Nos anos 90, a China vivia em euforia sob o efeito da abertura da economia em 1976 – um crescimento económico sem paralelo, sentido na natalidade, no PIB per capita, numa iniciativa privada pujante e na migração em massa do campo para as grandes cidades, que se desenvolviam a um ritmo desenfreado. Nascia a nova China, que ainda sustenta hoje um crescimento muito acima das outras grandes economias mundiais.
O desenvolvimento imobiliário é um dos motores desta nova China e faz emergir milhares de promotoras e construtoras ávidas de agarrar o mercado que desponta nos centros urbanos espalhados pelo país. E é nessa altura, em 1996, que Xu Jiayin estabelece a Evergrande em Guangzhou como mais um promotor, especializando-se em apartamentos para as classes média e média alta. Ganha rapidamente muito mercado; em 2009 abre o capital na bolsa de Hong Kong com uma IPO de 722 MUSD e torna-se, em 2018, a promotora imobiliária mais valiosa do mundo. Mas o reinado é curto: em 2021 anuncia a insolvência, um desastre sobretudo para os 1,5 milhões de clientes que já tinham pago as suas casas, e na totalidade. As ações caem a pique, os credores deitam as mãos à cabeça e Xu Jiayin é preso, junto com um ex-CEO e o CFO. O governo tenta um plano de reestruturação, mas é tímido e tardio. E esta semana, dia 29 de janeiro, o tribunal de Hong Kong ordena a liquidação da empresa.
Não é todos os dias que estoira a maior empresa mundial de um sector, para mais uma das grandes bandeiras que gozaram de décadas de proteção do Estado chinês. Há dez anos não era credível que a China deixasse cair uma empresa desta escala e importância. E isso está a levantar, naturalmente, muitas questões e há em particular cinco que são fundamentais e sobre as quais queremos deixar um contributo. Queremos aqui hoje deixar mais clara a história da Evergrande e que se possa refletir de forma mais lúcida e informada sobre as implicações futuras deste invulgar incidente num país tão particular como a China.
1. O que se passou de facto para que a Evergrande caísse com tanta violência no País da Harmonia?
Entre 2009 e 2020, a empresa navega como ninguém o boom imobiliário, expandindo-se para 22 cidades. Com uma procura que permite preços e margens confortáveis, a empresa gera biliões de USD em fundos e lança-se numa enorme vaga de novos negócios – parques temáticos, um clube de futebol com estádio e academia, mobilidade elétrica, casas de repouso ou água mineral, entre outros. Passado um ano, o mercado começa a virar: a concorrência fortalece-se e coloca mais pressão sobre os preços. Mal preparada, a Evergrande não evita a queda das vendas, das margens e do cash flow. Como a construção em curso não pode parar e a diversificação é um dreno, as necessidades de fundos aumentam ainda mais. Em 2016 começam a chegar os sinais das dificuldades de liquidez do grupo, levando short sellers a atuar e a administração a pedir abertamente aos empregados para comprarem obrigações da empresa. É neste registo de deterioração progressiva em “bola de neve” que a Evergrande chega ao fim de 2020: queda do mercado (25% das habitações construídas na China por vender), queda de vendas, cash flow operacional negativo, aumento da dívida … e início de incumprimento de pagamentos. Em novembro, a bolsa suspende o trading de ações.
2. Porque é que o Estado chinês só interveio de facto numa fase tardia de reestruturação e não antes, quando podia ter protegido realmente a empresa?
Em 2020, descontente com as práticas do sector, o governo de Xi Jinping começou, de facto, a apertar o mercado. Nas palavras do presidente, “os apartamentos são para viver, não para serem especulados.” E a Evergrande já não era uma empresa-exemplo para o Estado; por isso, não terá havido qualquer intenção de apoio oficial e a “reestruturação” só pode ter sido uma operação para lavar a face do governo face aos clientes mais do que outra coisa.
3. Foi uma consequência inevitável de algo adverso no contexto externo ou foram erros de gestão da companhia?
A razão da queda da Evergrande é, como em tantos casos, a natureza da sua ascensão – imprudente, meteórica, megalómana. Claro que a deterioração das condições de mercado pesou, mas o desenlace era previsível … e a gestão tinha obrigação de se precaver face à viragem do mercado e de não se lançar numa diversificação sem sentido e que a deixou sem fundos.
4. Que consequências teve esta queda sobre o resto do sector e sobre os investidores, clientes ou trabalhadores da Evergrande ou de empresas dependentes?
A Evergrande tem hoje uma dívida de 300 biUSD … e um valor de mercado inferior a um milionésimo da dívida. Saturado por anos de batalhas, o tribunal de Hong Kong tomou uma decisão firme de liquidação dos ativos. Mas não é de todo provável que seja cumprida na China, sobretudo devido ao poder dos governos locais – a Evergrande tem 1.300 projetos em 280 cidades, no valor de mais de 242 biUSD, e 1,6 milhões de clientes no limbo, sem as casas que já tinham pago por inteiro. E num país onde 78% da riqueza das famílias urbanas estão ligados ao imobiliário, o futuro dos ativos da Evergrande será uma grande preocupação para as centenas de milhares de chineses comuns cujas poupanças estão em risco.
Veja-se o caso da insolvência da imobiliária Kaisa, em 2005. Os governos locais tomam posse dos prédios, rebatizam-nos, proíbem o acesso a pessoal da Kaisa e as habitações são terminadas com fundos dos governos local e central. Como a Evergrande vai recorrer da decisão judicial de Hong Kong, a empresa vai ter anos para fazer o mesmo e terminar as casas inacabadas. Aliás, um diretor-executivo da Evergrande classificou a decisão do tribunal como “lamentável” … mas disse que as operações na China iriam continuar. Quem pode manda.
5. E que implicações devemos esperar no futuro na estrutura do sector, no papel do Estado, na credibilidade da China nos mercados ou no crescimento da própria economia chinesa?
Os mercados financeiros na China e Hong Kong caíram para o nível mais baixo dos últimos 20 anos. Pequim já anunciou um controlo mais apertado, em particular com a fusão dos três maiores gestores de dívida chineses num fundo soberano, China Investment Corp., facilitando assim futuros resgates pelo Estado. O governo procura, assim, dar um sinal de confiança aos investidores – e isso parece ser tudo o que a insolvência da Evergrande e a perda para os credores estrangeiros possa ser oferecido pelo governo central. Pouco? É a China que fala.
Na sua coluna Lex, o Financial Times colocava a Evergrande como a primeira peça do dominó, dando a parecer prever um efeito sistémico no sector imobiliário. Mas, lendo com atenção, não é nada disso – trata-se apenas de dificuldades do sector bancário “sombra” que financia o sector imobiliário. Muitos (jornalistas, comentadores…) vieram pegar nisto para dizer que o FT previa um desastre, mas não é verdade e não leram bem o que estava escrito.
Quanto à situação da economia chinesa, ela já viu melhores dias. O crescimento da dívida, a queda da natalidade, a deslocalização da produção para outros países e a estagnação da produtividade são os fatores que mais pesam. “Na ausência de grandes reformas políticas, a taxa de crescimento potencial da China continuará a apresentar uma tendência decrescente a longo prazo”, diz a Bloomberg. E, como é evidente, a situação espoletada pela Evergrande não vai ajudar – porque o peso do imobiliário no PIB é enorme e vai inevitavelmente cair, e porque o impacto na confiança dos investidores vai arrefecer a capacidade de crescimento das empresas.
6. E o que podemos concluir do caso Evergrande, afinal?
O caso Evergrande não é mais do que um clássico caso de má gestão, agravado por alguma deficiência de regulação que, quando foi corrigida, já era tarde para a empresa se recompor. Então porque tem feito correr tanta tinta ? Quatro razões que deixo ao leitor para reflexão…
Porque é uma empresa chinesa e é sempre bom para o Ocidente poder bater na China.
Porque muitos investidores ocidentais algo gananciosos foram atrás do dinheiro fácil e preferem atacar a China do que admitir que não consideraram bem o risco.
Porque foi a maior imobiliária do mundo e, quando um gigante cai, é suposto fazer barulho.
E, finalmente pelo simbolismo do episódio face às tensões entre a China e Hong Kong, colocando o segundo como justiceiro vitimizado e a primeira como… o Dragão, claro.
Empresário, gestor e consultor
Artigo publicado na edição do NOVO de 3 de fevereiro