O mais interessante no artigo de João Miguel Tavares no Público em que ele jura de dicionário na mão – a Bíblia não o deixaria negar factos de forma tão chocante – que os palestinianos não estão a sofrer um genocídio, é a referência que faz ao elevado número de bebés que nascem na Faixa de Gaza. A ideia, bastante tosca e muito selvagem, que está implícita na referência de JMT é mais ou menos esta: estão a morrer muitas crianças e muitos palestinianos, é verdade, mas também nascem muitos, esta gente reproduz-se depressa, logo isto não é realmente um genocídio. JMT não o diz, mas suponho que, para ele, sejam os habituais efeitos colaterais – quem vai à guerra dá e leva.

A pulsão descontrolada de querer tomar partido por um dos lados conduz a esta espécie de raciocínios e teorias moralmente abjetos. O Hamas é um grupo de assassinos, não há qualquer dúvida. Os reféns e as 1400 pessoas mortas a 7 de outubro – decepadas, carbonizadas ou fuziladas à queima-roupa, entre elas bebés e velhos, a quase totalidade sem relação com as forças armadas de Israel -, dizem tudo o que é necessário. Igualmente, os 20 mil feridos na Faixa de Gaza, a que se juntam 9 mil mortos, entre eles 4 mil crianças, também não precisam de legenda. E a conta aumenta todos os dias. A um brutal ato terrorista está a seguir-se um genocídio metodicamente executado através das armas e do corte no abastecimento de comida, medicamentos e energia para um território onde sobrevivem 2,3 milhões de pessoas. É a limpeza étnica por asfixia. A crueldade que vemos em direto quebra todas as escalas possíveis da decência.

Israel disse que não tinha bombardeado um hospital nos primeiros dias de guerra. Entretanto, já o fez e assumiu-o sem grandes embaraços. Pediu aos civis da Faixa de Gaza que fossem para sul. E bombardeou o sul do país. Atingiu também um campo de refugiados, esse antro de malfeitores, escolas e tudo o que lhe parece fazer sentido para concretizar a grande vingança. A farsa das guerras cirúrgicas é apenas comunicação de guerra para aliviar consciências superficiais. Não há guerras limpas e precisas nos alvos – é sempre um movimento sangrento, horrível e generalizado, indiscriminado. Não há guerra sem crimes de guerra.

Há um ponto que Israel não quer aceitar. Ter um poderoso grupo de assassinos como inimigo não lhe oferece uma vantagem absoluta, não lhe dá licença para matar e violar o direito internacional. Se alguém tinha dúvidas do que é ter no governo partidos de extrema-direita, fica aqui a prova irrefutável do retrocesso civilizacional e de como ele acontece depressa e debaixo dos nossos olhos. O soberanismo é a doutrina da decadência. O nacionalismo a doutrina dos povos cansados. Os israelitas estão esgotados. O país está farto.

A terceira guerra mundial pode bem estar a dar os primeiros passos. A intervenção de ontem do facínora que comanda o Hezbollah não requer tradução: estamos a um passo de uma guerra com várias frentes que pode envolver o Irão. Se isto acontecer, o Médio-Oriente explode e o mundo ocidental segue de arrasto. A segurança global vai imediatamente pelos ares.

Há uma característica que nos define como seres humanos: exigimos o castigo, mas também queremos, a seguir, o perdão ou alguma compreensão para o transgressor. Neste caso, o perdão para os palestinianos que se subjugaram ao Hamas e em simultâneo assumiram plenamente o papel de vítimas. Parece-me evidente que esta passividade dos palestinianos, reféns do Hamas, tem muitas atenuantes, mas não justifica tudo. A rebelião deveria ter acontecido, deveria ter sido tentada e tentada e tentada; só assim não teríamos chegado aqui. Dito isto, neste caso o perdão de Israel ao erro histórico deste povo era obrigatório e vital. Em vez disso, Israel exibe ódio e cegueira sem limites. Receberá, do outro lado, ódio e cegueira ilimitadas. O mundo inteiro também. Que todos – todos mesmo – os deuses nos ajudem.

Consultor

Artigo publicado na edição impressa do NOVO, dia 4 de novembro