A Ordem dos Advogados aconselhou todos os advogados a tomarem, em todos os processos, as iniciativas consideradas necessárias à defesa dos seus constituintes. O advogado de António Joaquim, antigo amante de Rosa Grilo, confirmou ao Correio da Manhã que vai avançar com um recurso extraordinário de revisão junto do Supremo Tribunal de Justiça, podendo este ser o primeiro de muitos.
Antes de o Constitucional ter decidido “não tomar conhecimento do requerimento” de Lucília Gago, António Costa tinha admitido a possibilidade de uma “revisão constitucional cirúrgica” mas, após reunir-se com o Conselho Superior de Segurança Interna e ouvir as secretas e as forças de segurança, afastou a opção e anunciou que vai apresentar uma proposta de lei para alterar a actual lei dos metadados.
“É necessário agora proceder à elaboração de um novo dispositivo legal que respeite os limites do Tribunal Constitucional e também os limites da decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia”, disse.
Na passada quarta-feira, 18 de Maio, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, fez saber que, após eventual aprovação do diploma na Assembleia da República, vai pedir ao Tribunal Constitucional “uma definição sobre a constitucionalidade da lei” para que não existam dúvidas.