Três filmes e mais uma pequena participação em 2023 na série Rabo de Peixe. Está a ser um bom ano.
Está a ser um ótimo ano. Aliás, desde o fim da pandemia, tem sido ótimo a nível de trabalho. Tenho duas séries para sair e uma longa-metragem para estrear no próximo ano em relação à qual estou muito curioso porque o processo de trabalho foi incrível.

Pode dizer alguma coisa sobre isso?
Posso. É do Pedro Cabeleira. É a segunda longa dele. Fez o Verão Danado há uns anos atrás, um filme muito fixe que ganhou Locarno. Adorei o processo de trabalho com ele. Foi muito especial, e tenho o Irreversível do Bruno Gascon para a RTP. E a Madrugada Suja, também para a RTP. Por estrear, tenho isso.

Está em três séries que ajudaram a falar-se dos atores portugueses na Netflix: White Lines, Glória e Rabo de Peixe. Sente privilégio?
Sem sombra de dúvida. Não só por ser a Netflix, que é incrível, como temos uma companhia desse nível que vem filmar a Portugal. Só o facto de trazer trabalho para Portugal justifica tudo.

Tem ampliado o mercado para os atores portugueses?
Sem dúvida, mas acho que o acordo que foi feito quando eles iniciaram a vinda para cá poderia ter sido melhor. Houve aí uns abaixo-assinados, na altura, no que toca a cotas e valores que eles iriam retribuir para reinvestimento em Portugal. Não foi inteligente a decisão tomada.

De que parte é que não foi inteligente?
Da parte da comunidade artística em Portugal. Na minha opinião, assinou o documento errado. Se formos comparar com França, o mínimo de reinvestimento aprovado foi muito superior a Portugal e não tenho dúvidas de que a Netflix tinha vindo de qualquer forma. Mas pronto, tudo bem. Mas sou um privilegiado, sem sombra de dúvida. Mais do que tudo porque trabalhei com o Tiago Guedes. Depois, porque se trata de um nível de visibilidade muito raro em produções portuguesas.

Portugal exibe condições fantásticas, tem muita coisa boa.
O talento é incrível, mas o respeito no que toca aos artistas por parte dos nossos governantes não acho que seja… mas temos muitos talentos e acho que isso vai trazer visibilidade. O sucesso do Rabo de Peixe é incrível. Para dar um exemplo, White Lines não foi renovado e a Netflix cada vez menos renova temporadas nas séries, mas o Rabo de Peixe foi, de facto, um sucesso… Eles não revelam os números, mas deve ter sido um sucesso ao nível que justificasse para eles reinvestir e eu acho isso incrível.

Acha então que há um antes e um depois de Rabo de Peixe para a ficção portuguesa?
Acho, acho. O facto de terem vindo para cá, sabiam o que estavam a fazer a nível financeiro, sem qualquer dúvida. Eles têm interesse em poderem gabar-se de que investem e produzem conteúdo a nível global. Mas acho que foi uma surpresa e veio afirmar as possibilidades do audiovisual e da criação artística portuguesa.

Deu vida e voz a Amadeo de Souza-Cardoso. Como se preparou sem registos em áudio e vídeo do pintor português?
Foi libertador. Não queria estar muito preso. Foi libertador porque eu, mesmo que tivesse esses registos, iria prender-me muito pouco a trejeitos ou fisicalidades. Acho que a partir do momento em que se decide fazer um filme, seja do ponto de vista do argumentista, do realizador ou do ator, estamos a fazer uma leitura de quem era a pessoa. Eu acho que interessa muito pouco ser uma coisa 100% fiel a quem era a pessoa, e o facto de não ter nenhum registo de áudio ou vídeo deu-me mais liberdade para me focar no que ele era e no que deixou nos diários que escreveu para a família e para a mulher, e que são incríveis. Ele abre-se totalmente enquanto ser humano e isso é muito mais interessante, porque nunca vai ser totalmente fiel, nunca vai ser a pessoa, e eu acho que a ideia também não é essa. Também não me interessava isso. Era descobrir e encontrar o Amadeo dentro do Rafael.

Ficou surpreendido com a qualidade, com o talento, com a pessoa em si?
Totalmente. Eu sabia quem era muito assim de ouvir, de mencionar – e conhecia o quadro dos galgos -, mas pouco. Fiquei supersurpreendido. Ele era um vanguardista não só a nível de trabalho, como é óbvio, da obra dele, mas como pessoa, a maneira de pensar. Ele teria muitas vantagens a nível financeiro, o que ajuda qualquer artista, mas a maneira de ele pensar e de querer mais, não se identificar com o país em que vivia na altura, um país fechado e quadrado… fiquei surpreendido com as semelhanças, porque ele saiu de Portugal mais ou menos com a mesma idade com que eu saí.

Tem feito papéis muito diferentes. Em Sangue do Meu Sangue, de João Canijo, interpretou um traficante. Em Como Desenhar Um Círculo Perfeito fez de irmão apaixonado de Joana Verona. Sente-se um camaleão atrás das câmaras?
Sim, parte do objetivo é esse, sem nunca colocar isso como prioridade. A forma como vejo o trabalho de ser ator passa também por encontrar a personagem dentro de nós, porque todos nós temos um bocadinho de todas essas emoções e pensamentos.

Não há assim uma personagem-tipo de que goste mais?
Não. Há realizadores e tipos de filmes e projetos com que me identifico mais. Aliás, há maneiras de trabalhar com as quais me identifico mais. E, regra geral, são projetos mais pequenos. Mesmo os filmes que mais gosto de ver são americanos, são filmes mais independentes, mais focados na personagem e menos no espetáculo. Se sou camaleão? Não penso nisso. Gosto de ir para cada projeto – e agora usando o Amadeo como analogia – como uma tela em branco. Não acredito em fórmulas, não me identifico necessariamente com uma fórmula, uma maneira de trabalhar. O que quero ter a certeza, o máximo possível, é que, quando vou fazer um novo projeto, que vá sem expetativas, fazer o trabalho de casa antes – ter esse tempo é essencial, de ensaios, de discussões com o elenco, com o realizador, é absolutamente essencial e cada vez menos se usa. Como ator, ter hipótese de fazer isso é especial. O Pedro Cabeleira, o João Canijo ou o Marco Martins trabalham dessa forma e isso é extremamente inteligente. Para mim, faz todo o sentido ter esse tipo de trabalho porque faz-se o trabalho a priori, teórico, racional, pesquisa, experimentar, falhar, e cria-se intimidade com o resto do elenco, com o realizador. E prefiro isso a cair de paraquedas numa rodagem e cada um está a puxar para seu lado.

Isso já lhe aconteceu?
Sim, já me aconteceu, e daí surge a necessidade de ter ferramentas e é importante ter a técnica que se vai descobrindo à medida que se vai trabalhando para ajudar nesses casos. O facto de estarmos a trabalhar com um realizador que não sabe muito bem aquilo que quer ajuda muito um ator que ter esses truques e técnicas que o vão ajudando e… salvando. Mas, idealmente, para mim, é a colaboração máxima. Interessa-me estar totalmente envolvido dentro do projeto. No Sangue do Meu Sangue estive no Bairro Padre Cruz diariamente, com traficantes… criar uma relação com eles e perceber, quase que somos contagiados por osmose. Quero fazer esse trabalho antes para, depois, quando estiver no set, poder estar no momento e não pensar nas escolhas que estou a fazer. Quero já estar tão confiante da pesquisa que fiz para seguir a emoção do momento.

Estes dois filmes valeram-lhe nomeações para os Globos de Ouro. Dá importância a esse tipo de distinções?
Tem a sua importância. Acho que é importante este tipo de espetáculos existirem porque, se isso significar que as pessoas que vão ver os prémios descubram os filmes a seguir, já está justificado. Mas, ao mesmo tempo, acho que é um bocado… percebo porque existem, mas é um bocado fora de contexto tendo em conta a realidade que temos em Portugal. Todo aquele glamour que se vê na televisão não está ligado à realidade dos atores portugueses, pelo menos os de cinema ou de teatro. Mas pronto, é incrível ser respeitado, admirado e celebrado, especialmente quando o júri é pessoal do meio. Tendo em conta a nossa realidade, acho que há prioridades para além disso, mas é superimportante para promover um filme: trabalho traz trabalho…

De que prioridades está a falar?
De investimento na cultura, de respeito por parte dos governantes no que toca aos artistas. Estamos há anos a lutar por um investimento decente e mínimo na cultura e os problemas que eu tinha quando comecei ainda existem e vão persistir durante algum tempo. E isso é triste, o facto de nos estarem constantemente a desvalorizar, a quantidade de filmes que fazemos e a quantidade que são celebrados e premiados lá fora a nível de festivais, a nível de respeito. Eu estive em Los Angeles durante vários anos e tive reuniões com diretores de casting, produtores da Fox, etc., que sabiam quem o Pedro Costa e o João Canijo eram. Faz parte do trabalho deles, mas é Portugal, é uma ilha, mas eles sabiam. E o facto de em Portugal não haver esse tipo de respeito…

Porque não existe esse respeito?
Não sei, é complicado. O ponto de partida são os governantes e eles tomarem a atitude certa e investirem, porque o público é educado. Mas é complicado. Vivemos na situação em que vivemos e a maior parte das pessoas não têm dinheiro sequer para pensar em ir ver espetáculos, ir ao cinema, pagar a uma babysitter para poder ver ir um filme. E eu acho que a primeira escolha não vai ser um filme português em que eles não sabem para onde vão, provavelmente vão para lá angustiar-se. Querem ver algo que entretenha mais. E, se vão ao cinema duas vezes por ano, percebo que a escolha não seja necessariamente essa. Vão para se entreter, para esquecer os problemas que têm em casa, quando temos problemas de habitação e o salário mínimo é o que é.

Há preconceito dos portugueses em relação aos filmes portugueses?
Acho que há e, para ser totalmente honesto, eu também tinha antes de descobrir filmes e realizadores que desconhecia até ir para a Escola de Teatro de Cascais. Comecei a lidar com pessoas que partilhavam o mesmo tipo de gostos, de interesses, comecei a descobrir o João Canijo. Lembro-me da primeira vez que vi a Noite Escura ou o Alice, do Marco Martins, que fui ver ao cinema porque a minha namorada na altura queria ir ver – eu não queria – e fiquei totalmente [faz expressão de espanto]. Mal eu sabia que ia trabalhar com ele. Lá está, falta de conhecimento. E eu percebo – faz-se tão pouco e nem tudo tem a melhor qualidade – que haja esse tipo de estigma, mas é por falta de conhecimento, porque eu sofri do mesmo. A minha ideia era bazar para os Estados Unidos muito por isso, por acreditar que não se fazia nada de jeito aqui, até perceber que se faz de jeito aqui.

O cinema surgiu muito cedo na sua vida.
Muito, muito cedo. Tinha para aí sete ou oito anos. Eu acho que veio do divórcio dos meus pais; fui viver para a casa da minha avó, no concelho do Fundão. Foi um escape, odiava lá estar, e faltava à escola para ver filmes, passava as tardes no videoclube, e foi aí que surgiu.

Aos 15 anos muda-se para Lisboa, para estudar na Escola Profissional de Teatro de Cascais, e aos 18 vai para Los Angeles, para estudar na Stella Adler Academy. Tinha um plano que seguiu a regra e esquadro?
Sim. A ida para Los Angeles esteve sempre mais presente do que Cascais, porque ponderei ir para o Conservatório, mas não quis esperar tanto tempo. Aliás, eu e o meu irmão, quando viemos para Lisboa, para nos matricularmos no Teatro, viemos demasiado tarde e já não conseguimos fazer as audições, e chegámos a ser inscritos na escola do Cacém. Mas faltámos às aulas, tanto que o meu pai foi connosco até à Escola de Teatro de Cascais falar com o Carlos Avilez e pedir por favor para fazermos a audição. E acabámos por entrar.

O seu irmão, Edgar Morais, é realizador. Nunca pensaram fazer uma carreira conjunta?
Conjunta não, mas temos trabalhado um com o outro. No entanto, acho também importante mantermos a nossa viagem profissional separada e colaborarmos apenas nos projetos realmente especiais. Futuras colaborações estão em cima da mesa e espero que aconteçam.

No filme albanês A cup of coffee and new shoes on fizeram de gémeos surdos. O que os cativou para quebrarem a regra não escrita de não estarem no mesmo projeto?
A qualidade do argumento. Eu recebi a mensagem do Gentian Koçi e, na altura, foi logo a seguir ao White Lines e a maior parte eram treta. Vi o primeiro filme do Gentian Koçi e fiquei totalmente fascinado. Foi o argumento, foi a história que justificou. Foi uma história que fazia sentido e o desafio como ator de fazer uma personagem que não diz uma palavra o filme todo, que tem um nível de profundidade emocional que a personagem tinha, ser baseado numa história verídica de dois gémeos que, na Bélgica, descobriram que iam ficar cegos e decidiram cometer eutanásia juntos, isso justificou tudo.

Teve de aprender linguagem gestual albanesa.
Foi uma experiência incrível, foi dura. Foram meses e meses e meses de aulas, mas foi incrível, especialmente por ter conversado com tanta gente que é surda e cega que são, sem motivo nenhum, ostracizados a nível cultural e social sem justificação, porque eles têm as capacidades todas. Ouvir estas pessoas dizerem-me que vão a um bar e têm dificuldade em comunicar porque ninguém sabe falar… Aprende-se tanta treta na escola e é ridículo que não seja obrigatório aprender língua gestual. Não faz sentido nenhum estas pessoas viverem isoladas sem necessidade, porque estão nas perfeitas capacidades mentais, psicológicas, físicas, e é muito difícil conseguirem comunicar. Tornou-me uma pessoa mais empática.

Foi diferente para si fazer este projeto com o seu irmão?
Foi, bastante. O facto de conhecer tão bem alguém com quem se está a trabalhar foi uma experiência nova, mas acho que trouxe algo muito fixe para o filme que foi nós transpirarmos a nossa própria relação para as personagens. Isso sente-se, isso vê-se. As personagens têm imediatamente vida, porque existe uma vida e uma história comigo e com o meu irmão. Nisso foi incrível, mas foi duro, porque é difícil ter-se tanta intimidade com alguém, sentirmo-nos tão confortáveis a dar a nossa opinião e criticar, exigir, porque se cresceu com a pessoa.

Vejo no seu currículo que não faz novelas e desde 2018 que não faz teatro; em Portugal nunca fez de todo. Cinema e séries são a sua aposta?
Cinema é a minha paixão absoluta. Há uma certa intimidade que se tem no cinema e que eu acho que não se tem em mais lado nenhum. Mas tenho saudades de fazer teatro. Era para ter feito um espetáculo este ano, em Portugal, mas não pude porque já me tinha comprometido a fazer uma série. Mas quero voltar a fazer teatro.

Novelas estão fora do plano?
Sim, posso considerar-me um sortudo. Nada contra. Há colegas meus, que eu respeito imenso, que fazem, mas, para ser totalmente honesto, não me identifico com a fórmula e o facto de existir uma fórmula, para mim, já é muito mau sinal.

Li uma declaração sua em que dizia que os realizadores norte-americanos tinham inveja da liberdade com que se trabalha na Europa, mas que o problema em Portugal é haver tão pouco dinheiro. Essa situação tem sido mitigada com o streaming?
Não sei, acho que não, porque o streaming, na verdade, não tem apostado nos projetos mais artísticos ou de autor. É uma coisa muito mais comercial, e eu, quando falo dessa inveja, é totalmente verdade no que toca a realizadores mais independentes americanos de terem carta-branca porque, como são investimentos privados, não há um ICA, têm quase sempre alguém a controlar aquilo que fazem e a manipular. E eles têm inveja disso, de as pessoas que conseguem fazer cinema em Portugal e na Europa terem liberdade artística para fazerem um filme que querem fazer.

Vive entre Los Angeles (LA) e Lisboa. Onde se sente mais em casa?
[pausa] Em Los Angeles. Não fiquei fascinado quando lá cheguei porque se cria uma imagem de LA que, depois, chegamos lá e não é real, mas, como fiquei tanto tempo, foi crescendo em mim. É preciso passar tempo em LA para descobrir LA. Sinto-me mais em casa em LA. Adoro Lisboa, não quero perder a ligação com Lisboa de forma alguma. Há uma coisa em relação a LA que, para mim, é mágica: o facto de a maior parte das pessoas não serem de lá. É tão multicultural… cada dia que vivi lá era uma aventura que eu não sinto em Lisboa. Aqui há uma rotina. Há uma magia nessa aventura que eu senti em LA que cá não sinto e tenho saudades, para ser honesto.

Tem uma adoração por cães e fotografia. São um bocadinho o escape da pressão do dia-a-dia?
A Luna é. Adotei-a e ela mudou a minha vida. Foi uma fase em que eu estava mais sozinho em LA, aliás, a primeira vez que vivi realmente sozinho, e foi extremamente importante para o meu crescimento pessoal. Ela mudou e continua a mudar constantemente a minha vida. É o amor da minha vida.

E a fotografia?
Não exploro a nível profissional, mas é algo que adoro. Estou agora a selecionar fotos…

Para uma exposição?
Uma exposição. Adoro fotografia e foi uma coisa que surgiu também em LA.

Foto: Cristina Bernardo