“O Serviço Nacional de Saúde está a dar um tiro no próprio pé”
Ex-diretor do departamento de obstetrícia do Santa Maria, afastado depois de ter manifestado publicamente divergências com o conselho de administração, está preocupado com a falta de clareza sobre o que vai acontecer, a partir da próxima terça-feira, com o encerramento do bloco de partos e avisa que é provável que mais de metade dos obstetras apresentem a rescisão.
Em rota de colisão com o conselho de administração (CA) do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte (CHULN), Diogo Ayres de Campos, ex-diretor do departamento de obstetrícia e ginecologia do Santa Maria, arrasa o plano Nascer em Segurança, uma solução lusitana que “não tem dado bons resultados nem dará”. Sobre as obras no Santa Maria, continua a defender que “qualquer pessoa, em consciência, sabe que não era necessário fechar o bloco de partos”.
A transferência de profissionais e de grávidas para o São Francisco Xavier vai começar na terça-feira e, entretanto, foi também anunciado o fecho total da obstetrícia no Santa Maria. Que problemas antevê?
Foi anunciado sexta-feira de manhã numa reunião que, além do bloco de partos e da urgência, as consultas e o internamento também vão fechar. Mas continua a haver muita incerteza em relação a muitos aspetos, porque a consulta de risco é feita em conjunto com muitas outras especialidades que não existem em São Francisco Xavier. Por outro lado, na ginecologia, ainda não há escala para agosto para quem vai ficar nessa urgência interna.
E em que ponto está a tensão entre os obstetras e o conselho de administração?
É muito provável que, até ao final da próxima semana, mais de metade dos especialistas em obstetrícia apresentem a rescisão. Grande parte já manifestaram essa intenção por não concordarem com as condições.
As grávidas estão a par das mudanças que vão ocorrer?
Na minha opinião, não. Ninguém sabe onde se deve dirigir e já há muitas grávidas com partos e cesarianas programados para a semana.
Que já vão ser atendidas no São Francisco Xavier…<br /> Eventualmente, sim, mas não foram recebidas instruções sobre esse assunto.
Que comentário faz às conclusões da Ordem dos Médicos de que a obstetrícia do Santa Maria não tem condições para estar aberta?
Era algo claro para toda a gente mas, dentro do Hospital de Santa Maria, algumas pessoas não quiseram ver.
Quando era responsáv lpelo serviço, antes de ser exonerado, também havia dificuldade em completar as escalas?
Nos últimos três anos, nunca tivemos dificuldades na constituição das equipas de urgência. Tivemos sempre o serviço aberto, quer durante a pandemia, quer durante a crise do verão passado, em que muitas urgências fecharam à volta. Esta alteração dá-se porque perto de 30 médicos decidiram não fazer mais horas extraordinárias como sinal de protesto por demissões das chefias que não compreendiam. A razão que foi dada foi termos sido coautores de uma carta, assinada por quase toda a gente, a manifestar algumas preocupações relativamente à colaboração com o São Francisco Xavier, mas que, apesar de tudo, dizia que os médicos estavam disponíveis para irem colaborar mediante alguns pressupostos.
As queixas foram desvalorizadas?
A Ordem dos Médicos afirma que todos os dias recebe relatórios do departamento de obstetrícia/ginecologia a alertar para que as escalas não cumprem as condições mínimas recomendadas. Não tem havido resposta a isso nem da parte da direção interina, nem da parte do conselho de administração. Sim, tem havido desvalorização das preocupações dos médicos em relação à garantia da segurança. As cartas que são enviadas pelos médicos ao conselho de administração traduzem um mal-estar muito grande.
E vê alguma luz ao fundo do túnel para o fim desse braço-de-ferro?<br /> Apesar de o conselho de administração ter dito várias vezes que os médicos só iriam para o São Francisco Xavier voluntariamente, surgiram notícias de que, afinal, vai obrigar toda a gente a ir. Se vão ou não, não sei, mas isso não vai criar um ambiente construtivo. Não é assim que se deve tratar os profissionais. O SNS está a dar um tiro no próprio pé ao não se conseguir organizar de uma forma que envolva as equipas. Está quase a pedir a quem tiver condições financeiras para ter o parto na medicina privada. Na região de Lisboa e Vale do Tejo, no sul e, agora, em Braga, previsibilidade é algo que as grávidas não têm.
O Nascer em Segurança não trouxe melhorias?
O plano funciona muito bem, e com previsibilidade, quando diz respeito à medicina privada. No SNS, não é o caso. Mantêm-se os encerramentos, talvez de uma forma um bocadinho mais programada. Mas, como são sempre aos fins de semana, causam pressão adicional aos que ficam abertos. Na região de Lisboa e Vale do Tejo estavam quatro ou cinco maternidades sempre encerradas. Com este problema do Santa Maria, vai estar sempre mais uma. E ainda estamos para ver se o Francisco Xavier terá capacidade de resposta e se não haverá outra maternidade fechada, ocasionalmente, durante agosto. Infelizmente, não estou muito otimista em relação ao verão. Se virmos o número de vezes que os serviços de urgência de obstetrícia/ginecologia estiveram encerrados o ano passado, durante a crise mediática, e os dias em que estiveram este ano, não há grande diferença.
O ministro queixou-se de um discurso de “ódio” em relação à presidente do conselho de administração, que está a ser acusada de ter mentido sobre a redução dos indicadores assistenciais do Santa Maria…
A presidente do conselho de administração afirmou na comissão de Saúde que uma das razões para as demissões dos diretores era que os indicadores de obstetrícia não são bons. Não foi seguramente por causa disso que fui demitido. Em 2022, para a média dos oito anos anteriores, o aumento do número de partos foi de 9%. E este ano, até à exoneração dos diretores, foi de 3%. As consultas aumentaram 4% em 2022. Dizer que há redução da atividade assistencial é, no mínimo, questionável.
Continua a achar que foi afastado por razões políticas?
Não sei por que razões fui afastado, mas por este motivo não foi com certeza. Felizmente, o serviço e os profissionais responderam sempre a este aumento de procura. Custa-me que, depois do esforço destes últimos dois anos, venham a ser acusados de não terem bons indicadores. Não faz sentido. Outro aspeto questionável nas declarações da presidente do CA é ter dito que estranha não ter havido uma resposta atempada das direções ao relatório do IGAS sobre o caso da grávida que morreu no ano passado. É um relatório datado do dia 5 de junho e as demissões foram dia 19. O tempo que está indicado para responder é de 60 dias. Não seria de esperar que, em 14 dias, já houvesse resposta.
O que podia ter sido feito para evitar aquele trágico desfecho?
Não quero falar do caso em si, que está em investigação no Ministério Público e na ordem. Foi um caso que não se passou comigo nem com a dra. Luísa Pinto, antiga diretora do serviço de obstetrícia. Associar esse processo às exonerações é intelectualmente desonesto.
O rumo que o país leva nos cuidados materno-infantis não é, na sua opinião, correto. Mas qual seria a solução para a reforma que se exige na obstetrícia/ginecologia?
Os problemas de recursos humanos não afetam só Portugal. Há outros países da Europa que têm dificuldades grande, mas em nenhum lado se resolveu a situação encerrando maternidades rotativamente ao fim de semana. É uma decisão original e lusitana que não garante a segurança que precisamos. Não é uma solução sustentável. Não tem dado bons resultados e continuará a não dar. Ao longo destes meses de colaboração da direção executiva do SNS, propus várias alternativas que foram encontradas em alguns países europeus. Alternativas melhores que passam, sobretudo, pela noção de que muitas das situações vistas na urgência de obstetrícia podem ser vistas nos cuidados primários, e que pode haver algumas maternidades e blocos de partos só dedicados às situações mais complexas.
Diria que há falsas urgências na obstetrícia?
Não gostaria de lhe chamar falsas urgências. Se as pessoas lá vão é porque acham que é ali que devem ir. Sugeri campanhas de informação para a população saber em que situações é que se deve ir à urgência. Há situações em que não é necessário ir à urgência, mas em que é preciso ir a um hospital, por exemplo, no horário de uma consulta aberta. No Reino Unido, na maior parte das situações, as grávidas vão a uma consulta aberta, que funciona nos dias úteis.
Que opinião tem do trabalho que o CEO do SNS está a desempenhar há quase um ano?
Em relação à parte da obstetrícia, estamos em desacordo. Quando o principal problema do país é escassez de recursos humanos, quando temos uma grande procura da medicina privada, quando o SNS paga, de uma forma geral, mal, a forma de fazer reformas não deve ser sem envolver os profissionais nas decisões. Se isso acontece, o que os profissionais fazem é afastar-se e concluir que não vale a pena vestir a camisola do SNS. Esta forma mais impositiva de lidar com alguns problemas de fundo não é correta.
Porque razão ou razões a Ordem dos Médicos lhe retirou a confiança institucional?
Foi uma notícia plantada no momento em que tinha passado pouco tempo das exonerações. Como muitas pessoas só leem os títulos dos jornais, ficaram a achar que tinha a ver com as exonerações. Não tinha. Teve a ver com a minha participação numa orientação clínica da DGS em que, ao longo de meses, tentei arranjar um consenso entre médicos e enfermeiros sobre como se deve fazer orientação ao trabalho de parto. Havia, em Portugal, algum desacordo sobre como se deve orientar o trabalho de parto e quem é responsável por quê. É uma posição extremamente ingrata porque cada fação tem as suas opiniões muito vincadas. Chegamos a um consenso, mas quando foi para o assumir, os médicos nomeados pela ordem desmentiram. Foi uma situação muito mal gerida. Havia expectativas da parte da Ordem dos Médicos de que a versão final desse consenso lhe fosse enviada pela DGS, antes de ser publicada. A DGS não o fez. E quando a orientação foi publicada, e também derivado a declarações menos felizes da bastonária da Ordem dos Enfermeiros, a Ordem dos Médicos disse não estar de acordo e decidiu retirar-me a confiança como coordenador dessa orientação. Quando estive a fazer essa orientação, o bastonário era Miguel Guimarães. Entretanto, já falei com o novo bastonário, Carlos Cortes. O assunto está esclarecido, já me enviaram um e-mail a pedir desculpa pelo timing dessa comunicação.
E entretanto a confiança foi resposta? Como é que isso funciona?
Não. O que consta é que para ter confiança demora muito tempo, para a retirar é muito rápido. Já tive uma conversa com o bastonário acerca disso, pedi-lhe para esclarecer isso publicamente, mas, para já, ainda não o fez.
Entrevista originalmente publicada na edição impressa do NOVO de 29 de julho