Numa história do século XIII passada numa ilha ao largo da Península Ibérica fazia sentido ter a mestria de um artista português a jogar com as luzes e sombras desse mundo imaginado. Foi isso que Afonso Salcedo fez no novo filme de animação dos estúdios Disney, Wish – O Poder dos Desejos, que estreia quinta-feira nos cinemas portugueses. Radicado nos Estados Unidos há 19 anos, Afonso Salcedo é artista de iluminação e foi dos primeiros da sua equipa a começar a trabalhar no filme, processo que durou nove meses.

“Fazemos a composição da imagem final e toda a iluminação de uma sequência”, explicou ao NOVO, entre golos de café no histórico restaurante português de Los Angeles, Natas. “Criamos, posicionamos e animamos as luzes para termos a composição visual para transmitir uma história emocional.”

Nesta longa-metragem, escrita pela diretora criativa da Disney, Jennifer Lee, o visual é distinto do que temos visto. A equipa onde Afonso Salcedo trabalhou foi responsável pela composição das imagens vindas de vários departamentos, com o objetivo de dar a sensação de estarmos a olhar para aguarelas vivas. Teve aulas de pintura à mão para perceber como a tinta se acomoda no papel e como as cores interagem.

 

“O filme celebra os 100 anos da Disney e é uma homenagem aos clássicos, por isso tem muitas referências a filmes como Branca de Neve, Bela Adormecida, Cinderela ou Pinóquio”, explicou Salcedo. “Nesses filmes antigos vemos como as pinturas eram feitas à mão, vemos como a tinta reage à textura do papel e as cores se misturam nas linhas de desenho.”

No reino de Rosas, algures perto de onde nascia também Portugal, o Rei Magnífico descobriu como recolher e realizar os desejos do seu povo fiel. Mas o que parece nobre ao início revela-se maléfico e é a jovem Asha que vai enfrentar o formidável governante com a ajuda de amigos. É nessa jornada que surge o fio transversal aos contos da Disney: o poder de fazer um desejo olhando para uma estrela.

“É a história de origem de wish upon a star, algo a que quase todos os outros filmes que a Disney fez ao longo destes 100 anos de vida fazem referência”, indicou Salcedo – uma espécie de prequela, clássica e original. “É um filme que traz diversidade de personagens e uma história e música mais modernas, que posiciona a Disney para os próximos 100 anos.”

Uma indústria em convulsão
Este é, para já, o último filme Disney em que o artista luso colocou o seu talento. Depois de cinco anos na empresa, Afonso Salcedo foi vítima dos despedimentos em massa que assolaram a indústria do entretenimento no último ano. Com greves de argumentistas e atores, cortes de orçamento e uma crise de identidade no streaming, a indústria está em convulsão.

“Houve várias pessoas de todos os departamentos que foram despedidas”, contou o artista. Há a hipótese de regressar no próximo filme – mas como freelancer, algo cada vez mais comum.

“Infelizmente, é a economia da indústria e é isso que funciona”, referiu Salcedo. “É um problema gigante na indústria toda. Há imenso outsourcing agora, porque é muito caro fazer filmes de animação nos Estados Unidos.” Os custos são enormes, a inflação agravou o problema e o modelo de negócio está a ser posto em causa.

“Os estúdios estão a notar que o streaming não está a fazer dinheiro, que há imensos problemas a tentar perceber como vamos distribuir filmes e fazer o dinheiro que fazíamos antes da pandemia.”

Isso afeta a própria qualidade dos filmes, considera Salcedo; os estúdios jogam pelo seguro e querem fazer filmes que garantam sucesso, com histórias que funcionaram antes.

“O modelo de negócio tem de mudar”, considera o artista, referindo o exemplo de estúdios como o A24, que no início do ano arrasou na temporada de prémios com Tudo Em Todo o Lado ao Mesmo Tempo. “O que eu espero mesmo é que isto abra oportunidades para outras companhias e estúdios começarem a criar filmes, como o A24, que empurrem a indústria do cinema para uma versão nova”, disse Salcedo.

As coisas são piores na animação, que tem filmes mais caros.
O início da sua carreira nos Estados Unidos foi um dos melhores e mais notáveis desses ciclos. Salcedo aterrou num estágio na Pixar, em São Francisco, quando Steve Jobs – o cofundador da Apple – ainda era o CEO. Estávamos em janeiro de 2005 e a Pixar, vinda dos sucessos À Procura de Nemo e Os Incríveis, trabalhava no próximo título: Carros.

“Esses primeiros anos foram a era dourada da animação, principalmente da 3D”, lembra Afonso Salcedo, que viria a trabalhar em produções icónicas – de Carros e Ratatouille a Wall-E.

“Tenho uma nostalgia gigantesca dessa era”, confessou. Ainda conserva amizades com artistas com quem trabalhou na Pixar. “O que nos deixa muito felizes é que passámos esses anos a trabalhar nesses projetos, que é um momento tão único, que não acontece muitas vezes numa geração.”

Para Salcedo, foi produto da cultura da altura. Ainda não tínhamos redes sociais, iPhones ou streaming. As pessoas iam ao cinema regularmente e a animação 3D estava a atingir o pico em termos de capacidade narrativa.

“A Pixar tinha mesmo entendido como criar histórias que fossem universais para todas as idades e que tivessem uma profundidade humana.” Foi um momento em que o estúdio “criou obras-primas umas atrás das outras”, ganhou Óscares e fez imenso dinheiro.

Tinha também a força criativa e de liderança de Steve Jobs. Mesmo depois da venda da Pixar à Disney, o visionário continuou a ter um papel muito ativo no estúdio. “Acho que o Steve Jobs tinha uma maneira de liderar a criatividade no estúdio que era mesmo única”, reflete Salcedo.

Por outro lado, como Steve Jobs não sabia fazer aquilo que os artistas faziam, nutria “um respeito enorme” pela sua criatividade e opiniões.

Salcedo recorda uma sessão de visualização antecipada de Cars 2 onde estava Steve Jobs. “Ele estava à minha frente e detestou. Levantou-se e disse: ‘O que é esta porcaria?’”, conta Salcedo, entre gargalhadas.

Quando Jobs morreu, em outubro de 2011, Salcedo sentiu que alguma coisa mudou e acabou por sair da Pixar um ano depois, em busca de novos desafios.

Encontrou-os noutras áreas e tirou alguns anos fora da animação, voltando ao trabalho que o apaixonou. Em 2019 mudou-se para Los Angeles e trabalhou em projetos notáveis da Disney, incluindo Frozen 2 – O Reino do Gelo, Raya e o Último Dragão, Encanto e, agora, Wish – O Poder dos Desejos.

Tem também projetos pessoais na calha, enquanto observa como a indústria se vai desenvolver. “Comecei um projeto a fotografar pessoas, a fazer entrevistas com elas e criar um editorial na minha newsletter onde partilho as histórias.” Chama-se FonzieLand e está disponível na plataforma Substack. Também está a explorar os mundos da realidade virtual e formas de criar conteúdos imersivos nesses ambientes novos.

“Agora é tipo tempo de aventura”, resumiu, falando em perseverança. Tem 44 anos e está nos Estados Unidos há quase 20. É um momento tão bom como qualquer outro para recomeçar.

Artigo publicado na edição do NOVO de dia 18 de novembro