Um milhão e cem mil votos. Esse número intrigava-me pois parecia-me familiar. Eis senão quando, lembrei-me que um milhão e cem mil é também a audiência média do Big Brother na TVI. E do Preço Certo, esse bastião da cultura na RTP. Fiquei sem saber qual era a audiência do infeliz Malucos do Riso, mas deveria andar lá perto.

O que estes programas têm em comum é que se dirigem a uma parte da população que não gosta de enredos muito complicados. São os 1,1 milhões. Nesta altura, o politicamente correto é tentarmos aceitar os 1,1 milhões e as suas ideias. Esta tarefa ficaria muito facilitada se soubéssemos quais são essas ideias. Já percebi que uns são contra umas coisas, outros são contra outras e que ninguém sabe muito bem quais as causas que os unem. São do contra e pronto.

Pessoalmente recuso-me a baixar as expectativas e a ter de nivelar por baixo o que aceito ou não em termos de representatividade dos políticos. Quando os Big Brothers apareceram, limitei-me a mudar de canal. Não tenho de adaptar o meu gosto e ver esses programas, só porque grande parte da população o faz. Do mesmo modo, não tenho de aceitar na política alguns comportamentos boçais, só porque uma boa parte da população acha graça. Quando quero ver bufões, vou ao teatro.

Podemos, no entanto, tirar algumas lições sobre o sentido desse voto. A primeira conclusão é que 1,1 milhões são apenas 18% do eleitorado. Os restantes 82% rejeitaram essa forma de fazer política. São muitos votos? São. Mas estão longe de ser a maioria. A maioria dos portugueses ainda é constituída por pessoas equilibradas e com bom senso.

Por outro lado, também não devemos ignorar esse fenómeno. Há uma parte significativa da população que sente que a classe política e as elites desconhecem a realidade nacional. Que desconhecem e desprezam os seus valores e que querem impor agendas políticas desnecessárias. E nisso têm toda a razão.

Faço parte da bolha que olha para estes resultados com algum paternalismo e desprezo. É fácil ridicularizar estes resultados pois eles fogem do que é expectável numa sociedade civilizada. Mas, ao fazer isso, estou errado.

Já não é apenas a elite contra uns insanos furiosos. É uma parte da população que protesta contra o esquecimento a que tem sido votada.

Não há muita lógica nas eleições do Trump, do Bolsonaro ou do Ventura. A análise clássica não consegue enquadrar estes fenómenos. Não é a direita nem a esquerda. É a raiva.

É a raiva de se sentir deixado para trás num mundo que evolui para um aumento de distância entre as elites e o resto da população. É a raiva de quem se sente ameaçado pela imigração e que acha que as elites não se preocupam e que beneficiam com isso. É a raiva de sentir que uma agenda woke lhes está a ser imposta e que vai contra a sua maneira de pensar e sentir.

E a raiva não é um sentimento racional. Não adianta tentar argumentar e desmontar esses argumentos. Esses 1,1 milhões não quer dialogar nem quer chegar a consensos. Abriu-se a caixa de Pandora e o monstro está à solta. Fazer cedências será o princípio do fim. É uma turba insaciável que sabe protestar mas que nunca concordará com alguma solução.

Haverá um dia em que estas mesmas pessoas se desencantarão com as falsas promessas e procurarão canalizar as suas raivas de outra maneira. Até lá, será necessário resistir e ao mesmo tempo ter a coragem de fazer as reformas que já tardam. Estes não são tempos de consensos. Estes não são tempos de adiamentos. Estes não são tempos de falta de coragem.

A história julgará os que cederam e os que tiveram a coragem de seguir em frente. Sem medos e sem tibieza. Conforme cantava o poeta: “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”.

Criativo

Artigo publicado na edição do NOVO de sábado, dia 16 de março