As dificuldades que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e todo o sistema de saúde português estão a enfrentar neste inverno devem-se em muito à conjugação de uma causa conjuntural com três problemas estruturais: circulação de vírus que, apesar de frequentes nesta época do ano, apresentam maior transmissibilidade e agressividade; carência de recursos humanos; e fraca capacidade de planeamento e gestão da mudança.

Assim se explica a situação que observamos nas urgências e a consequente pressão sentida pelos restantes serviços, públicos e privados.

A atividade viral encontra-se em níveis elevados. O ministro da Saúde afirmou, a 8 janeiro, que o pico da influenza ou já tinha sido atingido ou estaria para breve. É provável que tenha razão. No entanto, tal não significa o fim instantâneo dos problemas, pois, apesar de a curva de infeções entrar em fase descendente, continuará a provocar dano nos mais vulneráveis e pressão nos serviços de saúde até que a fase epidémica seja ultrapassada.

Ao vírus da influenza, que está a provocar mais casos de gripe que do que o esperado, juntam-se a Covid-19, com cerca de mil casos por dia, e o vírus sincicial respiratório que, depois de ter causado um enorme pico na idade pediátrica, atinge agora os mais idosos. Ainda teremos de aguardar algumas semanas para assistir a uma diminuição relevante da doença respiratória.

A carência de recursos humanos foi notícia durante todo o ano de 2023. As urgências necessitam de mais médicos especialistas, que são escassos e se têm afastado do serviço público, devido aos baixos salários praticados, e ao volume de trabalho excessivo. Falta investimento na formação dos novos especialistas e na criação de condições para reter no SNS os especialistas mais velhos, cuja experiência é fundamental para assegurar formação, e atrair os mais novos.

Formamos pouco e afastamos os recém-especialistas, que são a base de qualquer serviço de urgência. É uma aposta totalmente irracional!

Ainda no capítulo dos recursos humanos, além da sua carência, também temos outro problema, que não me canso de denunciar. As tarefas e responsabilidades dos profissionais de saúde refletem uma relação de poder demasiado hierárquica e burocrática e operam num paradigma de saúde obsoleto e centrado nas corporações, ao invés do cidadão.  Países onde, de acordo com a sua formação, os enfermeiros têm responsabilidades mais diferenciadas apresentam não só um melhor acesso aos cuidados de saúde, como uma maior eficiência e qualidade na prestação. Infelizmente, em Portugal o reforço das competências da enfermagem e de outras profissões, que poderia ajudar a otimizar a resposta, tem sido permanentemente adiado.

Por fim, temos a questão do planeamento. Tanto de curto como longo prazo. Começando pelo último, nos primeiros dez dias de 2024, o SNS teve cerca de 150 mil episódios de urgência, dos quais 8,2% terminaram em internamento. Estimando com base nos últimos dados do Instituto Nacional de Estatística, os serviços privados terão tido entre 35 a 40 mil episódios de urgência. No total, estes dados são três vezes superiores à média registada na OCDE. Isto é o resultado de décadas de uma arquitetura de saúde baseada na urgência, reforçada com o culto do instantâneo e a indução da procura que os serviços privados naturalmente fazem.

Perante um problema de excesso de procura dos serviços de urgência, só podemos expressar uma enorme preocupação com as soluções apresentadas. O acesso aos cuidados de saúde está condicionado. A resposta deveria ser melhorar o acesso aos cuidados de saúde primários, ter circuitos alternativos dentro dos hospitais para retirar doentes das urgências e uma maior aposta na saúde digital e de proximidade.

Mas não. A resposta assenta, sobretudo, na restrição do acesso sem reforço significativo das alternativas. Sem recursos para recorrer a serviços privados, excluídos dos cuidados de saúde primários e, cereja no topo do bolo, com acesso condicionado aos serviços de urgência, há cada vez mais pessoas em risco de não ter acesso a respostas às suas necessidades. O caminho não pode nem deve ser este!

Ocorreram igualmente falhas no planeamento de curto prazo. Na vacinação – que sempre foi um sucesso, apesar da falta de meios –, a opção passou não por melhorar o que corria bem, mas fazer experiências, cedendo ao poder dos lóbis da saúde. O resultado é a pior cobertura vacinal dos últimos cinco anosa e a revolta e sentimento de alineação do maior grupo profissional da saúde e responsável pelas campanhas de vacinação anteriores: os enfermeiros. Custa a compreender a necessidade de mudar, pagando bem mais por isso e pondo em causa a segurança dos utentes, um processo que historicamente é um sucesso, com direito a reconhecimento internacional.

Para finalizar. O SNS passa pela maior revolução na sua organização dos últimos 20 anos. Incompreensivelmente, feita à revelia dos seus profissionais. A enorme quantidade de dúvidas sobre o novo modelo organizativo das unidades de saúde que profissionais, gestores, autarcas e utentes têm deveria deixar os responsáveis políticos envergonhados.

A mudança só corre bem e é efetiva se for feita com os trabalhadores e demais partes interessadas. E todos queremos um serviço público de saúde que garanta o acesso universal a cuidados de saúde de qualidade!

Enfermeiro, Urgência Pediátrica e coordenador da Unidade Saúde Pública Hospitalar do Hospital Fernando Fonseca