Presidência “violou olimpicamente” Código dos Contratos Públicos

A partilha de contratos públicos no portal oficial BASE é obrigatória desde 2009, mas só mais de dez anos depois, em 2020, a Presidência da República adoptou o procedimento. Belém garante ao NOVO que “transparência” era assegurada com publicitação em portal próprio e que, por recomendação do Tribunal de Contas, acabou por mudar para o BASE. João Paulo Batalha, vice-presidente da Frente Cívica, considera a situação “aberrante”.

A Presidência da República (PR) partilhou o primeiro procedimento no portal oficial da contratação pública BASE no dia 3 de Fevereiro de 2020, apesar de as restantes entidades públicas o fazerem desde 1 de Novembro de 2009, como determina o Código dos Contratos Públicos, apurou o NOVO. Mas a Presidência tem uma interpretação diferente da lei e alega que assegurava a “transparência” com a publicação dos gastos num portal próprio. Acabou, porém, por migrar para o portal BASE, após recomendação do Tribunal de Contas (TdC).

Para perceber o que está em causa é preciso recuar a 2008, quando, durante o primeiro governo de José Sócrates, foi publicado o Código dos Contratos Públicos. Determinou o legislador, na altura, que “a celebração de quaisquer contratos na sequência de ajuste directo” deveria ser “publicitada, pela entidade adjudicante, no portal da Internet dedicado aos contratos públicos”. Para cumprir esta determinação foi criada, em 2008, a primeira versão do portal BASE, que tinha como “função essencial centralizar a informação sobre os contratos públicos celebrados em Portugal”. Esta plataforma passou a configurar “um espaço virtual” para publicitação de “elementos referentes à formação e execução dos contratos públicos, permitindo assim o seu acompanhamento e monitorização”, pode ler-se no próprio portal. Após uma fase-piloto desta plataforma, o legislador determinou que, a partir de 1 de Novembro de 2009, os contratos públicos em Portugal passavam a ser “obrigatoriamente adjudicados através do recurso a plataformas electrónicas, ficando apenas de fora os ajustes directos, os quais, ainda assim, estão sujeitos a publicidade no portal oficial de contratos públicos (www.base.gov.pt)”, lê-se no portal.

A legislação da contratação pública foi promulgada por Cavaco Silva, chefe do Estado à data, mas a instituição que tutelava, a Presidência da República, nunca publicou um procedimento no BASE durante os dois mandatos. Como confirmou o NOVO, não consta na plataforma nenhum gasto da Secretaria-Geral da Presidência da República (SGPR), entidade que gere questões técnicas e administrativas em Belém, de 2009 a 2016, altura em que Cavaco deixou o cargo.

Marcelo Rebelo de Sousa sucedeu-lhe, a 9 de Março de 2016, mas a mudança não trouxe alterações imediatas. Os gastos continuaram a não ser partilhados no BASE durante os quatro anos seguintes – o que só se alterou a 3 de Fevereiro de 2020, quando a SGPR partilhou na plataforma oficial dos contratos o primeiro procedimento.

Diferentes interpretações

Apesar de no BASE se ler que este é o “portal oficial dos contratos públicos”, a Presidência tinha um entendimento diferente, considerando que a transparência estava assegurada com a publicação numa plataforma própria. Antes de 2020, a SGPR “procedia já à publicitação dos contratos públicos no seu sítio da Internet, de acordo com o procedimento adoptado pelos órgãos de soberania de carácter electivo, encontrando-se garantida desta forma a transparência e publicidade”, esclarece fonte oficial da Presidência ao NOVO.

Este entendimento não era, porém, partilhado por outros órgãos de soberania de carácter electivo, nomeadamente a Assembleia da República, que partilha despesas no BASE desde 22 de Agosto de 2008. A Presidência da República acabou por seguir o exemplo dos congéneres por indicação do TdC. “A partir da gerência de 2017, o Tribunal de Contas passou a levar a efeito auditorias financeiras à PR, numa base anual, tendo no âmbito da auditoria à gerência de 2019 sido proferida recomendação de que tal publicitação passasse a ser feita no Portal BASE, o que foi acolhido pela SGPR”, indica a Presidência.

A situação leva João Paulo Batalha, vice-presidente da Frente Cívica, a lamentar que a Presidência tenha, durante mais de dez anos, “violado olimpicamente o Código dos Contratos Públicos”. Para o consultor em políticas anticorrupção, “é aberrante” que “o Presidente da República que promulgou o Código dos Contratos Públicos, Cavaco Silva, tenha sido o primeiro a violá-lo” e que a ilegalidade se tenha mantido nos “primeiros quatro anos da Presidência de Marcelo”.

Batalha não tem dúvidas de que o caso “demonstra a falta de compromisso político das instituições com a transparência”, lamentando que “se façam leis que criam peso sobre a administração pública, mas que, depois, são ignoradas por quem tem poder”. O Código dos Contratos Públicos, acrescenta, foi “reduzido pela Presidência, durante muito tempo, a um relambório de boas intenções” ou “a uma lei-cartaz” – expressão usada, esta semana, por Marcelo na crítica que fez ao pacote Mais Habitação.

O NOVO contactou o gabinete de Cavaco Silva, que remeteu para os esclarecimentos da Presidência da República. O NOVO questionou ainda o Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção (IMPIC), responsável pela gestão do BASE, mas não obteve resposta até ao fecho da edição.

ESCLARECIMENTO DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA

“Em relação à notícia do jornal NOVO SEMANÁRIO, publicada a 25 de março p.p., sobre o tema da publicidade dos contratos públicos, a Presidência da República (PR) confirma e esclarece que os contratos públicos foram sistematicamente tornados públicos desde Dezembro de 2015 em portal próprio no site da Presidência da República, à semelhança do que era feito pela Assembleia da República (AR).

A publicação sistemática desta informação no Portal Base foi iniciada pela AR em 2018 e pela PR desde 2020. Ou seja, a informação sobre os contratos públicos já era divulgada pela PR e, portanto, pública desde 2015.”