Maurice é (ou era…) o galo francês que ganhou fama em junho de 2019 por ter sido o primeiro da sua espécie a ser processado judicialmente no mundo e passou a ser visto como um exemplo das novas tensões entre citadinos e rurais.

Tudo começou quando um casal de reformados, que sempre tinha vivido na cidade, comprou uma casa de férias em Saint-Pierre-d’Oléron, uma aldeia no sudoeste da França. Estes “novos” rurais processaram o galo Maurice, acusando-o de cantar muito cedo e de isso atrapalhar o seu sono e o seu descanso. A dona de Maurice lutou pelo direito do seu galo de ser livre e poder cantar quando quisesse. Em setembro de 2019, o tribunal decidiu a favor do galo Maurice e os queixosos tiveram de pagar mil euros à sua dona, por danos causados.

O galo tornou-se internacionalmente famoso. Mais de 140 mil pessoas assinaram uma petição a defender a sua causa, e T-shirts com a frase “Let me sing” foram um sucesso. A vitória judicial foi vista como um pretexto para salvaguardar os “sons do campo”.

Os casos de conflito sucediam-se. Nesse mesmo ano, um agricultor francês, que também travou uma longa batalha jurídica com um casal vizinho que se queixava do cheiro a estrume proveniente da sua exploração, teve mesmo de indemnizar os queixosos em cerca de 10 mil euros.

No entanto, em 29 de janeiro de 2021 foi aprovada, pelo Senado, uma lei que define e protege o património sensorial do mundo rural francês. Esta lei, conhecida como “Lei Maurice”, era reclamada por muitos presidentes de câmara por serem confrontados, cada vez mais, com este tipo de litígios. A legislação introduziu no Código Ambiental os “sons e cheiros” como características dos espaços naturais, juntamente com as paisagens, a qualidade do ar e a biodiversidade. O canto dos galos, o canto das cigarras, o mugir das vacas ou o cheiro a estrume passaram a ser reconhecidos legalmente como parte do património rural francês.

Este “enquadramento histórico” é importante para perceber a recente lei francesa, aprovada no passado 15 de abril, no seguimento da “Lei Maurice”, que consagra, no Código Civil, o princípio da responsabilidade fundada nas perturbações anormais de vizinhança.

O objetivo da lei foi criar as condições para uma convivência equilibrada e limitar os possíveis conflitos entre os novos rurais e os agricultores. O texto prevê que o agricultor não possa ser responsabilizado se a atividade desenvolvida for anterior à instalação da pessoa que se queixa da perturbação anormal e se, naturalmente, estiver em conformidade com a legislação.

Por iniciativa do Senado francês foi acrescentado um artigo ao Código Rural para prever isenções específicas suplementares para as atividades agrícolas. O agricultor que modifica as condições de exercício da sua atividade para as adaptar a uma nova regulamentação não pode ser considerado responsável por perturbações anormais da vizinhança.

Do mesmo modo, os agricultores não podem ser considerados responsáveis se não tiverem alterado “substancialmente” a natureza ou a intensidade da sua atividade agrícola. Isto aplica-se às mudanças de uma exploração agrícola (crescimento, diversificação, etc.). Segundo os deputados, estas isenções suplementares justificam-se pela necessidade de proteger as zonas rurais e a atividade agrícola.

A França registou um aumento significativo de famílias que deixaram as grandes cidades para irem viver no campo. Este fenómeno, tal como em Portugal, foi particularmente marcado durante a crise pandémica da covid-19. A generalização do teletrabalho permitiu que muitas pessoas decidissem mudar para cidades mais pequenas ou para zonas rurais, onde há agricultura.

As principais queixas destes novos rurais estão associadas aos barulhos dos animais ou dos equipamentos, como tratores, usados nas explorações agrícolas. Em França, e de acordo com a Federação Nacional dos Sindicatos dos Agricultores (FNSEA), existem atualmente cerca de 500 agricultores que enfrentam processos judiciais deste tipo movidos por novos vizinhos.

Na discussão da lei, no Senado, o ministro da Justiça francês defendeu que “se escolhermos o campo, devemos aceitá-lo como ele é”.

É verdade.

O ministro da Justiça francês defendeu o mundo rural.

São estes pequenos detalhes que permitem perceber a importância social de um sector num país. Em França, o território rural é importante. Em França, até pela sua “arquitetura política”, o território rural vale votos e decide eleições. Talvez por isso, ainda este sábado, o governo francês tenha anunciado mais 14 medidas de apoio aos agricultores, como o acesso a empréstimos e a aceleração de projetos para o armazenamento de água, a acrescer a 70 propostas já apresentadas no início de 2024, no seguimento das violentas manifestações dos agricultores.

Estes conflitos ainda não têm uma grande visibilidade em Portugal, mas já são comuns em muitos territórios rurais. A curto prazo, será normal que se intensifiquem. Teremos força para defender o cantar do galo?