Maria da Graça Carvalho: “Temos de ser muito mais ligeiros, temos uma burocracia imensa na Europa, comparado com outros”

A Europa é uma potência global na investigação, em diversas áreas, mas tem dificuldade em transformar esse conhecimento em negócio, como acontece nos Estados Unidos da América (EUA). Em entrevista ao NOVO, a eurodeputada Maria da Graça Carvalho afirma que, para que o futuro seja diferente, e para que possa ser concretizada a ideia da reindustrialização, é preciso fazer mudanças, principalmente, limitando o peso da burocracia

Nesta altura, a Europa já está a concretizar a visão de aposta na reindustrialização ou esta ainda não saiu do discurso político para a concretização?
Está já muito no discurso político, estamos muito expectantes de três documentos que a Comissão vai publicar no dia 14 de Março – um deles é exactamente sobre a indústria, outro sobre as matérias-primas críticas e o terceiro sobre o desenho do mercado eléctrico europeu. São três peças fundamentais que vêm acabar um grande pacote sobre o green deal. Eu tenho uma grande expectativa, espero que haja componentes importantes: um grande investimento em ciência e inovação nas áreas tecnológicas; uma aposta nas competências, portanto, mais engenheiros, mais técnicos, mais pessoas especializadas, não esquecendo as mulheres, porque há muito poucas mulheres nestas áreas e estamos a esquecer quase 50% da população; as infra-estruturas modernas de supercomputação, computação quântica. Mas há outra área, que é a burocracia, e nós temos de ser muito mais ligeiros; temos uma burocracia imensa comparado com outros. Há que ser mais rápido e isso tem de ser normal.

Algo que eu tenho vindo a defender são os standards industriais. Em vez de nos fecharmos, devíamos ter um diálogo, principalmente nas tecnologias emergentes; no hidrogénio vai ter que se definir tudo, como é que se faz o carregamento dos automóveis, em que condições, tudo; isso são regras industriais que interessa que sejam o mais abrangentes possíveis, que nós tenhamos as mesmas regras que têm os nossos vizinhos – a Turquia, a Noruega –, porque isso aumenta o nosso mercado, e até mesmo os próprios Estados Unidos. Portanto, deverá haver uma cooperação, em vez de um combate, uma cooperação com os Estados Unidos: regras sobre inteligência artificial, o carregamento eléctrico do hidrogénio, coisas que estão a nascer e que não sejam completamente diferentes, porque o que vai acontecer se nós dispersamos é que vamos acordar um dia em que o standard mundial destas novas tecnologias vem, por exemplo, outro lado do mundo, nomeadamente da Ásia, e isso prejudica-nos muito em termos de comércio Internacional e nós temos de continuar não só a fabricar para a Europa, mas para o comércio Internacional, para sermos grandes exportadores de tecnologia, tem de ser essa a nossa ambição.

Acompanha a área da investigação. É uma prioridade europeia, mas o que nós vemos é que a Europa tem capacidade de investigação, tem trabalho feito, mas depois tem dificuldade em monetizar o que faz, o que acaba por ser feito, por exemplo, pelos Estados Unidos. Isto tem sido alterado?
Estamos em via de, mas ainda não estamos lá. As vacinas foram um exemplo disso mesmo, foi desenvolvido o conhecimento aqui, mas para a produção, para termos produção em massa, foi preciso fazer uma parceria com a Pfizer ou a Moderna – o conhecimento da Moderna foi financiado pelo Horizonte 2020, mas aí não foi uma parceria, porque a empresa mudou-se para os Estados Unidos para desenvolver a vacina. Portanto, isto mostra que, para desenvolver o conhecimento a Europa é líder e, depois, para dar escala vão para outro sítio, e porquê? Novamente, os tempos para tudo.

E capital?
Não é falta de financiamento; na Europa há financiamento. Por exemplo, neste momento, o PRR [Plano de Recuperação e Resiliência] tem um financiamento enorme, e se juntarmos com os profundos estruturais, os financiamentos que existem nas poupanças, poderiam ser aplicados a financiar empresas inovadoras, [mas] não há essa cultura, enquanto nos Estados Unidos há muito mais facilidade. Portanto, é, também, uma questão de cultura de risco, que nós não temos e que demora a mudar. Mas podíamos começar com um grande investimento dos nossos financiamentos, aplicar o financiamento que está disponível neste momento e que é muito; a Europa nunca teve financiamento. público a nível europeu tão grande como tem agora. Por vezes olhamos – e estamos aqui no Taguspark – a época em que o professor Cavaco Silva foi primeiro-ministro em que havia muito financiamento europeu; neste momento temos o dobro do financiamento dessa altura; aqui e em toda a Europa, portanto, é uma questão de se aproveitar bem. Para mais, a maior parte das infra-estruturas básicas, como auto-estradas, pontes, estão construídas, portanto, era de aproveitar, de irmos para as infra-estruturas do futuro, do tipo dos computadores de alta velocidade, pessoas, projectos, transformar esses projectos em produtos inovadores, aproveitar para mudar todo este panorama de competitividade da Europa, mas não o estamos ainda a fazer.

Não é uma questão de escassez de capital, é uma questão de acesso?
É de acesso. Há uma burocracia enorme, uma dispersão, porque, por exemplo, os PRR são geridos nos países, os programas PT2020 ou PT2030 e os equivalentes de outros países têm uma co-gestão, mas a maior parte da gestão é feita a nível nacional e regional, e, portanto, há uma grande fragmentação, não há uma visão clara única de “vamos apostar em transformar a Europa”. Não estamos a aproveitar, até agora, como deveríamos a possibilidade que estes financiamentos nos deviam dar. Este financiamento extra do PRR foi para nos ajudar a sair da crise de uma forma em que ficássemos mais fortes, mais competitivos.

Havendo financiamento, faz sentido uma proposta como a constituição do fundo soberano para a investigação a acrescentar ao que existe?
Eu não me oponho ao fundo soberano, só que digo uma coisa, nós não estamos a aproveitar o que existe.

Por exemplo, Portugal ainda tem quase 5.000 milhões [de euros] do PT 2020 para utilizar, vai ter do PT2030 23 mil milhões, tem do PRR cerca de 18,2 mil milhões. Vamos executar esse rapidamente! Se executarmos bem, aqui estamos, como deputados, para aprovar um fundo soberano, mas não vou já pedir mais dinheiro, porque este PRR e esse fundo soberano – o PRR de certeza – são dívida que vai ser paga pelas novas gerações, começa a ser paga em 2027 até 50 e tal.

Portanto, vamos é executar bem aquilo que temos e, depois, se for preciso mais analisamos.

Foi galardoada com um prémio pela actividade que desenvolve como eurodeputada – foi a segunda vez que foi premiada. Sente que o trabalho que faz no Parlamento Europeu é valorizado em Portugal? Não só o trabalho, mas também os temas.
Sinto que é mais valorizado noutros países da Europa do que em Portugal. Eu acho que em Portugal não se fala suficientemente da Europa e, principalmente, de alguns dos temas da Europa. Não se fala de ciência, da inovação, que é tão importante, da indústria, que é tão importante. Eu tenho a ciência, inovação, a indústria, o mercado interno; tenho o digital, trabalho muito no digital, e também tenho as questões das mulheres e a questão do mar – mas do ponto de vista da ciência, da inovação, da sustentabilidade do mar – e o interessante é que destes temas todos, o que mais se fala em Portugal é o das questões de género. Sou mais conhecida pelas questões de género e de igualdade; é mais este tema. Eu tenho pena. Eu acho que, por exemplo, fui relatora das parcerias com a indústria de toda a parte do Horizonte Europa, que representam 30 mil milhões de fundos europeus – e a indústria põe outro tanto –, que cobre o sector do hidrogénio da aviação, do transporte ferroviário, da biotecnologia, dos medicamentos inovadores, da SIDA, malária, tuberculose e das doenças emergentes em África – que é uma parceria de que eu gosto muito, porque fui eu que a propus como ministra em 2013, em conjunto com o primeiro-ministro de Moçambique na altura –, da computação paralela – que consegui, com o apoio da presidência portuguesa, trazer um supercomputador para Portugal que está a ser instalado no Minho –, dos microprocessadores, da tecnologia de 5G e 6G, mas eu acho que há muito poucas pessoas que conhecem esse trabalho. Gostava que tivesse mais eco na comunicação e junto da população. As pessoas sentem que este trabalho está longe, que a Europa está longe; ainda há esse distanciamento.

Esteve na conferência que o IDC promoveu em Lisboa sobre democracia em África, em que em que foi pedido que o Parlamento Europeu tivesse uma maior atenção ao continente africano, nomeadamente aos processos eleitorais. As instituições europeias estão longe de África?
As instituições europeias, nomeadamente o Parlamento Europeu, participam nas missões de observação eleitoral, mas essas essas missões têm de ser pedidas pelos países e muitas vezes os países não pedem ou não pedem a tempo, mas o Parlamento tem, sempre que lhe é pedido e que haja condições, estado presente nesses países. E é uma das grandes missões do Parlamento Europeu promover a democracia, a transparência das eleições. E em África, nomeadamente para nós, deputados portugueses, os países de língua portuguesa são muito importantes e será muito importante estarmos, no futuro, no maior número possível.