Nas memórias de infância, cada um guarda imagens e episódios da família, da escola, das férias, dos amigos… umas melhores outras menos boas, mas sempre memórias que se mantêm connosco à medida que crescemos e nos fazem especiais, únicos. E se refletirmos sobre a infância e os primeiros anos de juventude, é difícil não juntar a este conjunto a memória dos nossos brinquedos preferidos – as bonecas choronas espanholas, os Matchbox ou os Dinky Toys, figuras de índios e cowboys, Barbies, casas de bonecas… e Lego.
Quer fosse só uma caixa com a épica placa cinzenta e os paralelepípedos de plástico de cores e tamanhos diferentes ou já um comboio com vagões e carris e casas, não serão muitos os que não passaram horas a construir, desmontar e construir de novo, estimulando imaginação e habilidade – e dando não raras vezes largas à frustração de faltar sempre uma peça decisiva…
Pelo amor de muitos a esta marca, vale a pena cavar mais fundo para dar a conhecer a história desta fabulosa marca.
Origem do conceito e da marca
A Lego é uma empresa familiar e desde a invenção do tijolinho de plástico, em 1949, por Ole Kirk Kristensen não parou de crescer a um ritmo difícil de igualar, tornando-se na empresa mais reputada da Europa. Há poucas semanas o seu presidente e líder da quarta geração, Thomas Christensen, deu uma rara entrevista ao Financial Times.
O Grupo Lego nasce na oficina Ole Kirk Christiansen (1891-1958), um carpinteiro dinamarquês que começou a fazer brinquedos de madeira em 1932. Em 1934, surge o nome Lego, do dinamarquês leg godt que significa “jogar bem”. Em 1949, vem a primeira versão dos tijolos apresentados como Tijolos de Encaixe Automático. Em 1954, o filho de Christiansen, Godtfred, aperfeiçoando com entusiasmo a peça, lança o modelo definitivo do tijolo que a Lego produz ao ritmo de 36 biliões/ano.
Do tijolinho aos dias de hoje: como emergiu um império
A base do conceito Lego nunca deixou de ser a construção com peças de plástico e minifiguras que podem ser conectadas de várias formas e construir veículos, edifícios, espaços urbanos, naves espaciais … todos feitos para serem montados e desmontados e montados de novo.
Estabilizada a componente técnica básica, começa a viagem de crescimento do grupo como gama de brinquedos. Em 1969 nascem os Duplo e em 1978 as primeiras minifiguras. Ao mesmo tempo, aposta-se forte em marketing – em maio de 2013, em Nova Iorque, é exibido o maior modelo Lego já criado, com mais de 5 milhões de tijolos, um caça Star Wars X Wing à escala natural. Segue-se uma torre de 34 metros e uma linha de comboio de 4 km. Em 2015, a consultora Brand Finance classifica a Lego como a marca mais poderosa do mundo, ultrapassando por exemplo… a Ferrari.
Mas não foi tudo um mar de rosas. No princípio da década a empresa quase entrou em colapso sob a chefia executiva do líder da terceira geração e CEO Kjeld kirk Christensen: perdeu a fé no tijolo e começou a oferecer produtos tipo Barbie ou Action Man. Foi um desastre.
Num esforço para salvar a empresa, a Família contrata Jørgen Vig Knudstorp como CEO, que faz com grande sucesso um back to basics, repondo o tijolo no centro – as vendas aumentaram para 1,3 bi USD em 2006, quase um terço da Hasbro e um quarto da Mattel, com praticamente igual rentabilidade à dos dois concorrentes.
Ao mesmo tempo e apesar da recuperação, a Lego percebe o início da migração dos brinquedos para entretenimento digital e a família volta a fazer sentir o seu músculo e ambição. Lança jogos de vídeo Lego e vai muito mais longe, projetando o poder da marca a novos horizontes de negócio. Deixa de ser um fabricante de brinquedos puro e entra na produção de programas de TV e filmes, lança a rede de parques temáticos Legoland, apelando tanto a crianças como adultos. Coroada de sucesso, esta estratégia levou a Lego a produzir quatro filmes, abrir 900 lojas próprias e dez parques Legoland espalhados pelo mundo.
O brutal ritmo de diversificação e inovação impulsionou a empresa a assumir-se como um case study mundial. No seu core business, brinquedos, ultrapassou Mattel e Hasbro, as duas grandes cotadas americanas, com centenas de marcas de brinquedos, para se tornar no maior fabricante do mundo em vendas e com uma rentabilidade muito superior. Desde 2006, as vendas e a rentabilidade da Lego aumentaram sete vezes e o crescimento continuou graças ao ritmo de novidades, sempre bem sucedidas. Não só nas novas áreas de negócio, mas muito no core business em que aumentou drasticamente o número de conjuntos à venda. Conta Niels Christiansen (CEO, que não é da família fundadora): “Imagine que quando comecei, em outubro de 2017, perguntavam-me se achava que o tijolo ainda era relevante ou estava a chegar ao fim. Não mo perguntaram uma única vez nos últimos três ou quatro anos.” E o desempenho do grupo está cada vez mais forte – em 2022 registou 9,1 bi USD de receitas face a 5,4 na Mattel e 5,9 na Hasbro e uma rentabilidade líquida de 1,9 bi USD, muito acima dos 390 M USD da Mattel e dos 200 M USD milhões da Hasbro – embora sem contar o efeito do filme Barbie, na Mattel.
A família Christiansen: estabilidade, ambição, arrojo e obsessão pela qualidade
A Família Lego… perdão, Christiansen é muito discreta e mantém raízes dinamarquesas, acumulando uma fortuna de 32,8 bi USD. Estabeleceu uma holding familiar, a Kirkbi A/S, para gestão do portefólio da família, Lego incluída. A transição de liderança da terceira para a quarta geração, que durou seis anos, concluiu-se há meses, com Thomas a assumir a presidência. “O nível de ambição é super alto; que o nosso impacto chegue a todas as crianças do mundo que seja possível”, diz Thomas, que já está a pensar na transição para a quinta geração, apesar de os membros terem entre 2 e 17 anos. Criou a Escola Lego para os educar nos valores e desafios da empresa e sensibilizar sobre as singularidades de gerir uma empresa familiar. “Quero simplesmente equipá-los e prepará-los da melhor forma possível e de uma forma muito lúdica, para que pensem que é divertido e queiram assumir no futuro o papel de acionista ativo.”
O futuro: Lego, Lego, Lego
Com um portfólio sólido e receitas crescentes, os acionistas da Lego partilham grandes ambições. E há quatro desafios que se destacam. O primeiro é a sustentabilidade, materializado na matéria-prima . O plástico dos tijolos incorpora petróleo e há décadas de esforço para usar fontes renováveis. “Tem sido difícil mudar a matéria-prima porque não vamos ter retorno no curto ou médio prazo.” Mas Christiansen diz que a Lego apoiará muitos parceiros e iniciativas para encontrar plásticos mais verdes.
O segundo desafio é fortalecer a marca Lego como um veículo educativo. A educação é uma forma de alcançar as crianças a que não chega por ter brinquedos relativamente caros. Para isso, a Lego está a construir novas fábricas e a trabalhar com a Epic Games, criadora do Fortnite, para desenvolver uma experiência de Lego no metaverso. O terceiro desafio é, obviamente, continuar a criar valor para a família, crescendo em novos horizontes. Com imaginação, qualidade, originalidade e para além do mundo tradicional da Lego. Para Thomas, há muito mais terreno a conquistar. “O meu pai sempre disse que somos mais do que uma empresa de brinquedos.” A obsessão passa inevitavelmente de geração em geração e a Lego continua a ter o mesmo alvo na mira : a Disney.
“Somos uma marca de entretenimento. A Lego e a Disney têm muitas semelhanças, muito mais do que temos com Mattel ou Hasbro “, diz Niels Christiansen. A Disney é nove vezes maior do que a Lego em receitas – mas isso pode ser uma oportunidade. “Com brinquedos, programas de TV, filmes e parques temáticos a Lego está no território da Disney e tudo depende do que escolher fazeri”, acrescenta. “Começou como uma pequena empresa de tijolos plásticos e agora tem um belo portefólio – não me espanta que um dia a Lego possa ser tão grande quanto a Disney.”
Empresário, gestor e consultor
Artigo publicado na edição do NOVO de sábado, dia 17 de fevereiro