Apenas por telefone é possível agendar um contacto personalizado com a Agência para a Integração, Migrações e Asilo  (AIMA), substituta do ex-Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). Mas as linhas telefónicas permanentemente saturadas impedem os imigrantes, desesperados por um título de residência, ou pela renovação do mesmo, de lograrem, por si mesmos, marcar o acesso presencial à agência. Contudo, via redes sociais, vão recebendo propostas de venda de agendamentos rápidos oriundas de indivíduos ou de grupos organizados, a troco de avultadas quantias. Vários advogados já apresentaram queixa na Polícia Judiciária (PJ). Ao que o NOVO apurou, por trás da sobrecarga das linhas telefónicas estão grupos mafiosos que, recorrendo a plataformas digitais avançadas, dificultam o acesso a quem utiliza um telefone normal para se apoderarem, eles próprios, das chamadas atendidas pela AIMA, fornecendo para agendamento os dados dos clientes a quem prestam serviços.

“Estão a ser vendidos agendamentos por 500 e mil euros. Isto é que é escandaloso”, diz, nitidamente revoltada, Inês Azevedo, advogada especialista em Direito das Migrações.  “Os imigrantes merecem mais consideração por parte do Estado português”, defende, frisando: “São 10% da população, com o impacto que isso significa para a economia e sustentabilidade da segurança social, além do contributo para o equilíbrio demográfico”. Neste sentido, a advogada lisboeta diz sentir “vergonha alheia” pelo que se passa na AIMA. Inês Azevedo considera revoltante que um imigrante ligue desesperado na tentativa de conseguir um agendamento – já houve quem tivesse ligado 30 mil vezes até conseguir a chamada – e sistematicamente fique dependurado. No entanto, observa, na internet abundam as ofertas de serviços de agendamento a troco de muito dinheiro – propostas por pessoas individuais e por grupos organizados. Segundo a advogada, já foram enviadas várias queixas para a Polícia Judiciária (PJ), dizendo desconhecer quais os casos concretos em investigação.

O NOVO investigou e rapidamente encontrou na internet prestadores de serviços de agendamentos. A maior parte é imigrante residente em Portugal, mas também encontramos quem esteja sediado no Brasil e em países africanos. O serviço mais disponível é o de agendamento para reagrupamento familiar de crianças entre os 5 e os 15 anos. Este é, também, o mais fácil de se conseguir, neste momento, por ser aquele a que a AIMA está a dar maior prioridade. Os demais serviços, seja o agendamento para obtenção da renovação do título de residência, seja para manifestação de interesse do título de residência, encontram-se igualmente disponíveis nas redes mafiosas. No meio de tanta oferta, ainda surgem propostas de visionamento de vídeos pornográficos e convites para descobrir como é que uma mulher chega a Portugal com 300 euros no bolso e rapidamente consegue dinheiro para adquirir um imóvel. É todo um submundo da imigração disponível na internet.

Ao nosso contacto, alguém, do outro lado da linha, pediu 150 euros por um agendamento para renovação do título de residência temporário no Instituto dos Registo e Notariado (RRN), esclarecendo que teria de ser pago pessoalmente, na altura da recolha dos dados, e em dinheiro. Aceitamos a proposta, mas o encontro acabou por nunca acontecer, tendo o individuo justificado a falta com uma deslocação urgente ao país de origem.

“Esta é uma realidade que prolifera”, garante ao NOVO Giancarlo de Luca, advogado em Vila do Conde, com muita experiência jurídica no apoio à integração de imigrantes. Conforme explicou, “trata-se de prestadores clandestinos, isolados ou em grupos organizados, recorrendo alguns a influencers conhecidos no meio para angariar clientes”. Giancarlo de Luca, de origem brasileira radicado em Portugal, vai mais longe e garante que por trás de muitos dos angariadores estão escritórios de advogados que, entre serviços de assessoria jurídica, oferecem ao imigrante o pacote completo, ou seja, também o agendamento na AIMA ou no IRN. “Os advogados estão impedidos de publicitar os seus serviços, então há quem recorra a grupos organizados e a influencers para angariar trabalho”, explicou.

Haverá corrupção? O advogado de Vila do Conde diz ter dúvidas que isso possa acontecer. O que se passa, adiantou, é que existem pessoas, individualmente ou em grupo, que usam serviços de “dialers”  em vários telemóveis, provocando uma sobrecarta de chamadas na AIMA. Sublinhando que esta realidade já se verificava em algumas ocasiões no tempo de SEF, Giancarlo de Luca lembrou que num só dia, a 17 de outubro de 2022, aqueles serviços receberam em 12 horas mais de 29 milhões de chamadas, o equivalente a 671 por segundo.

Com tanta sobrecarga é natural que uma pessoa “normal”, com apenas um telemóvel e a vida para organizar, fique impossibilitada de passar horas a fio a tentar contatar a AIMA. Por isso “este tipo de serviços clandestinos proliferam, revelando-se um negócio cada vez mais rentável porque também a circunstância vivida pelos imigrantes em Portugal é cada vez mais desesperante”, sublinha. O advogado admite que a maior parte dos agendamentos seja feita com recurso às mafias ligadas à imigração, instaladas dentro e fora de Portugal. “Máfias que também prestam serviços de assessoria jurídica, praticando o crime de procuradoria ilícita”, observa.

O NOVO sabe que existem no Ministério Público vários processos de inquérito em curso, ainda em segredo de justiça, cuja investigação começou por ser delegada no SEF, tendo passado agora para a PJ.

Presos em Portugal

Além do “cancro” dos agendamentos, os imigrantes oriundos da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) enfrentam um outro problema que lhes agrava a situação em Portugal. Conforme recordou a advogada Inês Azevedo, especialista em Direito das Migrações, muitos desses imigrantes, sobretudo do Brasil, Angola, Moçambique e Cabo-Verde, obtiveram a autorização de residência temporária, sem parecer prévio da AIMA,  ao abrigo de um Acordo sobre a Mobilidade entre os Estados-membros da CPLP, apenas reconhecido no interior desta comunidade e com prazo de validade de um ano. Essas autorizações já caducaram para os primeiros que delas beneficiaram e, neste momento, a AIMA não tem capacidade para as renovar.

O imbróglio resultante do acordo CPLP obrigou o Governo a aprovar um decreto-lei que prorroga até julho deste ano a validade daqueles títulos de residência. O problema é que, explicou Inês Azevedo, o diploma assegura a manutenção da legalidade no espaço territorial português, mas sem efeitos nem no espaço Schengen nem nos restantes países da CPLP. Resultado: “as pessoas que se encontram com autorizações de residência ao abrigo daquele Acordo estão presas em Portugal, não podem deslocar-se nem no espaço Schengen nem em lado nenhum. Se saem já não entram”. Inês Azevedo observa que há quadros técnicos em empresas que necessitam de se deslocar para frequentar ações de formação, e há quem também necessite de ir a um funeral de um familiar no país de origem, ou de visitar uma pessoa doente. Mas se o fizer já não pode regressar”. Alerta a advogada: “Estão cá presos”.

Competências repartidas

Toda a tramitação relativa à obtenção do título de residência é da competência da AIMA. O IRN funciona como entidade intermediária para recolha dos dados biométricos quando o imigrante necessita de renovar o título temporário. Esta decisão do Governo (que está de saída) de repartir competência entre ambas as entidades foi entendida como forma de aliviar a AIMAque acabava de receber uma herança pesada do SEF. Mas, agora está a servir para repartir culpas.

Conforme apurou o NOVO, há imigrantes que se deslocam ao IRN para tratar dos dados biométricos e depois à AIMAque tem a competência para deferir ou indeferir o pedido. Muitas das vezes deparam-se com respostas contraditórias. Na AIMA, ouvem: “O processo encontra-se ainda no IRN”. Aqui, ouvem: “O processo já seguiu para a AIMA”.

O SEF, recorde-se, tramitava, todos estes processos em três plataformas diferentes: numa entravam as manifestações de interesse para concessão de título de residência; noutra os Golden Visa; e noutra as renovações.

Agora, a AIMA, criada a 9 de outubro de 2023, trata tudo numa só plataforma tendo já acumulado cerca de 350 mil pendências. São 350 mil casos de pessoas concretas que, segundo o presidente da entidade, Luís Goes Pinheiro, poderão ver luz ao fundo do túnel no verão de 2025. Entretanto o Governo mudou, com um parlamento diferente, aguardando-se para saber se haverá alterações nas políticas da migração.

Artigo publicado na edição do NOVO que foi para as bancas este sábado, dia 23 de março