A demissão de António Costa não se deveu a nenhum parágrafo, que, de resto, não poderia deixar de constar no comunicado da PGR, nem de nenhuma conspiração política secreta para derrubar um governo patriótico e de esquerda. Pedindo emprestada a expressão a Pedro Nuno Santos, deveu-se à “bagunça” reinante no seu próprio governo, somada a crises muito graves em sectores centrais da nossa vida coletiva, como a saúde, a habitação, a educação ou os transportes, o que trouxe consigo uma vontade de mudança política.

Costa contou sempre com quatro fatores para asfixiar a vontade de mudança. Em primeiro lugar, uma conjuntura internacional extremamente favorável entre 2015 e 2020, desde os preços baixos das matérias-primas a um BCE que comprava a dívida portuguesa, mantinha os juros negativos e gerava dividendos gigantescos diretamente para o Orçamento do Estado. Em segundo lugar, a recuperação já conseguida no sector público empresarial, na banca, nas contas externas, nas contas do Estado, depois da derrocada provocada pelo PS em 2011, permitindo-lhe reclamar louros que não eram seus e rejeitar as responsabilidades pelo preço que o país pagara entre 2011 e 2014, que eram dele e do seu partido. Em terceiro lugar, a obtenção sem fim de mais e mais fundos europeus. Em quarto lugar, a redução da autonomia da sociedade civil através da colonização da sociedade e do Estado pelo partido hegemónico.

Para que a vontade de mudar não despertasse, era indispensável impedir quaisquer transformações estruturais da economia, mesmo que assim se sacrificassem as oportunidades de desenvolvimento do país. E sobretudo era preciso fazer os portugueses acreditar que o pouco e mau que tinham era o melhor que se podia obter – no mundo inteiro. Com a colaboração prestimosa de um Presidente da República que sempre supôs que em Portugal só é possível navegar politicamente com ventos socialistas favoráveis, Costa e o PS dedicaram-se à exploração propagandística de que tudo o que podia ser criticado nos meios de vida dos portugueses eram afinal bênçãos fabulosas pelas quais nos devíamos prostrar em agradecimento. Salários, emigração, educação, saúde, habitação, transportes, crescimento económico, níveis de pobreza, qualidade das instituições – enquanto tudo se degradava, a propaganda incessantemente repetia que tudo melhorava. Quando era impossível esconder o colapso, como na crise do SNS, acusava-se o escrutínio de ser uma difamação da “maior conquista de Abril” – a mesma que o governo se encarregava todos os dias de espatifar. Não havendo propaganda que resistisse à crueza dos factos que se multiplicavam, como foi o caso da habitação ou dos números da emigração, a aposta estratégica na perpetuação do poder residia, como residiu desde o primeiro momento, em conservar o apoio do eleitorado pensionista.

O envelhecimento da base de apoio do PS é um dos factos mais impressionantes destes últimos anos, mas reflete a situação política. O PS agarra-se desesperadamente a uma base que presume não querer qualquer mudança. Mais uma vez, a presunção é atrevida porque, ao contrário do que o cinismo socialista sussurra, pode bem acontecer que o eleitorado pensionista se preocupa com o futuro do país e dos seus descendentes. Em último recurso, e porque a proposta de não mudar uma situação de crise é perdedora à partida, dá-se tudo para ressuscitar a memória do corte nas pensões do período da troika. Com uma operação mentirosa de apagamento da memória coletiva, Pedro Nuno Santos e os demais candidatos socialistas omitem que foram eleitos deputados em 2011 pelo PS de José Sócrates já com o programa de assistência financeira em vigor. Que apoiaram os cortes nos salários que tinham já sido efetuados pelo governo de Sócrates, que subscreveram o memorando de entendimento que impunha os cortes nas pensões, e que de resto impunha objetivos quantitativos para os défices dos três anos seguintes, a serem obtidos pelas medidas já inscritas no memorando, e que, se estas fossem insuficientes, teriam de ser agravadas. Ora, como os candidatos de então, que são os candidatos de agora, esconderam ao país a situação calamitosa das finanças, imediatamente impuseram ao governo que lhes sucedeu em 2011, e aos portugue- ses, um esforço orçamental superior ao que fora anunciado.

Ouvindo hoje, em 2024, os líderes socialistas, acompanhados pelos seus aliados na comunicação social, subverterem a verdade histórica com mentira atrás de mentira, dá bem conta do calibre político de quem nos quer governar. A razão porque o PS em 2024, tal como Costa desde 2015, insiste em fazer de cada eleição uma encenação mentirosa do que, no entender deles, as eleições de 2011 deviam ter sido, é óbvia: garantir que nada muda e que o PS governa para sempre. Dá também conta do vazio político e moral em que caíram as esquerdas em geral. Na ausência de uma vontade política de governar para o bem comum dos portugueses, aparece um incessante espectáculo de diabolização dos adversários políticos, a mobilização do ódio coletivo contra “inimigos do povo” selecionados, normalmente ex-líderes do PSD, e o anúncio apocalíptico de papões de que só eles nos podem proteger – uma prática evidentemente antidemocrática.

Só que desta vez a vontade de mudar existe. Veremos no dia 10 de março de que modo se concretizará. Mas dificilmente essa vontade verá nos partidos da estagnação a liderança e o projeto alternativo que procura.

Antigo deputado

Artigo publicado na edição do NOVO de 2 de março.