Quando o trigo (e não só) é o perigo
Ir ao supermercado fica mais caro e mais demorado, preparação passa a ser a palavra de ordem e glúten aquela a evitar. No Dia Internacional da Doença Celíaca, que se assinala esta segunda-feira, 16 de Maio, famílias revelam os principais desafios dos doentes celíacos e relatam a impreparação das escolas para lidar com esta doença auto-imune. Associação Portuguesa de Celíacos diz que há ainda muito a fazer em termos de legislação.
Vera viu a filha Matilde sem forças para andar com apenas 18 meses. Um quadro constante de diarreias e perda de peso não indicava o real problema, tendo sido vários os exames médicos sem uma resposta concreta. “Chegou a um ponto em que ela não tinha reacção, só queria estar deitada”, recorda a mãe. O diagnóstico chegou passados quatro meses: doença celíaca.
“Foi toda uma descoberta. Não sabia o que era esta doença”, recorda agora, 12 anos após o diagnóstico. Anos mais tarde, após a segunda gravidez, Vera recebia o mesmo diagnóstico. “Agora percebo que tinha alguns sintomas, como barriga inchada ou problemas de pele. Mas como a Matilde teve sintomas tão fortes, os meus não pareciam relevantes”, conta.
Mas, afinal, que doença é esta? Apesar de habitualmente confundida com uma intolerância alimentar, trata-se de uma doença crónica e auto-imune. “Isto significa que quando o celíaco ingere glúten, o organismo reconhece-o como agressor e produz anticorpos contra o próprio organismo, sendo o órgão alvo o intestino delgado, onde ocorre a absorção de nutrientes”, começa por explicar ao NOVO Rita Jorge, nutricionista e membro da Associação Portuguesa de Celíacos (APC). Ao contrário das intolerâncias, esta só se encontra em indivíduos que tenham o gene da doença celíaca, podendo manifestar-se logo na infância, aquando da introdução do glúten (proteína presente em alguns cereais) na alimentação, como foi o caso de Matilde, ou só mais tarde, devido a factores ambientais, virais ou imunológicos, como aconteceu com Vera.
O estudo mais recente efectuado a nível nacional, em 2018, estima que 1% da população portuguesa seja celíaca, mas, segundo a APC, prevê-se que existam entre 85 mil a 100 mil celíacos por diagnosticar em Portugal. Em parte, explica Rita Jorge, estes dados justificam-se com o facto de a doença poder manifestar-se de várias formas, não tornando óbvio o diagnóstico.
Diarreia alternada com obstipação, dor e distensão abdominal, um atraso estaturo-ponderal nas crianças – não crescem e não ganham peso, mas têm barrigas muito inchadas -, aftas recorrentes ou estomatites aftosas são os sintomas mais comuns da doença. Contudo, acrescenta a nutricionista, há muitos outros que não são gastrointestinais, mas acabam por estar relacionados com a não absorção de nutrientes. “Osteoporose, osteopenia precoce, dermatite heptiforme, infertilidade, abortos espontâneos, alterações na função da tiróide, alterações neurológicas e psiquiátricas e até da dentição”, enumera.
Ana Padilha tem 34 anos e foi um dos casos em que a doença só foi identificada na idade adulta. “Nunca tive sintomas óbvios. Quando era mais pequena tinha muitas dores nos ossos, mas os médicos atribuíam às dores de crescimento”, revela, explicando que só há dez anos começou a exibir sintomas gastrointestinais. O diagnóstico foi recebido há oito anos, quando já não conseguia caminhar sem dor. “Depois de começar a dieta [isenta de glúten], demorou cerca de quatro, cinco meses até me sentir melhor, sem dor ou mal-estar constante”, relata.
O período que se seguiu foi de adaptação e de aprendizagem, mas o facto de saber que os cuidados lhe permitiam ter uma melhor qualidade de vida foi crucial. “Há muitas pessoas que passam a vida sem o diagnóstico correcto”, aponta. Além dos cuidados que é obrigada a ter, Ana Padilha revela que, em termos sociais, a doença também se reflecte. “Nota-se em coisas pequenas. No trabalho, por exemplo, há colegas que se sentam na secretária de outros a lanchar para falarem um pouco. Na minha, sabem que isso não pode acontecer [devido ao perigo de contaminação].” Apesar das limitações que vão surgindo, acredita que acaba por funcionar como uma selecção para perceber quem realmente se importa. “Há momentos frustrantes, mas tento não me focar nisso. Agradeço o facto de ter a possibilidade de ter qualidade de vida, mesmo que isso me obrigue a cuidados extremos que, aos olhos de alguns, podem parecer obsessivos, mas que para nós, celíacos, são fundamentais”, garante.
Crescimento congelado
Sara Ferreira, por sua vez, já tinha ouvido falar da doença celíaca através de uma prima, mas longe estava de imaginar que os problemas de saúde da filha Beatriz, que identificou inicialmente como uma anorexia, tinham como origem a mesma doença. “Ela nunca tinha fome, as horas de refeição eram mesmo desgastantes, mas os sintomas dela não eram tão evidentes. Congelou-lhe o crescimento”, conta ao NOVO, sete meses após o diagnóstico. O processo de adaptação, ainda a decorrer, não tem sido fácil. “Na escola houve algumas situações de crianças que tocavam no lanche dela, impedindo-a de comer”, revela.
O filho de Tiago Bicudo foi diagnosticado aos cinco anos, após apresentar sintomas gastrointestinais. “Ele tinha muitas cólicas, mas os médicos diziam que eram gases. Uma vez cheguei à escola e ele estava sentado, agarrado à barriga, enquanto as outras crianças brincavam. Percebi que não podia ser normal”, recorda. Após esse episódio, o diagnóstico foi relativamente rápido e as melhorias quase imediatas.
Um diagnóstico como este obriga a uma mudança radical do estilo de vida, uma vez que o tratamento para a doença é o cumprimento rigoroso, a 100%, de uma dieta isenta de glúten, que está presente em três cereais: trigo, centeio e cevada. Olhando para a roda dos alimentos, a maioria até são naturalmente isentos de glúten, mas o cumprimento da dieta torna-se mais complexo na prática, com nomes como “malte ou extracto de malte e amido ou amido modificado” a ganhar relevância.
“A questão tem a ver com os processados. Por exemplo, a carne é isenta de glúten mas, se vamos comprar fiambre, a coisa muda. O fiambre não é carne pura, é uma mistura de muitos ingredientes. O mesmo acontece com a manteiga. Na sua versão normal, até é isenta, mas as versões light podem não ser, uma vez que são retiradas gorduras e adicionados amidos. Se for amido de trigo, já passa a ter glúten. O celíaco tem de ler os rótulos de tudo aquilo que vai comprar”, esclarece a nutricionista. Mas nem só nos produtos está o potencial perigo, uma vez que a contaminação cruzada é suficiente para desencadear um processo inflamatório. “Tanto faz uma migalha como comer um bolo inteiro. A partir do momento em que há produção de anticorpos, é indiferente a quantidade que se comeu”, detalha. Por isso, o celíaco não só não pode comer produtos com glúten como não pode utilizar os mesmos utensílios usados para confeccionar produtos com glúten.
Tiago Bicudo identifica mesmo a contaminação como o maior vilão. “Se passo manteiga num pão com glúten e depois uso a mesma faca para passar manteiga no pão do meu filho, já contaminou… mesmo que aquela manteiga não tenha glúten”, exemplifica.
Hoje em dia, já é possível encontrar uma vasta oferta de produtos isentos de glúten nas prateleiras dos supermercados, mas o peso faz-se sentir na carteira. “Há muito mais oferta do que havia há 12 anos, as marcas estão mais sensibilizadas, mas o preço continua muito elevado”, lamenta Vera. “Comprar farinha é muito mais caro, por exemplo”, aponta Ana Padilha. Se uma embalagem de pão de forma de 820 gramas da marca Continente custa 1,19€, uma embalagem de pão de forma sem glúten de 350 gramas, da mesma marca, custa 2,39€.
Escolas não estão preparadas
A alimentação na escola é o principal desafio apontado pelos pais, uma vez que grande parte diz não ter garantias por parte das entidades escolares. “A escola não garante que não há contaminação… Dizem que podem preparar a comida, mas sem a garantia de contaminação cruzada. Basta estarem a cozinhar ao mesmo tempo para haver… Não posso arriscar”, lamenta Sara Pereira.
Com o mesmo cenário se deparou Vera. “Apesar de dizerem que temos direito, isso não se concretiza. Podem existir escolas que garantem, mas a maioria, não. Eles dizem: ‘Até podemos fazer as refeições, mas não garantimos que não exista contaminação.’ Isso não funciona”, critica.
Um despacho publicado em 17 de Agosto de 2021 sobre as normas a ter em conta na elaboração das ementas e na venda de géneros alimentícios nos bufetes e nas máquinas de venda automática nos estabelecimentos de educação e de ensino da rede pública do Ministério da Educação prevê, entre outras coisas, que as ementas devem contemplar “refeições vegetarianas e dietas justificadas por prescrição médica, designadamente associadas a alergias ou intolerâncias alimentares”. Contudo, há várias crianças diagnosticadas com a doença celíaca sem garantia de uma dieta isenta de glúten e sem contaminação cruzada nos estabelecimentos de ensino.
“O despacho diz-nos que a escola tem o dever de fornecer uma alimentação adequada às necessidades, mas essa ainda não é a realidade em todo o país”, afirma Rita Jorge, apontando que o facto de a parte alimentar das escolas estar a cargo da autarquia, a quem cabe contratar o serviço de uma empresa de restauração pública e colectiva, é o primeiro entrave. “Esta legislação é um primeiro passo, mas há ainda muito trabalho a fazer”, acrescenta.
Ana Padilha não tem filhos, mas revela que a mesma falta de preparação se aplica aos hospitais. “Não há opções. Sei que se precisar de ficar internada tenho de ter ajuda externa, porque a alimentação hospitalar pode fazer-me ficar ainda mais doente. Vejo testemunhos de mulheres que tiveram bebés ou foram operadas e é realmente preocupante”, critica.